Enfim,
tornamo-nos reféns de um governo obscurantista. Mas isso tem um preço...
Desde
o início da pandemia de covid-19 ficou evidente que a saída estratégica para o
problema é a descoberta da vacina e imunização em massa. Qualquer governo mais
informado certamente estaria se preparando para esse momento. Não foi o que fez
Bolsonaro e pagaremos um preço por isso, não só na economia, mas em vidas
humanas.
Infelizmente,
na cabeça de Bolsonaro convergem dois movimentos fatais. O primeiro é a negação
da covid como doença destruidora; o segundo, uma visão obscurantista da vacina
manifestada na ênfase em seus perigos e efeitos colaterais, assim como no pavor
da obrigatoriedade, uma discussão inútil.
Bolsonaro
já declarou que achava melhor investir em remédios contra a covid-19 do que em
vacinas. De fato, destinou pouco mais de R$ 1 milhão para a pesquisa e gastou
15 vezes mais do que isso comprando hidroxicloroquina da Índia ou financiando
pesquisas com um vermífugo chamado Anitta.
O
ministro da Ciência, o astronauta Marcos Pontes, afirmou que as possibilidades
eram animadoras. Vive no espaço, assim como Bolsonaro vive numa realidade
alternativa.
Antes
de definir seus planos sobre a vacina, Bolsonaro levantou a questão da
obrigatoriedade. Ninguém, exceto o cachorro Faísca, receberia a vacina contra a
vontade.
O Brasil e quase todos os países talvez levem um ano para vacinar todo mundo. Como exigir obrigatoriedade de algo que ainda nem está disponível?
No
campo das negociações, o governo teve uma posição rígida: concentrou sua compra
numa só marca, a da Oxford/ AstraZeneca. Inicialmente, recusou a da Pfizer e
quando instado a comprar a Coronavac também a rejeitou, por ser chinesa e “do
Doria”, alegações absolutamente anticientíficas para analisar uma vacina.
A
recusa inicial da vacina da Pfizer, que esta semana foi usada na Inglaterra,
teve como argumento o fator logístico. A vacina precisa ser mantida a 70 graus
negativos. A própria Pfizer já anunciou uma embalagem com gelo seco que
conserva a temperatura da vacina.
Observando
atentamente as manifestações de bolsonaristas na rede, creio que têm uma
objeção singular à vacina da Pfizer. Uma deputada afirmou que certas vacinas
podem alterar o DNA da pessoa. Um jornalista que apoia o governo afirmou que
aceitaria as vacinas tradicionais que usam o vírus neutralizado, mas não
recomendava a experiência com as outras. As outras, e aí está um argumento
bolsonarista, são produto do avanço genético e usam a técnica de RNA
mensageiro. Pode ter sido a objeção inicial à vacina da Pfizer.
Creio,
entretanto, que Pazuello está negociando um pouco sem noção de detalhes,
trabalhando com números. Ele mesmo disse na reunião com governadores que vai
comprar todas as vacinas necessárias, se houver demanda. No universo
bolsonarista, a demanda pela vacina ainda é uma dúvida, pois acham que os
próprios preconceitos contra a ciência são generalizados.
O
governo participou do consórcio mundial para garantir a vacina, poderia vacinar
50% da população, mas preferiu uma cota de 10%. Sempre calculando por baixo.
A
única realidade com que se pode trabalhar hoje é a vacina comprada por São
Paulo, que está pronta para distribuir. Nesse caso houve cálculo estratégico,
preparação adequada. No entanto, o plano do governo de São Paulo esbarra na
Anvisa, hoje um órgão dirigido por bolsonarista que frequenta manifestações
antidemocráticas.
São
Paulo marcou data, mas esta depende da Anvisa. O governo do Maranhão já
percebeu o obstáculo e entrou no STF esperando dispensar a aprovação da Anvisa,
desde, é claro, que a vacina seja aprovada por uma das quatro agências
internacionais mencionadas numa lei específica. Ainda assim, se o governo der
um cavalo de pau na sua visão obscurantista, talvez seja um pouco tarde para
acompanhar o ritmo dos outros países.
Outros
aspectos da logística também atrasaram. Seringas e agulhas não foram
encomendadas a tempo e, segundo os produtores, não há como garantir a
quantidade necessária de uma hora para outra.
Cedo
ou tarde o Brasil conseguirá vencer o bloqueio mental de Bolsonaro e a
consequente paralisia de seu ministro da Saúde. Mas alguns meses de pandemia
significam vidas perdidas, casos de doença e internação. Significam paralisar
projetos econômicos, bloqueio de avanços pessoais e congelamento de gestos de
afeto, abraços e beijos, pela distância imposta pela pandemia.
Enfim,
tornamo-nos reféns de um governo obscurantista. Um fotógrafo foi visto com
lágrimas nos olhos no Palácio do Planalto. Ele acabara de cobrir uma
solenidade, cheia de sorridentes ministros, em que Bolsonaro e a mulher,
Michelle, abriam uma exposição do terno e do vestido que usaram na posse, em
janeiro de 2019. O fotógrafo chorou porque conhece a situação do Brasil e,
simultaneamente, é testemunha ocular do cotidiano de um governo de outro mundo.
Não há de ser nada. O Brasil agitou-se em 1904 numa revolta contra a vacina. É possível que se agite de novo numa nova revolta, desta vez a favor da vacina. A negação da covid-19, os embates contra a ciência, a desconfiança diante de vacinas que nos podem libertar da quarentena, tudo isso tem um preço para o governo, embora ainda não se possa quantificá-lo com precisão nem determinar a data exata do pagamento.
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