terça-feira, 24 de novembro de 2020

Ana Carla Abrão* - O longo prazo é hoje

- O Estado de S. Paulo

Apesar da pandemia, o mercado de capitais reagiu e chega ao fim de 2020 acumulando números muito positivos

Em um ano tão turbulento e tão difícil, era de se esperar que o mercado de capitais tivesse, na melhor das hipóteses, andado de lado. Não foi assim o ano todo. Esse mercado viveu, até antes da abrupta interrupção da atividade econômica pela pandemia, um período de notável expansão. Mas sofreu, em março e abril deste ano, o baque que todos nós sofremos, se retraindo como reação à esperada recessão econômica, ao aumento da volatilidade e da aversão ao risco como no resto do mundo. Mas reagiu e chega ao fim de 2020 acumulando números muito positivos. 

Somos mais de 3 milhões de investidores individuais em renda variável na B3, nossa Bolsa de Valores. Após a paralisia dos primeiros meses, que interrompeu a tendência crescente de emissões que vinha ainda de 2019, vimos os números de operações de abertura de capital baterem recordes, com 18 novas estreias na B3 (mais do triplo do que vimos em todo 2019) e R$ 22 bilhões em ofertas públicas individuais (IPOs), o que equivale a mais do que o dobro dos R$ 10 milhões observados no ano passado. Somem-se a essas, as ofertas subsequentes (follow-ons) – quando a empresa volta ao mercado para ofertar mais ações – que aconteceram a partir de agosto e chegamos a R$ 78 bilhões em operações até setembro de 2020, equivalente a 87% do total registrado no ano de 2019.

No mercado de renda fixa não foi diferente. Devemos fechar o ano com uma participação recorde dos instrumentos de financiamento privado na matriz de financiamento de longo prazo das empresas. Aqui o crédito bancário público (majoritariamente BNDES, com volumes generosos e juros subsidiados) chegou a representar 48% de toda a carteira de crédito de longo prazo das empresas no Brasil. Ao final do primeiro trimestre de 2020 esse número representava 36%. Uma queda expressiva cuja tendência deverá se manter, devolvendo ao mercado de capitais a posição que ele deveria sempre ocupar. 

Se olharmos outra métrica, a dos volumes de emissões mobiliárias públicas em comparação com emissões no mercado de capitais, o movimento de expansão se mostra igualmente consistente e vem de mais longe. Enquanto em 2016 as emissões privadas representavam apenas 18% do que foi emitido pela União, ao fim de 2019, elas chegaram a representar 58%. Este ano, a vida foi mais dura, ainda assim, o número se manteve em 38%, consolidando a tendência de maior representatividade do mercado privado.

Ou seja, apesar da pandemia e dos seus consequentes reflexos sobre a atividade econômica no mundo e no Brasil, o mercado de capitais local seguiu uma lógica própria em 2020. o contexto adverso afetou a trajetória de expansão que se desenhava forte em 2019, mas não interrompeu a tendência de ampliação que acompanha um ambiente que se beneficia de uma combinação de taxa de juros baixas, melhoras regulatórias e importantes correções de distorções que se acumulavam e limitavam o seu crescimento.

Mas há uma agenda a ser perseguida para que possamos consolidar de forma definitiva essa tendência positiva que, sabemos, deverá enfrentar as dificuldades de um país com grandes incertezas fiscais e enormes desafios estruturais. E essa é uma agenda fácil, se comparada com as grandes reformas necessárias em outros campos. Nesse contexto vale chamar a atenção para um conjunto de propostas que vem sendo discutidas desde 2018 pela Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima) em conjunto com a B3. O objetivo aqui é garantir continuidade ao processo de aprofundamento e desenvolvimento do mercado de capitais brasileiro.

A agenda Anbima/B3, cuja atualização acaba de ser apresentada, traz os quatro desafios que deverão nortear o fomento e o desenvolvimento do mercado de capitais nos próximos anos: i) a diversificação da base de investidores; ii) a ampliação da base de emissores; iii) o impulsionamento do mercado secundário de renda fixa; e iv) o fomento à negociação de títulos de dívida privada, a chamada securitização que hoje se vê concentrada nos setores imobiliário e agrícola. Temos ali um conjunto de contribuições que farão parte das discussões com governo, reguladores e legislativo e deverão nortear os avanços que se somarão ao que vimos observando recentemente.

Seguindo a definição da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), o mercado de capitais, juntamente com os mercados de crédito primário, de câmbio e o monetário, formam o que conhecemos como mercado financeiro. Neste, é o mercado de capitais aquele que exerce a função de viabilizar recursos de longo prazo para empresas, canalizando a poupança dos investidores para instrumentos privados de captação de recursos, ou seja, dando liquidez a títulos que são emitidos por empresas para viabilizar seus projetos de investimento e a expansão dos seus negócios.

Logo, é fundamental lembrar que quando falamos de crescimento e mais ainda de desenvolvimento econômico, o mercado de capitais emerge como protagonista e precisa, como tal, ser foco de constante evolução. A agenda está colocada e precisa avançar, apesar ou em função das enormes dificuldades que o Brasil enfrenta e ainda enfrentará – no curto, médio e longo prazos.

*Economista e sócia da Consultoria Oliver Wyman

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