quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Roberto DaMatta* - Tudo é político

- O Estado de S.Paulo

Ouvi essa expressão quando entrei na faculdade de filosofia (feita para moças e veados, tal era o estigma, conforme algumas pessoas disseram, encorajando-me) para me bacharelar em História, e ser um merda de um professor, conforme vaticinou um médico que queria namorar a minha namorada. Estávamos nos acabados anos 50. 

Foi de professores dedicados que ouvi o axioma: “Tudo é político”. E a vida também é política? Ou haveria, além da religião, da filosofia e da coragem de honrar o Humano, uma política para o sofrimento, o inesperado e a morte? 

Fiquei aturdido com essa tonelagem que meus jovens ombros recebiam quando descobri a responsabilidade de ser um protagonista no futuro do Brasil. A descoberta da política como um modo de reler a minha existência na qual um copo d’água ou um beijo seriam um ato político, reitero, assustou-me.

Primeiro, porque passava de objeto a sujeito. Depois, porque eu percebia que a maior parte das pessoas não se dava conta de sua importância num mundo que ficava cada vez maior e menor. Quando descobri a fórmula, virei o que chamávamos de “conscientizado” por oposição aos “alienados”. Aqueles que simplesmente viviam sem ter o menor vislumbre de suas qualidades ou motivação para ir além de suas rotinas. 

Um jovem a enxergar prisões em todo lugar e eu logo vi a religião como uma delas. Depois, no auge da minha jornada, classifiquei tudo e todos como “alienados”. Seria não político o amor familiar? Gostar de filmes americanos? Ler Joaquim Nabuco? Como ser igualitário com crianças a serem nutridas e disciplinadas? Seria possível escapar de um permanente debate e destino político? 

Virei noite falando disso com meus amigos. O casamento, a paternidade e a vida profissional sem privilégios de família foram definitivos para uma parada meditativa. Sem dúvida, tudo era político. Sobretudo, era claro, para os políticos e os filhos, compadres, companheiros e amigos dos políticos. A antropologia social relativizou-me antes do livro que escrevi – Relativizando: Uma Introdução à Antropologia Social. 

Não seria mais sensato dizer que a política é uma parte importante da vida? Não seria mais inteligente descobrir que alienados e conscientizados trocam de lugar? Se todos são alienados, como queria o Simão Bacamarte da história de Machado de Assis, não seríamos nós os conscientemente alienados, conforme repetia papai aceitando sereno a minha postura revolucionária sustentada por ele – o alienado maior? 

Tempos depois, vi com nojo e decepção como o axioma de que tudo é política desembocava num outro pressuposto: o de que tudo era poder e exercer o poder em nome dos oprimidos permitia ir além de todos os limites. Também tenho vivido a oportunidade de reconstruir um outro lado – o lado de uma direita sempre envergonhada e estigmatizada, bem como alienada – jogado no lixo pela ignorância e pelo mesmo protagonismo dos condenáveis laços de família. Esses hóspedes não convidados segundo analistas políticos brasileiros. 

Assim tem sido meu aprendizado do tudo é mesmo política. 

E assim sendo, nada se pode fazer para inibir uma moralidade nacional na qual as obrigações devidas aos compadres, companheiros e parentes (sobretudo aos filhos) são uma forma silenciosa de fazer política. Ela, de fato e de direito, engloba o chamado “político”, tirando-o de sua impessoalidade – essa dimensão crítica numa democracia é concretizada pelo voto secreto. Pois o segredo e o impessoal contêm a semente da intimidade – esse avatar da liberdade igualitária.

*

Assisti feliz às comemorações dos 80 anos de Pelé – um dos maiores personagens positivos da vida brasileira. Nada roubou, a ninguém enganou com seu extraordinário talento e o peso do negrume glorioso de sua pele. 

Vida e morte ancoram a existência. Morre o ator Sean Connery, que encarnava na ficção do cinema a idealização mítica de um agente secreto estilo Pelé em luta contra o mal. Um mal sempre atenuado nas aventuras de James Bond (o simbólico Ligador) por romances sensuais machistas, porém sedutores. Quem não queria ser o 007 ou a namorada dele? 

Morto o ator, fica – eis o segredo dos mitos – o personagem na sua representação imortal a indicar que, pelo menos no cinema, o bem vence o mal.

Coisa cada vez mais complicada de acreditar neste mundo globalizado e, sobretudo, neste Brasil no qual as “fake news”, esses veículos de calúnia e mentira, são levadas a sério ao lado da burrice como política, conforme revela a questão das vacinas contra a pandemia.

– Papai, disse um amado filho para um pai idoso, afinal o 007 morreu bem. Noventa anos é um bocado de vida.

– É muito para quem tem 50, 60 ou 70 anos. Mas para mim, com 84, os 90 são um muro, tipo fronteira. Seriam mais seis curtos anos e depois...

*É historiador e antropólogo social, autor de ‘Fila e Democracia’

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