segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Marcus André Melo* - O mito das instituições perfeitas

- Folha de S. Paulo

O colégio eleitoral americano está na berlinda e lhe tem sido atribuído todo tipo de distorção, como a eleição do candidato em segundo lugar em número de votos. Mas o fenômeno do "ganhador errado" não decorre dele nem é tipicamente americano: aconteceu em outros lugares, como a Nova Zelândia nas eleições de 1978 e 1981.

O resultado esdrúxulo é produto da adoção da regra majoritária e é independente, como podemos ver, do sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo). No caso dos EUA, bastaria que a escolha dos delegados fosse proporcional aos votos obtidos no estado que as distorções seriam eliminadas mesmo com um colégio eleitoral. Mas o arranjo persiste, como já discuti aqui. E é um mito que sempre favorece os republicanos.

Na Nova Zelândia, a mudança foi deflagrada por um forte choque: ganhadores errados em duas eleições seguidas. Ela contou com o apoio dos dois principais partidos para a realização, em 1992, de um referendo para adoção de um sistema misto, que foi aprovado por 85% dos votantes.

As distorções produzidas pela regra majoritária manifestam-se também no Legislativo, como ocorreu no Reino Unido quando o Partido Liberal obteve um quarto dos votos mas só 3% das cadeiras. Mas lá o choque não foi suficiente para deflagrar uma mudança, e ela foi derrotada em referendo.

No Brasil também tivemos mudanças induzidas por dois choques --mensalão e petrolão. Pagamos um custo de transação exorbitante (um fundo multibilionário de campanha sem paralelo em nenhuma democracia) por uma mudança crucial: a eliminação do financiamento empresarial de campanha.

A reforma eleitoral de 2015, que proibiu coligações em eleições proporcionais e cláusula de barreira (solapando assim a farra do horário eleitoral), também representou importante avanço contra a hiperfragmentação partidária. O número efetivo de partidos políticos (NEPP) despencará de 16,4 para menos da metade após 2022. Até lá estaremos no pior dos mundos, mesmo já tendo mitigado o problema.
As lições a serem extraídas aqui são estas: o desenho institucional envolve escolhas; não há regras e modelos perfeitos; choques deflagram mudanças.

Mas isso é só parte dos dilemas atuais: as instituições são habitadas por atores com preferências, crenças, aversão ao risco e horizontes temporais distintos. Suas escolhas importam. Se as preferências entre atores relevantes estão muito apartadas, o espaço de transações políticas possíveis se contrai.

Pensar que as instituições criam incentivos uniformes que engendram escolhas similares é incorrer em hiperinstitucionalismo tolo. As instituições, os atores e suas escolhas importam.

*Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).

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