quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Ribamar Oliveira - A ponta de um iceberg

- Valor Econômico

Demandas judiciais com risco provável têm forte elevação

A proposta do governo de limitar o pagamento de precatórios pela União, com o objetivo de usar a sobra dos recursos para financiar o novo programa Renda Cidadã, teve apenas um mérito: chamou a atenção para uma despesa que não para de crescer. O gasto da União com o pagamento de sentenças judiciais aumentou de forma acelerada nos últimos anos e, o que é pior, há indícios de que a situação poderá se agravar no futuro. Ou seja, a despesa atual pode ser a ponta de um iceberg.

Quem tiver a curiosidade de ler o anexo de riscos fiscais, que acompanha o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) para 2021, vai verificar que o total das demandas judiciais contra a União, considerando aquelas de risco possível e provável em conjunto, se elevou de R$ 1,645 trilhão em 2018 para R$ 2,204 trilhões em 2019 - um crescimento de 33,9%. O anexo informa que o resultado foi influenciado pelo forte crescimento de ações de risco provável no período, que se elevaram de R$ 117,6 bilhões em 2018 para R$ 664,1 bilhões em 2019 - uma variação de 410%.

O texto do anexo do PLDO explica que os órgãos do Poder Judiciário são os responsáveis pela tramitação e julgamento das ações judiciais contra a União. Nesse sentido, o evento “pagamento judicial” pode ser classificado como um “risco”, “na medida em que ele é um evento futuro e incerto”. Cabe à Advocacia-Geral da União (AGU) atuar perante os órgãos judiciários para obter decisões que sejam favoráveis à Fazenda Pública, no sentido de evitar a realização de pagamentos judiciais, explica o anexo.

As ações judiciais são classificadas, quanto à probabilidade de perda para o erário público, em risco provável, possível e remoto. O Tribunal de Contas da União (TCU) determinou que os processos com risco considerado como provável deverão constituir provisão, a ser reconhecida nas demonstrações contábeis elaboradas pela Secretaria do Tesouro Nacional.

Por isso, o anexo do PLDO tratou apenas das demandas de risco possível, que apresentaram discreta elevação no último ano, alcançando, em dezembro de 2019, o estoque de potencial impacto de R$ 1,540 trilhão, representando uma elevação de 0,7% em relação a 2018.

O dramático, para as finanças da União, é o assombroso crescimento das ações de risco provável, pois, em futuro próximo, elas se traduzirão em despesas orçamentárias a serem pagas. O anexo do PLDO diz que o expressivo aumento das ações de risco provável pode ser explicado pela atualização dos critérios de classificação dos riscos, operada pelas portarias AGU nº 318/2018 e nº 514/2019. “Tais normativos ensejaram reclassificação de parte das ações judiciais que passaram a serem classificadas como de risco provável”, diz o texto.

O anexo do PLDO chama a atenção para o fato de que não há precisão a respeito do término das ações judiciais e dos montantes a serem pagos, pois o tempo de tramitação de cada processo é variável, podendo durar vários anos ou ser resolvido no curto prazo. Os próprios valores das estimativas para as perdas devem ser avaliados com cuidado, destaca o texto do anexo, pois o impacto de algumas ações não está disponível. Ou seja, a perda poderá ser maior do que a estimada.

A curiosidade de quem toma conhecimento da astronômica despesa da União com o pagamento de sentenças judiciais é saber do que tratam essas ações. Elas podem ser movidas contra a administração direta da União. Por exemplo, existem numerosas ações para o fornecimento de medicamentos de alto custo fora da lista do SUS. Só com esse item, o risco de perda possível foi estimado em R$ 1,3 bilhão.

Uma ação alega responsabilidade objetiva da União por dano causado ao setor sucroalcooleiro, em virtude da fixação dos preços dos produtos do setor em valores inferiores ao levantamento de custos realizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). A perda possível foi estimada em R$ 107 bilhões. Outra ação pede indenização de prejuízos sofridos pelas empresas aéreas, em razão da política tarifária estabelecida no período de outubro de 1987 a janeiro de 1992. A perda possível foi estimada em R$ 2,2 bilhões.

Há demandas judiciais contra a União de natureza tributária, inclusive previdenciária. Uma ação questiona, por exemplo, a incidência da contribuição do PIS sobre as receitas decorrentes da locação de bens imóveis, inclusive no que se refere às empresas que alugam imóveis esporádica ou eventualmente. A perda possível foi estimada em R$ 2,9 bilhões em um ano e R$ 14,6 bilhões em cinco anos. Há ainda ações contra autarquias e fundações, contra empresas estatais dependentes do Tesouro Nacional e demandas contra o Banco Central.

Na nota técnica conjunta 5/2020, divulgada nesta semana, as consultorias Legislativa e de Orçamento da Câmara dos Deputados dizem que as despesas da União decorrentes de decisões judiciais estão atingindo valores muito preocupantes. Segundo a nota, o valor de R$ 55,5 bilhões para o pagamento de sentenças judiciais previsto na proposta orçamentária de 2021 “reflete apenas a ponta de um problema ainda maior, que são os riscos fiscais associados ao forte crescimento de ações contra a União”.

Diante disso, a nota ressalta que “a necessidade de fortalecimento da defesa jurídica do Estado em face do crescimento das demandas em todas as áreas é um tema que, mais cedo ou mais tarde, terá que ser enfrentado”.

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