sábado, 28 de novembro de 2020

Ascânio Seleme - O bispo e o voto evangélico

- O Globo

Eleitor evangélico provou que não vota unitariamente nem cai mais em lorotas tão facilmente

Difícil dizer se foi o voto evangélico que abandonou Marcelo Crivella ou se foi o velho bispo da Igreja Universal que o fez correr. O fato é que o eleitor evangélico, que até outro dia parecia apenas parte de um rebanho ideologicamente garroteado, provou que não vota unitariamente nem cai mais em lorotas tão facilmente. O sonho de Edir Macedo, que imaginava fazer uma cabeça de ponte no Rio para daí conquistar o país, virou vexame e ainda pode se tornar pesadelo.

O Rio não votou outra vez no bispo. Crivella ficou curto, apequenou-se. O resultado do primeiro turno da eleição municipal, que deve se repetir amanhã, desvelou uma novidade: os votos dos fiéis foram diluídos entre diversos candidatos. A ordem do pastor não vigora quando o candidato indicado pela igreja é ruim. Ou péssimo, como no caso em questão. Como essa verdade é comum em outros cantos do país, temos uma boa nova: o voto de cabresto religioso perdeu força.

O crescimento da população evangélica, ou a conversão de católicos em protestantes e evangélicos ao longo dos anos, produziu a sensação de que as igrejas dominariam em pouco tempo o cenário político nacional. Da mesma forma que se avalia hoje que em mais 30 anos os eleitores da Bélgica, por exemplo, serão majoritariamente de origem muçulmana. No Brasil, em dez anos, o número de evangélicos cresceu em média 61%. No Rio, seu aumento foi ainda maior, chegando a 64%.

A trajetória de Crivella mostra como foi importante e preocupante o que parecia ser a conformação de um curral eleitoral imbatível por ser administrado pela fé, que se imaginava blindada. O prefeito entrou na vida pública em 2002 se elegendo senador. Foi reeleito em 2010. No intervalo, concorreu sem sucesso a prefeito do Rio e a governador do estado, mas seus resultados foram melhorando. Em 2016, ganhou a prefeitura com 59,6% dos votos. Imaginou-se que o caminho estava consolidado, mas aí apareceu a inacreditável incompetência de Crivella.

Desde a posse, em janeiro de 2016, o capital político do bispo foi se deteriorando a ponto de ele ter hoje um dos maiores índices de rejeição entre todos os candidatos que concorrem neste segundo turno. Na primeira rodada das eleições, ficou com magérrimos 21,9% dos votos. Perdeu um oceano de sufrágios em quatro anos. Pelo que mostram as pesquisas, se Crivella fizer amanhã 30% dos votos válidos, terá perdido a metade dos eleitores que o elegeram em 2016. Dentre eles, incontáveis evangélicos.

A fé pode ser disciplinada e determinada, condescendente e tolerante, mas o fracasso eleitoral de Crivella prova que cega ela não é. O eleitor evangélico percebeu, como cada um dos 6,7 milhões de cariocas, que a gestão do bispo foi um desastre para a cidade. Seu governo sempre foi ineficiente, e não se pode culpar a pandemia pela agonia que a cidade atravessa. O eleitor evangélico também vê isso.

Vê, lê e ouve. A tecnologia da internet também ajudou a desidratar o monolítico voto evangélico. Além de perceber no seu dia a dia a desordem urbana, o eleitor fiel também foi informado pelas redes sociais. Muitas vezes desinformado, com certeza, mas sem dúvida estas ferramentas foram importantes para quebrar a “verdade” absoluta que se ministra nas igrejas evangélicas.

O voto orientado pelo pastor pode ainda dar resultado na eleição de vereadores e deputados, mas para cargo majoritário a iminente derrota de Crivella parece estar mostrando uma nova tendência que o tempo poderá confirmar. Por ora, Rio deve festejar o fim do mandato do bispo como uma benção. Crivella só vai fazer falta a Márcia e aos seus guardiões.

Derrota entre turnos

Jair Bolsonaro perdeu outra disputa política. Esta, depois do primeiro e antes de abrirem-se as urnas do segundo turno. Foi em Santa Catarina, onde o seu zero menor trabalhou incansavelmente para derrubar o governador Carlos Moisés. Bolsonaro e zerinho despacharam para a capital catarinense a advogada da família, Karina Kufa, para conseguir que o governador fosse afastado e sua vice bolsonarista preservada depois de o governo ter equiparado os salários dos procuradores do estado com os da Assembleia Legislativa. Diziam que o reajuste era ilegal. Deu certo até ontem, quando a comissão que julgava o afastamento de Moisés teve de restabelecê-lo no cargo porque o Tribunal de Justiça do estado decidiu na véspera que ele não cometeu crime algum.

Defesa do Fla

O governo federal é tão desorganizado, atrapalhado e abilolado que lembra em muitos aspectos a defesa do Flamengo. Além de tremer de medo, quando o torcedor vê aqueles dois patetas do Léo Pereira e Gustavo Henrique trocando passes em frente à área, deve pensar imediatamente nos ministros Ricardo Salles e Ernesto Araújo. Com estas duplas, bola no pé do adversário e gol contra é questão de tempo.

Ministro da Logística

Se o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, conseguiu deixar estocado, sem uso, mais de seis milhões de testes de coronavírus em plena pandemia, imagina o que ele seria capaz de fazer se fosse general e cuidasse da logística de uma Força Armada durante uma guerra.

Aliás

A ampliação por mais 12 meses do prazo de validade dos testes esquecidos por Pazuello num galpão em São Paulo levantam uma lebre. Será que os laboratórios não estão estabelecendo validades muito curtas para seus medicamentos de maneira que eles vençam e o consumidor os descarte e compre um frasco novo? Tem alguma esperteza aí ou se trata do exclusivo cuidado com a saúde humana? Pelo preço dos remédios, é melhor que esta história seja muito bem explicada.

Acertos e desacertos

A chance de Guilherme Boulos de acertar se vencer a eleição de amanhã é tão grande quanto a de Bruno Covas. Sua chance de errar, entretanto, é maior. O programa de Boulos é mais ambicioso e muito mais caro do que o de seu adversário. Além disso, gerou uma expectativa entre os seus eleitores que pode se transformar rapidamente em frustração quando as pautas começarem a cair por falta de recursos ou adequações legais.

Boa surpresa

O ministro Luiz Fux devolveu grandeza ao posto de presidente do Poder Judiciário. Ao mandar para o plenário todas as ações penais e inquéritos, Fux resolveu que os casos da Lava-Jato voltarão a ser julgados e não apenas descartados sumariamente pela turminha. Boa também sua recomendação aos larápios de dinheiro público. Não adianta tentar esconder, “se tiver mala de dinheiro a imprensa vai descobrir”.

Carro usado

Aquela máxima “você compraria um carro usado do fulano de tal?” cabe muito bem agora ao ex-deputado, ex-secretário de estado e ex-presidiário Pedro Fernandes. O GLOBO noticiou na terça passada que Fernandes virou corretor de imóveis. O ex-secretário foi preso temporariamente por desvios em contratos na área da assistência social e responde a processo correspondente. Daí, vale perguntar: você compraria uma casa desse sujeito?

Não culpem o Leblon

Bares cheios você vê todos os dias em Ipanema, Laranjeiras, Botafogo, Barra da Tijuca, Taquara ou por onde quer que você ande. Em São Paulo, BH e Recife é assim também. Mas sempre que alguém quer fazer uma referência aos maus hábitos dos jovens baladeiros nesta pandemia cita a Rua Dias Ferreira, o Leblon. É uma injustiça. Não porque a garotada do bairro esteja trancada em casa, claro que não. Mas porque não são os únicos. Gilberto Bueno, leitor do GLOBO, mandou uma carta para o jornal dizendo que o Leblon estava fazendo escola. Será mesmo?

Crime eleitoral

É muito bom o livro “Uma terra prometida”, a autobiografia de Barack Obama, lançado na semana passada pela Cia das Letras com pompa e circunstância. Há inúmeros grandes momentos na narrativa da vitoriosa trajetória do ex-presidente americano. Mas há também dados do cotidiano, triviais. Um deles, que quase passa despercebido, explica como funcionam as campanhas eleitorais nos EUA. Na véspera do caucus de Iowa de 2007, a arrancada das primárias americanas, fazia muito frio e a neve poderia afastar eleitores das urnas. O que a adversária Hillary Clinton fez, como conta Obama, seria crime eleitoral no Brasil. A campanha da candidata distribuiu milhares de pás entre os eleitores alegando que com as ferramentas eles poderiam remover a neve acumulada em suas portas e ir votar.

Diego disse

“Tampouco morto encontrarei a paz. Me utilizam em vida e encontrarão um modo de fazê-lo estando morto”. A afirmação de Maradona, feita em 1996, faz parte de uma coletânea de 1.000 frases organizadas por Marcelo Gantman e Andrés Burgo no livro “Diego dijo”. Ontem, dia seguinte ao velório, soube-se que os 11 filhos do jogador já iniciaram uma contenda pelo seu espólio.

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