sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

Milagre de Natal – Opinião | O Estado de S. Paulo

Com as incertezas nas eleições no Congresso, seria preciso que o presidente Bolsonaro finalmente assumisse as funções políticas inerentes a seu cargo. Algo como um milagre de Natal.

 Sem partido e sem qualquer habilidade para construir uma base no Congresso, o presidente Jair Bolsonaro chega à metade de seu mandato mais fraco do que nunca. Sua sobrevivência política agora depende exclusivamente dos humores do Centrão, punhado de partidos fisiológicos que prometem manter o presidente no cargo e ajudar a blindar sua família encrencada na Justiça até o momento em que isso lhes for conveniente.

O aspecto mais grave da fragilidade do presidente, num regime presidencialista, é que o governo não tem qualquer controle sobre a pauta legislativa, deixando a cargo do Congresso a tarefa de determinar as prioridades e ditar o ritmo da política.

Na terça-feira passada, dia 22, a Câmara dos Deputados deu mais um dos muitos exemplos dessa confusão. O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, pautou a votação de uma emenda constitucional que aumenta o repasse da União para o Fundo de Participação dos Municípios, projeto que a equipe econômica considera inviável. No entanto, os parlamentares governistas silenciaram, deixando à equipe econômica a tarefa de advertir sobre os riscos fiscais embutidos na aprovação da medida.

Neste, como em outros casos, o desfecho não depende dos desejos da equipe econômica nem do outrora poderoso ministro Paulo Guedes, mas sim exclusivamente do jogo político do Congresso, às voltas com a sucessão de suas Mesas Diretoras, o que agrava o clima de incerteza.

A depender do resultado da eleição para as presidências da Câmara e do Senado, em fevereiro, é possível que o Congresso, que já não é conhecido exatamente por sua parcimônia com o dinheiro público, abandone o caminho das reformas e acelere gastos, tendo em vista imperativos eleitorais. E o governo, com o chefe que tem, pouco pode fazer a respeito. Ao contrário, é provável que parte da previsível gastança seja estimulada pelo próprio Bolsonaro, interessado em auferir lucros demagógicos na sua campanha pela reeleição.

Assim, Bolsonaro começará a segunda metade de seu mandato exatamente como está terminando a primeira: como mero espectador da pugna parlamentar. Desinteressado de montar seu próprio partido, Bolsonaro age como se ainda fosse um deputado do baixo clero. A reboque do Centrão, o presidente renunciou àquela que talvez seja a principal tarefa de um presidente: liderar.

É claro que Bolsonaro não lidera pela simples razão de que não tem nenhuma competência ou inclinação para isso. Mas que ninguém se engane: o presidente é especialista em fazer-se onipresente na vida nacional. Raros são os dias em que Bolsonaro não manifesta alguma opinião grosseira ou irresponsável, chamando para si os holofotes da mídia e causando indignação. 

Se é uma tática ou simplesmente da natureza do presidente, pouco importa: o fato é que, enquanto o País gasta suas energias discutindo as barbaridades presidenciais, o Centrão se organiza e amplia sua influência no governo, tornando-se seu verdadeiro esteio.

Para o País, é o pior dos mundos. Um governo ausente do debate político estimula o protagonismo do Congresso, que seria natural num regime parlamentarista, mas é exótico – e arriscado – no presidencialismo. Arriscado porque, sem um Executivo atuante e determinado, o Legislativo, por sua natureza multifacetada e por ser permeável a pressões de todo tipo, dificilmente alcança a convergência necessária para tomar as decisões graves que o País demanda. E o presidencialismo não tem os mecanismos naturais de correção de erros políticos que tem o parlamentarismo. O mais provável é que, deixado à sua própria sorte, o Congresso se consuma em lutas internas, postergando as reformas, atrasando a retomada do desenvolvimento e ampliando a crise fiscal.

Nos últimos dois anos, o desastre foi evitado porque a liderança do Congresso estava entregue a políticos habilidosos e responsáveis o bastante para arrancar um raro consenso em torno das reformas. Mas o comando da Câmara e do Senado vai mudar em breve, e nada garante que a próxima direção terá esse mesmo compromisso com o futuro do País. Por essa razão, mais do que nunca, seria preciso que o presidente Bolsonaro finalmente assumisse as funções políticas inerentes a seu cargo. Algo como um milagre de Natal.

Ócio letal – Opinião | O Estado de S. Paulo

Os representantes do povo têm a obrigação moral de suspender o recesso este ano

No dia 31 encerra-se a vigência do decreto que declarou o estado de calamidade no País. Mas a calamidade que nos aflige não acabará por decreto. O Brasil contabiliza quase 190 mil mortos pela covid-19. No dia 1.º de fevereiro, data prevista para o fim do recesso parlamentar, serão mais de 200 mil. Tanto pior quando as curvas de contágio e mortalidade estão em plena ascensão e uma mutação do vírus, 70% mais contagiosa, acaba de ser descoberta.

“O vírus não faz recesso. Já perdemos 180 mil vidas e não existe vacina, nem plano, nem prazo”, alertou o senador Renan Calheiros (MDB-AL). “Fazer recesso, neste ano excepcional, para continuarmos em casa, é um acinte à sociedade.” O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), apoiou a suspensão do recesso: “Com o agravamento da pandemia, o Congresso precisa estar atuante ao lado da população, contra o vírus”. Engrossaram o coro vozes dos mais variados timbres ideológico-partidários, como a deputada Gleisi Hoffmann (PR), presidente do PT, e os senadores Tasso Jereissati (PSDB-CE), Major Olímpio (PSL-SP) e Kátia Abreu (PP-TO), além do vice-presidente, Hamilton Mourão.

A atual legislatura iniciou seu mandato com notável ímpeto reformista, cuja expressão maior foi a Reforma da Previdência. Mas tão logo esse objetivo comum, herdado do governo Temer, foi consumado no 2.º semestre de 2019, a desarticulação do governo e o seu obtuso senso de prioridades se fizeram sentir.

Então veio o desastre.

O Congresso, quase que à revelia do governo, aprovou medidas importantes, notadamente o Orçamento de Guerra e o auxílio emergencial. Mas as reformas, que já vinham sendo procrastinadas pelo governo antes da pandemia, o foram ainda mais por ele, e ainda um pouco mais pelas eleições municipais. Encerrado o período eleitoral, esperava-se que o governo apresentasse uma agenda enérgica para enfrentar o tenebroso ano de 2021 – mas nada. Para piorar, enquanto o presidente Jair Bolsonaro pisoteava todo o País em comícios precoces, os trâmites parlamentares foram perturbados pelas obsessivas investidas contra a Constituição do próprio presidente do Congresso, Davi Alcolumbre (DEM-AP), para viabilizar sua reeleição.

O Orçamento de 2021, que deveria ser aprovado em 2020, está em aberto. Na mesma fila de urgência estão a PEC Emergencial apresentada em 2019, fundamental para garantir o controle dos gastos públicos num momento de aumento de despesas e aperto fiscal; e o Projeto de Lei 137/20, que cria fontes de recursos para o enfrentamento da pandemia. Das reformas tributária e administrativa nem se fala.

Com o fim do auxílio emergencial, ninguém sabe como serão amparados milhões de famílias pobres e miseráveis sem fonte de renda num momento em que recrudescem as medidas de isolamento. O senador Tasso Jereissati propôs uma Lei de Responsabilidade Social como alternativa ao auxílio emergencial, mas, a vigorar o recesso, o projeto só começará a ser discutido, na melhor das hipóteses, em fevereiro. Enquanto isso, sobre a vacinação – único e último recurso contra a epidemia letal – um Ministério da Saúde disfuncional só transmite dúvidas para a população justamente angustiada.

Não à toa o governo não moveu um dedo para suspender o recesso: além da apetitosa oportunidade de um mês inteiro sem os freios e contrapesos do Poder Legislativo, o Planalto perscruta nisso uma oportunidade de enfraquecer o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, enquanto tenta emplacar seu candidato à presidência da Casa, Arthur Lira (PP-AL), titular de alentada capivara. Para não deixar dúvidas quanto ao seu desinteresse interesseiro, o presidente Bolsonaro nem sequer pagou o tributo da hipocrisia que o vício presta à virtude, e tirou férias para pescar nas praias catarinenses.

É um lugar comum se referir a anos marcados por rupturas como “o ano que não acabou”. A rigor, 2020 só acabará com a erradicação do vírus. Em respeito aos milhões de brasileiros que não podem tirar férias – porque não têm emprego –, às dezenas de milhares que foram vitimados pela covid-19 e a todos que esperam pelo fim desse pesadelo com a vacinação, os representantes do povo têm a obrigação moral de suspender o recesso.

O potencial produtivo dos jovens – Opinião | O Estado de S. Paulo

O MEC não tem plano para multiplicar a oferta de cursos profissionalizantes

Tendo a pandemia prejudicado o aprendizado das crianças ao fechar as escolas, substituindo o ensino presencial pelo ensino virtual, as gerações de brasileiros nascidos nos últimos quatro a cinco anos poderão chegar ao mercado de trabalho, no futuro, com apenas 55% do seu potencial produtivo desenvolvido. Por isso, dificilmente conseguirão entrar no mercado formal de trabalho. 

A estimativa é do Banco Mundial. Diante da velocidade das transformações tecnológicas, que estão reconfigurando o mundo do trabalho, somente terão vez os jovens com formação especializada e capacitação técnica, diz o órgão, que acaba de aprovar um empréstimo de US$ 1 bilhão ao Brasil. A condição é que esse dinheiro seja destinado às famílias que estão na fila de espera do Bolsa Família. Segundo o Banco Mundial, essas famílias envolvem um total de 3 milhões de pessoas, muitas delas em situação de vulnerabilidade, necessitando de apoio continuado em 2021 e em 2022. 

Jovens sem remuneração básica terão remuneração mais baixa e, se encontrarem algum emprego, certamente será na economia informal, gerando menos benefícios para a sociedade, afirma – no mesmo sentido da advertência do Banco Mundial – o estudo As consequências da violação do direito à educação, feito pela Fundação Roberto Marinho e pelo Insper. Ele prevê que 17% dos brasileiros na faixa etária entre 15 e 17 anos não conseguirão concluir o ensino básico, o que corresponderia a um total de 575 mil jovens. “Esses jovens não são bens materiais, mas o principal e gigantesco ativo que um país possui”, dizem os responsáveis por esse estudo, Wilson Risolia, Ricardo Paes de Barros, Laura Machado e Juliana Leitão. 

Diante do impacto que esse problema poderá causar na ampliação da informalidade, no aumento da exclusão social e na elevação da criminalidade, a única saída seria uma oferta imediata de cursos profissionalizantes de curto prazo, diz Ricardo Henriques, diretor executivo do Instituto Unibanco, que apoia projetos de melhoria de gestão escolar elaborados por Estados e municípios. “Precisamos de uma blitz para o período de 2021 a 2023, uma vez que a expansão das empresas mais intensivas em tecnologia exigirá mais mão de obra técnica numa escala muito maior do que a gente tem”, afirma. 

As conclusões desses relatórios, estudos e opiniões sobre os gargalos do sistema educacional brasileiro são convergentes. O mesmo ocorre com as soluções que estão sendo propostas em caráter emergencial, para tentar evitar o cenário sombrio previsto para as novas gerações de brasileiros pelo Banco Mundial. A implementação dessas propostas, no entanto, exige uma articulação nacional que permita a ampliação em larga escala – e no menor prazo possível – de cursos profissionalizantes capazes de assegurar a formação técnica dos segmentos menos escolarizados da juventude brasileira. 

O problema é que, desde o início do governo Bolsonaro, o Ministério da Educação (MEC) encontra-se inoperante, em estado letárgico. Dirigido por ministros ineptos, mais preocupados com questões ideológicas do que com a formulação de políticas educacionais, eles simplesmente deixaram de exercer as funções de articulação. “A economia das instituições ensinou há décadas que, nas crises, é preciso mais coordenação. No caso da educação no Brasil ocorreu o contrário. O MEC saiu de cena. Não tenho bola de cristal, mas o cenário não é otimista”, afirma Ricardo Henriques. 

Apesar de o País ter se comprometido constitucionalmente a garantir o direito à educação de todos, sem distinção de origem, raça, sexo, cor e idade, o direito à educação está sendo violado, dizem os responsáveis pelo estudo da Fundação Roberto Marinho e do Insper. Segundo eles, o MEC continua sendo incapaz de compreender que a falta de articulação do sistema educacional significa desperdício de recursos escassos. “Optou-se por gastar com o sinistro do que fazer o seguro. No Brasil não se investe em educação, gasta-se”, concluem. No que têm, infelizmente, toda a razão. 

País reduz trabalho infantil, mas quadro ainda é inaceitável – Opinião | O Globo

Fechamento de escolas na pandemia tende a aumentar presença de crianças nas ruas

Dados do IBGE divulgados na semana passada mostram que o contingente de crianças e adolescentes que trabalham no país caiu 16,8% em quatro anos. Parece boa notícia, mas definitivamente não é. A situação ainda é vergonhosa, e a redução é insuficiente para nos tirar da indigência. O total de menores que trabalham corresponde a 4,6% da população nessa faixa etária — antes eram 5,3%. Apesar da redução, pesquisadores estimam que o Brasil não cumprirá a meta de erradicar o trabalho infantil até 2025, ainda mais após uma pandemia devastadora, que causou um terremoto no mercado de trabalho.

A legislação brasileira proíbe o trabalho de crianças de até 13 anos. Aos 14, é permitido, desde que como aprendiz. Mesmo assim, de acordo com o IBGE, 1,8 milhão de crianças e adolescentes trabalhavam no Brasil em 2019 — na pesquisa de 2016, eram 2,1 milhões. Desse contingente, 15% tinham menos de 13 anos. Cerca de 700 mil crianças e adolescentes exerciam as piores formas de trabalho, as que podem pôr em risco a saúde, a segurança ou a moral dos menores. São exemplos as atividades em lavouras, fazendas de corte e madeireiras, que podem levar a ferimentos e mutilações.

Desigualdades de gênero e raça também ficam explícitas na pesquisa. O rendimento médio dos meninos era de R$ 524, contra R$ 461 das meninas (12% a menos). Crianças brancas recebiam R$ 559, enquanto pretas e pardas, R$ 467 (16% a menos). A pesquisa observou ainda que, na faixa de 16 a 17 anos, em que o trabalho é permitido, 81% estavam na informalidade.

Como os dados se referem a 2019, é virtualmente certo que este ano, durante a pandemia, o quadro se agravou. Não é preciso procurar muito para encontrar crianças trabalhando nos cruzamentos das cidades vendendo balas, limpando para-brisas de carros ou fazendo malabarismos para conseguir alguns trocados. Não que essas cenas não existissem antes da Covid-19, mas sem dúvida foram multiplicadas num cenário em que famílias perderam suas fontes de renda, especialmente as que trabalhavam nos setores informais.

Outro fator que certamente contribuiu para levar mais crianças às ruas foi o fechamento das escolas. De forma geral, governos trataram de forma desastrosa a educação na pandemia. Os colégios passaram a maior parte do tempo fechados. Mesmo os que reabriram, tardiamente, passaram a funcionar com pequeno número de alunos. No Rio, com o aumento de casos no fim do ano, optou-se por fechar escolas, mas bares não sofreram restrições, o horário do comércio foi estendido, e as praias permaneceram liberadas.

Lugar de criança é na sala de aula. Programas assistenciais, como o Bolsa Família, exigem como contrapartida que as famílias mantenham as crianças na escola, mas os controles são falhos. União, estados e municípios têm de se dedicar à questão para tirar as crianças das ruas e levá-las aos bancos escolares, como em qualquer nação civilizada. Não há saída para esse problema que não passe pela entrada da escola.

Diplomacia bolsonarista torna Brasil pária também no continente – Opinião | O Globo

Presidente se isola na região porque ignora vizinhos e prefere dar prioridade a objetivos de curto prazo

Falta muita coisa à política externa — se é que ela pode ser chamada assim — de Jair Bolsonaro. Entre tantas carências, não há a preocupação necessária e essencial com a América Latina, nem sequer com os vizinhos mais próximos. Também não se atenta para a necessidade de o presidente da República atuar como um agente da diplomacia. Nem todos têm o dom, mas um dirigente que se aproxima de seus pares presta ajuda substantiva a seu país.

Por ser movida a ideologia, a diplomacia bolsonarista também carece de visão estratégica. Se houvesse, Bolsonaro não teria se engajado na reeleição de Donald Trump como se fosse um republicano radical, sem considerar que governa um país que precisa manter boas relações com os Estados Unidos e ficar equidistante na política interna. Trump perdeu, e a diplomacia profissional do Itamaraty, ou o que resta dela, precisa agora abrir rotas de aproximação com o futuro presidente Joe Biden.

A mesma percepção fora de foco Bolsonaro tem da América Latina, para ele secundária. Nos primeiros dois anos de governo, não quis se aproximar nem de políticos com maior identificação ideológica, como Iván Duque, da Colômbia, ou Sebastián Piñera, do Chile. São raros os telefonemas que troca com presidentes da região. Evita participar de reuniões de cúpula. Não esteve nos encontros virtuais, no início de dezembro, do Foro para o Progresso e Desenvolvimento da América do Sul (Prosul) e da Aliança para o Pacífico, organizados por Piñera. Abandonou uma reunião do Mercosul, antes de Alberto Fernández assumir a presidência do bloco em nome da Argentina.

Fernández tomou posse em outubro de 2019 e só foi conversar pela primeira vez com Bolsonaro no fim do mês passado, em encontro virtual marcado para comemorar a passagem do Dia da Amizade Brasil-Argentina. Também tomou parte o ex-presidente José Sarney, artífice, ao lado do colega argentino Raúl Alfonsín, da aproximação que resultaria no Mercosul.

Sarney deu bons exemplos do que a diplomacia presidencial pode fazer. Também Fernando Henrique Cardoso, graças ao relacionamento próximo que estabeleceu com o Casal Bill e Hillary Clinton. O distanciamento de Bolsonaro em relação aos vizinhos prejudica o próprio desejo brasileiro de que o acordo do Mercosul com a União Europeia seja aprovado definitivamente.

O Brasil precisa primeiro provar que passou a combater a destruição da Amazônia, para que uma atuação diplomática conjunta com os outros integrantes do bloco possa ajudar no momento seguinte. Infelizmente, é difícil que uma política externa maniqueísta saiba aproveitar as oportunidades de aproximação, como fazem aqueles países que superam as desavenças ideológicas na busca de objetivos comuns.

Pedido indecente – Opinião | Folha de S. Paulo

STF e STJ mancham atuação na pandemia ao tentar furar a fila da vacinação

Todos são iguais perante a lei, apregoa a Constituição. Na corrida pela vacina contra a Covid-19, no entanto, os ministros do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça imaginam ser mais iguais do que os demais brasileiros.

Depois de um grupo de promotores paulistas pedir prioridade à imunização da categoria no início de dezembro, recuando após a má repercussão, coube agora às duas cortes superiores o disparate.

Ambas solicitaram à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) que fossem reservadas milhares de vacinas para seus servidores e integrantes do Conselho Nacional de Justiça. Ao que parece, para as excelências, a toga as coloca à frente de grupos de risco e agentes de saúde.

O pedido não faz sentido, inclusive, quando se leva em consideração que o Judiciário tem funcionado razoavelmente bem com o trabalho remoto, até com aumento de sua produtividade.

Como se o escárnio já não fosse evidente o bastante, o Supremo chegou a afirmar no ofício encaminhado à Fiocruz que o pedido seria “uma forma de contribuir com o país nesse momento tão crítico da nossa história”.

Ao menos o ministro Marco Aurélio Mello expressou, ao jornal O Estado de S. Paulo, discordância veemente. “Todo privilégio é odioso.”

A Fundação Oswaldo Cruz, felizmente, rejeitou o pedido vexatório das cortes superiores que, em português claro, pretendiam furar a fila da imunização na pandemia.

Os mesmos tribunais têm relutado em proteger um grupo de risco real para a contaminação pelo novo coronavírus, caso da população carcerária. O STJ indeferiu em abril deste ano um habeas corpus coletivo para os presos potencialmente mais vulneráveis à doença.

O Supremo têm resistido a conceder habeas corpus durante a pandemia —entre março e maio de 2020 atenderam-se apenas 6% dos pedidos. Somente neste mês concedeu-se o benefício a detentos de grupos de risco em presídios superlotados, em decisão do ministro Edson Fachin.

Espanta, ademais, que STF e STJ façam pouco caso do que diz a legislação: cabe ao Ministério da Saúde, não à Fiocruz, elaborar o plano de imunização nacional.

Mais uma vez o Judiciário brasileiro se comporta como se fosse uma aristocracia, envolta em benesses vultosas a custo do dinheiro público, e não um órgão republicano, responsável por garantir o direito à saúde a todos.

Mancha, com isso, seus méritos inegáveis no enfrentamento das omissões e sabotagens do governo Jair Bolsonaro na pandemia.

Contas em dólar – Opinião | Folha de S. Paulo

Com precauções, é positivo avanço do projeto que liberaliza transações cambiais

Com a aprovação do texto principal do projeto de lei 5.387/19, que dispõe sobre a legislação cambial, a Câmara dos Deputados deu mais um passo para superar um legado de restrições e facilitar as operações em moeda estrangeira.

O tema causa polêmica pelo menos desde os anos 1930, quando foi inaugurada uma tendência de fechamento do mercado de divisas no governo Getúlio Vargas, em parte como resposta aos desafios da Grande Depressão.

A legislação foi dura ao versar sobre a necessidade de coibir “o jogo do câmbio” e impor progressivas limitações de acesso. Qualquer operação que não seguisse o fluxo determinado pelo governo era considerada ilegítima. O pesado endividamento externo e a recorrência de crises tornavam o ambiente propício a regras draconianas.

Em paralelo, reduziam-se cada vez mais as possibilidades de brasileiros manterem depósitos ou celebrarem contratos em moeda estrangeira no país. Não surpreende, assim, que a suspeição em torno de qualquer transação cambial foi sedimentando-se na legislação e até na cultura nacional.

O ciclo do isolamento começou a ser rompido na década de 1990, em particular a partir do Plano Real e da normalização dos pagamentos da dívida externa, ambos em 1994. O país, desde então, passou a tratar o assunto com menos temores e preconceitos.

O novo texto, cuja votação precisa ser concluída pelos deputados e ainda passar pelo Senado, caminha na direção certa ao simplificar normativos e abrir espaço para maior fluidez do mercado.

Passa a ser possível a brasileiros e estrangeiros a compensação privada de valores, sob regras definidas pelo Banco Central. Os exportadores também poderão reter divisas no exterior sem restrições, entre outras medidas liberalizantes.

As instituições financeiras continuam obrigadas a garantir o processo lícito das operações, mas com menor risco jurídico, pois passa a ser do cliente a obrigação de informar a finalidade da transação. Os cuidados contra a lavagem de dinheiro ficam preservados.

Com poucas exceções, continua proibida a fixação de pagamento em moeda estrangeira em contratos internos. O diploma também prevê que o BC poderá regulamentar a abertura de contas em dólares e outras divisas, hoje proibida.

Alguma prudência é recomendável, dado o grau de relativa fragilidade das instituições fiscais que em última instância lastreiam a confiança na moeda brasileira, o real. Entretanto o avanço da lei se mostra importante e bem-vindo.

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