sexta-feira, 6 de novembro de 2020

José de Souza Martins* - A ciência em perigo

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

O empenho do governador de SP em revogar conquistas emblemáticas dos cientistas e dos educadores mostra que ele toma o partido dos inimigos de São Paulo e do Brasil modernos

O governador João Doria (PSDB) insiste em propor à Assembleia Legislativa medidas que afetam o orçamento e talham recursos vitais da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e, também, das três universidades estaduais paulistas - USP, Unesp e Unicamp. A vulnerabilidade do Legislativo aumenta o risco.

Ele se ilude e claramente é iludido por orientadores que lhe dizem que os saldos não utilizados por essas instituições são dinheiro sobrando. Isso é completo desconhecimento do que é o período de referência da ciência e da formação de cientistas e educadores.

O ano de referência desses dispêndios não é o ano civil, a não ser nominalmente. É o período dos compromissos assumidos com projetos de pesquisa e bolsas de estudos para formação de novos pesquisadores. Normalmente, o período é de vários anos.

A verba contratada com a instituição de pesquisa que dela precisa e com o pesquisador ou bolsista tem que ficar assegurada desde a contratação. O lúcido governador Carvalho Pinto (1910-1987), que criou a Fapesp, já incluíra na lei respectiva a disposição de que as sobras constituem parte integrante dos seus recursos.

Esse dinheiro é aplicado, e seus rendimentos são incorporados ao orçamento como verba própria. Especialmente num período como este, de crise financeira, esse recurso supre em parte os recursos que a crise sonega.

O empenho do governador em revogar por implicação conquistas emblemáticas dos cientistas e dos educadores mostra que, em nossa guerra contra o atraso, ele toma o partido dos inimigos de São Paulo e do Brasil modernos e prósperos. Ele não está do lado da ciência, nem está do lado da inteligência e do país e do Estado que delas depende.

Ele toma o partido do atraso que nos oprime, da modernidade de fachada. Ele faz de conta que não sabe o que é e como é a formação de um cientista, como os que temos, formação que leva pelo menos nove anos de estudos formativos, cuja atualização contínua lhe tomará o restante da vida acadêmica. O que só será possível com recursos para pesquisa e para ensino, para formar novos cientistas que deem continuidade ao conhecimento que é hoje essencial para manter a vida.

A revolução agrícola e pecuária ocorrida em São Paulo no último meio século muito deve à Fapesp e às universidades. Pode-se dizer o mesmo em relação à indústria. O que o próprio governador come todos os dias e comem seus secretários e os deputados que, nisso, com ele se alinham vem da pesquisa científica, em primeiro lugar. O que vestem também. E também o conhecimento médico e científico que lhes alivia as dores e lhes prolonga a vida. Para quem governa, não sabê-lo é muito desconhecimento.

Três grandes episódios na história do Brasil deram início e bases para que o país deixasse de ser um país mínimo, dependente da agricultura de exportação e de suas crises cíclicas. Foram a criação da Universidade de São Paulo, em 1934, pelo governador Armando de Salles Oliveira (1887-1945), concepção do jornalista Júlio de Mesquita Filho (1892-1969), inspirado numa visão pluralista e humanista do conhecimento e da ciência.

A criação, em janeiro de 1951, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), agregado à Presidência da República pelo presidente Getúlio Vargas (1882-1954) para evitar as manipulações e distorções da política oligárquica e clientelista que insistia em manter o Brasil como um paraíso do atraso. Foi, em boa parte, inspiração do almirante Álvaro Alberto da Motta e Silva (1889-1976), físico e engenheiro, dedicado à pesquisa sobre a energia nuclear.

E, finalmente, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), prevista no artigo 123 da Constituição Estadual de 1947. Foi criada em 1960 por lei sancionada pelo governador Carvalho Pinto (1910-1987), marcada por dispositivos que lhe assegurassem recursos para concretizar seus objetivos com autonomia e segurança.

São três episódios de uma grande revolução cultural, social, econômica e política que habilitaram o país a vencer o atraso crônico herdado do latifúndio exportador, escravista e apoiado em relações retrógradas de trabalho e do Estado clientelista.

Foram aquilo que Henri Lefebvre (1901-1991) define como insurreição dos resíduos, daquilo e daqueles que não haviam sido capturados e instrumentalizados pelos agentes e pelas instituições do atraso social e político. Ilhas de civilidade, de saber e de criatividade de um Brasil moderno, paralelo, infiltrado corrosivamente no Brasil atrasado.

Um sonho responsável que nos vem desde José Bonifácio de Andrade e Silva (1763-1838), cientista e geólogo, que foi secretário da Real Academia de Ciências. Com iniciativas como as de Doria e de seu êmulo, Jair Messias, o legado do Patriarca da Independência se extingue.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê).

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