quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Luiz Carlos Azedo - Quem chega por último

- Correio Braziliense

Pode ser que a estratégia de reaproximação do governo brasileiro com a Casa Branca se dê pelo baixo instinto, ou seja, pela via do alinhamento contra a China

Citando o Hino dos Estados Unidos — “a terra dos livres e o lar dos corajosos” —, o presidente Jair Bolsonaro reconheceu, ontem, a eleição do presidente Joe Biden, um dia após o democrata ter sido referendado pelo colégio de delegados que consagra o resultado das urnas. Foi o penúltimo chefe de Estado a fazê-lo; falta, ainda, o norte-coreano Kim Jong-Un. Vladimir Putin, da Rússia, e López Obrador, do México, também enviaram suas mensagens. Como a aposta de Bolsonaro era a reeleição de Donald Trump, que defendeu abertamente, inclusive, endossando suas acusações de que a apuração das urnas estaria sendo fraudada, não será fácil a reconstituição das relações com a Casa Branca. Como se diz na política, só quem chega primeiro bebe água limpa…

A mensagem de ontem não deixa, porém, de ser um marco na nossa política externa. É o registro de um fracasso retumbante do chanceler Ernesto Araújo, que apostou na construção de um eixo político-ideológico reacionário nas relações internacionais, cujo vértice era Donald Trump. Uma política negacionista do
aquecimento global, da pandemia do novo coronavírus e de guerra comercial com a China, que nunca teve a menor chance de dar certo. A evidência de que Trump fracassaria veio logo que a União Europeia passou a obstruir suas iniciativas nos foros internacionais, principalmente na questão ambiental. Um outro sinal foi a guinada de Boris Johnson em relação à pandemia da covid-19, após contraí-la.

Isso significa que Bolsonaro dará um cavalo de pau na política externa brasileira? A torcida para que isso aconteça é muito grande, mas não há sinais de que isso venha a ocorrer no curto prazo, a não ser que Ernesto Araújo seja demitido. Pode ser que a estratégia de reaproximação do governo brasileiro com a Casa Branca se dê pelo baixo instinto, ou seja, pela via do alinhamento contra a China. Não é à toa que Xi Jinping não enviou, ainda, sua mensagem pessoal de congratulações a Joe Biden, embora a chancelaria chinesa já tenha reconhecido sua eleição. Ainda não está claro qual será a nova política norte-americana em relação à China, por causa da disputa comercial entre os dois países, principalmente na área de tecnologia.

Um dos grandes equívocos da política externa de Trump foi retirar os Estados Unidos da Aliança do Pacífico, um êxito diplomático do seu antecessor, Barack Obama. Isso abriu espaço para que a China entrasse no acordo comercial dos países asiáticos. Negociado desde 2012, com o nome de Parceria Comercial Regional Abrangente (RCEP), na sigla em inglês, reúne 15 países, sem os Estados Unidos, somando 2,1 bilhões de consumidores e 30% do PIB mundial. China, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia assinaram o pacto, com os 10 países da Associação de Nações do Sudeste Asiático: Indonésia, Tailândia, Singapura, Malásia, Filipinas, Vietnã, Myanmar, Camboja, Laos e Brunei. Somente a Índia ficou fora, temendo a concorrência chinesa, mas ainda pode entrar no acordo.

Internet
É muito provável que Biden mantenha, em termos mais elegantes e sofisticados, a guerra comercial com a China. Pode ser que a tentação de Bolsonaro, para se reaproximar da Casa Branca, seja manter o alinhamento do governo brasileiro com os Estados Unidos nesse contencioso. É aí que mora o maior perigo, pois a sobrevida da atual política externa, nessas condições, pode ter consequências terríveis de médio e longo prazos para a nossa economia, porque a China é o nosso maior parceiro comercial. O divisor de águas, com toda certeza, será a forma como a tecnologia 5G será implantada no Brasil.

A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) deve realizar o leilão das faixas de 5G no primeiro semestre de 2021. Por elas vão passar os dados que chegam aos nossos smartphones, numa velocidade que permitirá implantar a chamada “internet das coisas”. Em outubro passado, os Estados Unidos pressionaram o governo brasileiro para que banissem da disputa a gigante chinesa Huawei, que já tem forte presença no Brasil, como fornecedora de equipamentos e serviços. Ofereceu em troca US$ 1 bilhão em financiamentos de projetos nas áreas de energia, infraestrutura e telecomunicações. Na ocasião, o conselheiro de segurança dos Estados Unidos, Robert O’Brien, disse que a empresa chinesa poderia ter acesso a informações sigilosas do governo e de empresas.

Esse posicionamento vai na contramão da orientação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que recomendou ao Brasil não restringir a competição entre os fornecedores de tecnologia 5G. Mesmo assim, o governo brasileiro resolveu apoiar a Clean Network (Rede Limpa), iniciativa de Trump para limitar o avanço chinês nas redes de 5G. Comentário do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) sobre o tema, no Twitter, acusando os chineses de usarem a Huawei para espionagem, provocou dura reação da Embaixada da China no Brasil, também na rede social, e igual resposta do Itamaraty. Diplomatas experientes alertam para os sinais de que a China já está se reposicionando para reduzir a sua dependência alimentar em relação ao Brasil, ou seja, da importação de soja e de carnes brasileiras.

Nenhum comentário:

Postar um comentário