terça-feira, 29 de dezembro de 2020

José Eli da Veiga* - Adeus ao IDH

- Valor Econômico

É preciso nova métrica do desenvolvimento humano, embutindo as “pressões planetárias” no IDH

É bem difícil saber quais poderiam ser esperanças minimamente realistas para a década a se iniciar nesta sexta-feira. Mas nada parece superar a importância da manutenção de uma governança global capaz de, ao menos, evitar conflito nuclear. Por isto, não fosse o temor da expiração do tratado ‘New START’, apenas duas semanas depois da posse de Joe Biden, não deveria ser outro o motivo de maior celebração neste fim de ano.

Supondo a permanência de tal mínimo de governança global, quais poderiam ser, então, expectativas plausíveis sobre o futuro da humanidade, em meio às inevitáveis pandemias a se somarem às outras consequências dos graves retrocessos ecológicos? Seria razoável apostar em avanços do processo civilizador, comparáveis à média dos últimos 200 anos? Ou, com extremo otimismo, dos últimos 70?

Boas respostas poderão emergir de debate sobre o trigésimo relatório do Pnud, intitulado “A próxima fronteira: desenvolvimento humano e o Antropoceno”. Tal “fronteira” seria o término das piores pressões dos humanos sobre o planeta, entre as quais se destacou, em 2020, a encrenca dos patógenos zoonóticos. Para sobreviver e prosperar, diz o Pnud, será necessário encontrar um caminho para o progresso respeitoso do entrelaçamento dos destinos dos humanos e da biosfera. Hoje, carbono e crescente dilapidação da biosfera estão minando, em vez de expandir, as oportunidades para os mais desfavorecidos.

Em decorrência, torna-se imprescindível adotar uma nova métrica do desenvolvimento humano, embutindo as “pressões planetárias” no IDH, mediante ajuste baseado na média aritmética de dois fatores: emissões de dióxido de carbono per capita e “pegada material” per capita. Esta “pegada” expressa o total de materiais necessários ao atendimento da demanda nacional de bens e serviços, inclusive os extraídos alhures. Por “materiais” entende-se essencialmente: biomassa, combustíveis fósseis e minérios em geral.

Inevitavelmente, países “mais desenvolvidos” se excedem nas emissões de carbono e na extração de materiais, como se vê nas duas primeiras colunas da tabela. Consequentemente, o Antropoceno exige a renovação do IDH, em versão agora acompanhado da letra ‘p’: o IDHp. Este novo índice encurta bastante a distância entre os extremos: grupos de países com desenvolvimento considerado “altíssimo” e “baixo”, como mostram as outras duas colunas da tabela. De 0,385 (0,898 - 0,513), para 0,252 (0,760 - 0,508). Um hiato 34% menor, se métrica mais adequada ao Antropoceno substituir a mais tradicional, adotada nos últimos trinta anos.

Alguns casos ilustram melhor as implicações de tal mudança. A começar por países riquíssimos, com imensas pegadas materiais, mas também petroditaduras, com assombrosas emissões per capita.

A pegada material de Luxemburgo chega a 105,6 toneladas per capita, engendrando IDHp 46% inferior ao singelo IDH. No Qatar, a queda é de 31,5% porque as emissões de dióxido de carbono per capita atingem 38 toneladas. No extremo oposto, estão países como Filipinas, Sri Lanka e Costa Rica, com irrisórias diferenças entre IDHp e IDH.

Evidentemente, emissões e cargas per capita geram distorção favorável aos países mais populosos. Enquanto o IDHp dos Estados Unidos é 22,5% inferior a seu IDH, esta diferença é de apenas 11,8% para a China. O mesmo ocorre quando se compara Canadá ou Austrália, à Índia ou Rússia.

Mesmo assim, é forçoso indagar o quanto tão bem-vinda inovação do Pnud poderá ajudar no monitoramento dos dezessete ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável), assumidos, em 2015, pela adoção da Agenda 2030. Principalmente, devido às dificuldades de se estabelecer algum alvo abrangente, capaz de dar unidade e consistência a tantos objetivos. Os indicadores que vêm servindo para monitorar os ODS precisam contar com alguma imagem mais sintética e emblemática, como foi bem destacado pela revista Ciência & Cultura vol. 71, nº 1, no início de 2019.

Claro, continua a ser das mais instigantes a ambição de se encontrar alguma fórmula consensual que seja capaz de comunicar, de modo bem sucinto, os avanços de cada país na direção do desenvolvimento sustentável. Em tal contexto, o surgimento do IDHp é encorajador.

Caso venha a ser mantido um mínimo de governança global, a troca do IDH pelo IDHp já será um ótimo progresso rumo a 2030. Melhor ainda se também vier a ser consolidado pelo IDH ajustado à desigualdade (IDHad), lançado em 2019.

Tomara que o Pnud esteja trabalhando nisso.

*José Eli da Veiga, professor sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP:

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