segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Marcus André Melo* - O Leviatã Domado

- Folha de S. Paulo

Os dois pecados originais do desenvolvimento institucional nos EUA

Como entender a inexistência nos EUA de uma autoridade eleitoral federal? Por que o país é a única democracia rica sem um sistema público de saúde ou um imposto sem valor adicionado? O que explica a recorrência de protestos raciais?

As vicissitudes institucionais do país foram analisadas por Acemoglu e Robinson no merecidamente festejado "O Corredor Estreito".

O argumento é que a chave para a emergência de uma democracia inclusiva e próspera é um Leviatã domado: produto do fortalecimento da capacidade estatal e de uma sociedade ativa.

Um estado forte é pré-condição para o controle da violência, a provisão de bens públicos e a proteção dos direitos de propriedade; a sociedade forte é o que impede que o estado fortalecido degenere em exclusão, predação e arbítrio. O argumento é dinâmico: o mecanismo combina sucessivas ondas de fortalecimento do estado com contrapontos pelos quais a sociedade mantém o estado sob controle. Parafraseando Jefferson, as rebeliões são boas para fazer o governo sentir-se sempre vigiado.

Assim, à Constituição aprovada em convenção (1788), fortalecendo o estado central, seguiu-se uma Carta de Direitos (1791).

A metáfora utilizada para caracterizar esse movimento é a da Rainha Vermelha de "Alice no País das Maravilhas", que afirmava que era necessário correr muito para permanecer parada. Metáfora imperfeita: permanecer parada significa navegar no corredor estreito da prosperidade inclusiva. Por isso não se trata de umbral ou porta --ou de um momento revolucionário--, mas de um corredor.
O processo bem-sucedido globalmente de criação do Leviatã domado nos EUA é, todavia, marcado por dois pecados originais --ou linhas de falha.

O primeiro é o federalismo, que foi positivo porque permitiu uma dinâmica de delegação de poderes negociada ao governo federal, mas impediu a formação de um governo federal forte. Mais importante: federação e exclusão andaram de mãos dadas --no cálculo do número de representantes no Congresso, por exemplo, os escravos equivaliam a 3/5 de um indivíduo completo.

O segundo pecado foi o "pacto faustiano" que acabou a Era da Reconstrução (1863-77): o Norte garantiu autonomia aos estados sulistas sobre a aplicação das 14ª e 15ª emendas, que garantiam direitos iguais, em troca do reconhecimento da vitória de Hayes (republicano) no colégio eleitoral, embora seu rival democrata tenha ganhado no voto popular. O Norte retirou seus interventores e generais, interrompendo a dinâmica da Rainha Vermelha, a qual só foi restabelecida 60 anos depois.

O país paga hoje o preço pelas linhas de falha de seu desenvolvimento institucional.

Marcus André Melo

*Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).

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