sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Luiz Carlos Azedo - A vacina do Natal

- Correio Braziliense

Sim, os mais fortes sobreviverão. E por que não os mais fracos? É para isso que serve a medicina. Fé e confiança na ciência, por isso, são o melhor remédio contra a desesperança

Talvez esse seja o pior Natal de nossas vidas, em termos sociais, é claro, porque a experiência de vida de cada um é que determina a avaliação. Festa que congrega a família, confraterniza os amigos, dissemina amor e solidariedade, neste ano, a data magna do cristianismo, que é comemorada por todas as religiões ecumênicas, está sendo marcada pela maior tragédia humanitária já vista por nossas gerações, desde a Segunda Guerra Mundial. Aqui no Brasil, só não é maior por causa do nosso Sistema Único de Saúde (SUS), público e universal, apesar de um presidente da República que, com seu negativismo, no combate à crise sanitária, sabota seu povo, seu governo e, em última instância, a si próprio.

Entretanto, é Natal. Os miseráveis, os enfermos, os condenados, todos sem exceção, de alguma forma, são acarinhados com votos de esperança e compaixão. Os poetas, os cantores, os cronistas, todos que podem espalhar amor e esperança se encarregam de fazer chegar sua mensagem àqueles que estão na pior. De igual maneira, os trabalhadores dos serviços essenciais, de plantão, mesmo privados da convivência com suas respectivas famílias, com sua labuta, principalmente os cientistas e o pessoal da saúde, mandam o recado: confiem, estamos cuidando de vocês. A magia do Natal é uma enorme força transformadora da sociedade, no sentido civilizatório, mesmo agnósticos e ateus devem reconhecê-lo.

A propósito, o biólogo evolucionista Richard Dawkins, no livro O Gene egoísta, publicado em 1976, sua obra-prima, tenta explicar a evolução biológica ao mostrar como certas moléculas replicadoras (ancestrais dos genes) poderiam ter evoluído de modo a formar as primeiras células e, a partir daí, todos os seres vivos existentes. O microscópico encontro de um vírus com uma bactéria, por exemplo, é um grande evento histórico da criação, que se reproduz na natureza a todo instante e provoca mutações genéticas. A covid-19 é fruto desse fenômeno.

Dawkins tentar explicar o problema profundo de nossa existência ao sugerir que os organismos vivos são sofisticadas máquinas de sobrevivência, eficientemente moldadas pelo processo de evolução para promover a replicação sexuada dos genes nelas contidos. Entretanto, essa abordagem levanta sérios questionamentos filosóficos. Seremos meros replicadores de genes, controlados por eles. Onde entra a consciência? Dawkins afirma que genes não têm vontades próprias ou valores morais. Aqueles genes que apresentam um comportamento que seria visto como egoísta pelos seres humanos são os que se mantêm representados dentro dos genomas das espécies, ao longo do processo evolutivo, com o passar dos anos e milênios. O altruísmo seria uma estratégia de sobrevivência, principalmente nos seres humanos.

Eugenia
Genes são polímeros químicos de fósforo e carbono, associados a uma molécula de açúcar e bases nitrogenadas, encapsulados em duas fitas reversas e complementares; ou seja, genes são codificados em moléculas de DNA. Dawkins sugere uma forma de seleção natural darwiniana na qual as moléculas quimica- mente mais estáveis perduravam — enquanto aquelas mais instáveis eram destruídas. A evolução sempre dependeu da adaptação, uma molécula mais estável é mais adaptada ao universo em que vivemos. Assim como existe luta pela sobrevivência na sociedade humana, existe, também, num ambiente molecular.

Hoje, sabemos que os replicadores que sobreviveram foram aqueles que construíram as máquinas de sobrevivência mais eficazes para morarem; aqueles que foram menos aptos não deixaram descendentes. Cerca de 4 bilhões de anos depois, Dawkins explica: “Com certeza, eles não morreram, pois são antigos mestres na arte da sobrevivência. (…) Eles estão em mim e em você. Eles nos criaram, corpo e mente. E sua preservação é a razão última de nossa existência. Transformaram-se, esses replicadores. Agora, eles recebem o nome de genes e nós (todos os organismos vivos) somos suas máquinas de sobrevivência.”

O gene passa de corpo em corpo através das gerações, manipulando as máquinas de sobrevivência por meio de instruções escritas em linguagem digital (A, C, T e G), abandonando tais corpos mortais na medida que eles vão ficando senis e duplicando-se em sua prole. As instruções dizem basicamente: copie-me, ou seja, viva e reproduza. A reprodução é o processo de cópia dos genes, é o processo que os mantém vivos ao longo dos tempos. Socialmente falando, porém, essa eugenia (seleção de certos genótipos para a reprodução em lugar de outros) é totalmente inaceitável. Lembra as teorias de superioridade ariana e o Holocausto.

Sim, os mais fortes sobreviverão. E por que não os mais fracos? É para isso que serve a medicina. A postura do presidente Jair Bolsonaro em relação à pandemia do novo coronavírus — “a melhor vacina é pegar o vírus” — é um inaceitável darwinismo social. Fé e confiança na ciência, por isso, são o melhor remédio contra a desesperança. Que venham as vacinas contra a covid-19. Feliz Natal!

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