terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Maria Clara R. M. do Prado* - Uma proposta esdrúxula

- Valor Econômico

É função do Estado evitar catástrofes maiores que comprometam a segurança

Em artigo publicado neste jornal no dia 02 de dezembro último, o professor Luiz Carlos Bresser-Pereira propôs que os investimentos públicos em projetos de infraestrutura sejam financiados com emissão de moeda pelo Banco Central, na base de 5% do PIB por ano. Seria, segundo ele, uma alternativa para contornar a dificuldade do governo em gerar poupança, algo que se arrasta desde a década de 80, e tirar o país da estagnação econômica.

Bresser deixa claro que sua ideia extrapola o caráter emergencial dos gastos extraordinários necessários para aliviar o impacto negativo da covid-19 na economia. O uso de emissão monetária para financiar investimentos, conforme imaginado por ele, ganharia status permanente no arcabouço das políticas governamentais, com inscrição na Constituição da República e previsão no orçamento federal.

Não seria, portanto, algo passageiro. Uma agência ou órgão, cujo formato não se conhece ainda muito bem, emitiria títulos atrelados a projetos de infraestrutura, papéis esses que receberiam financiamento monetário do BC. Alguns aspectos foram discutidos no seminário de economia da FGV realizado no mesmo dia 02 entre Bresser-Pereira e o coautor da proposta, Nelson Marconi, com a participação, em total sintonia, de André Lara-Resende, que tem defendido o uso da emissão monetária para financiar gastos públicos. A premissa é de que a inflação está baixa, sob controle, e permanecerá assim por muitos e muitos anos até que a economia volte a ser pressionada pelo excesso de demanda.

Na ausência de inflação, a taxa de juros perde a função de principal instrumento de controle monetário, podendo cair a níveis negativos em termos reais, como ocorre na Europa, sob risco, no extremo, da moeda voltar a ser guardada debaixo do colchão. Isso só não ocorre pela facilidade de pagamentos propiciada pelos meios digitais. Por razões de segurança, o dinheiro é mantido em conta corrente nos bancos, uma liquidez imediata em busca de ativos que possam garantir algum rendimento, como ações, imóveis, automóveis e até dólar.

A ideia de que a conjuntura monetária é propícia ao recurso da emissão de moeda como forma de aliviar as pressões do déficit e do endividamento público ressurgiu das cinzas a partir da crise de 2008, estimulada pela prática do QE (quantitative easing) - ou injeção de liquidez - promovida pelos bancos centrais dos países desenvolvidos. A iniciativa criou um novo paradigma e ajudou a propagar a chamada MMT (Modern Monetary Theory) que prega uma política fiscal expansionista, sob a alegação de que a dívida pública denominada em moeda local sempre poderá ser paga pelo governo com emissão monetária, a custo zero.

Vale aqui um parêntesis. Constitucionalmente, o uso da prerrogativa de emissão e controle da moeda pertence à União, sendo exercida em caráter de exclusividade pelo Banco Central do Brasil, algo que oferece garantia implícita de pagamento a todo e qualquer título da dívida pública federal, uma característica especial que sempre diferenciou aqueles papéis dos demais. Portanto, a alegação da MMT não é novidade e não acrescenta argumento novo à discussão.

Separar alhos de bugalhos, além de atentar para os detalhes envolvidos na questão, torna-se fundamental para que se possa definir do que se está a falar e quais as implicações decorrentes.

Primeiramente, faz-se relevante notar que uma política fiscal expansionista é recomendada em épocas de profunda retração como a que se vive agora. Não faz sentido falar-se em teto de gasto ou em meta fiscal quando a economia está em retrocesso, sem perspectivas de recuperação nos curto e médio prazos. É função do Estado evitar catástrofes maiores que comprometam a segurança. Em uma pandemia, é disso que se trata.

Sobre isso estão de acordo economistas renomados como Larry Summers, Kenneth Rogoff e Olivier Blanchard. Com a inflação perto de zero, admite-se que não haja risco do uso circunstancial da emissão monetária para amenizar os efeitos do desastre em caráter temporário.

Segundo, há que entender a finalidade da política de QE. Seu objetivo é claro: tirar do mercado títulos de longo prazo com baixa perspectiva de retorno, a maioria privados, de modo a garantir, assim, o funcionamento das operações financeiras e da economia, em suma. Vários tipos de papel têm sido recomprados do mercado em geral, estejam eles nas carteiras dos bancos, nas gavetas das empresas, na contabilidade dos fundos imobiliários ou nos escaninhos responsáveis pelas dívidas municipais, no caso norte-americano, por exemplo. Nunca se pretendeu promover o investimento nem o crescimento com o mecanismo.

Deve-se ressaltar que as operações de QE se realizam no mercado secundário, uma vez que o BC adquire papéis já previamente negociados. Ou seja, a intenção dos BCs sempre foi a de evitar o colapso do mercado através de injeção de liquidez que será em algum momento recolhida quando os papéis forem devolvidos aos detentores originais. O processo estava em vias de desativação nos Estados Unidos quando surgiu a covid-19, obrigando o FED a recorrer novamente ao QE como meio de prover liquidez ao setor privado.

A proposta de Bresser prevê financiamento com moeda para títulos de emissão primária, ou seja, aporte de liquidez adicional, para além da já existente no sistema monetário. O BC exerceria a função de banco comercial, com a concessão de empréstimos a investimentos de longa maturação, algo que foge totalmente da função típica de regulador da liquidez.

Ao contrário de um banco comercial que intermedia a aplicação do dinheiro entre o poupador e o devedor, o BC concederia crédito gerado a partir do uso da prerrogativa única da União de emitir moeda. Para além disso, não está claro quem assumiria o risco da operação. O pessoal do MMT poderia alegar que, diante de um default do tomador de crédito (o investidor), o BC sempre poderia produzir mais dinheiro para compensar a agência/órgão responsável pelo título representativo do investimento, ou seja, a União, no frigir dos ovos.

O ponto é importante, apesar do tamanho dos agregados monetários, que se acumulam a partir da emissão primária de moeda com os diferentes tipos de aplicação financeira (do ponto de vista do público), não fazer diferença hoje em dia para a política monetária.

Por fim, fica no ar, à espera de comprovação, a premissa de que a inflação permanecerá perto de zero por muitos e muitos anos. Será que estamos todos fadados a viver em um mundo de irremediável e eterna retração econômica, onde a única e inofensiva tábua de salvação é a máquina de fazer dinheiro?

*Maria Clara R. M. do Prado, jornalista, é sócia diretora da Cin - Comunicação Inteligente e autora do livro “A Real História do Real”.

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