domingo, 27 de dezembro de 2020

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

Visão tacanha da vacinação amplia risco de recessão – Opinião | O Globo

Ano de 2021 começará sob a égide da incerteza, derivada da cegueira ideológica de Bolsonaro sobre vacinas

Desde que a primeira morte por Covid-19 foi confirmada no mês de março em São Paulo, as atitudes e declarações do presidente Jair Bolsonaro negam a gravidade da doença, desorientam a população e acabam por ter um efeito colateral perverso na economia. Ao dizer que não tomará vacina, ao insinuar efeitos adversos inexistentes e ao contribuir para aumentar a resistência à vacinação entre os brasileiros, Bolsonaro amplia o risco de que a recessão provocada pela pandemia se prolongue ainda mais.

O preço em vidas continua a aumentar dia após dia. Enquanto o número de mortes se aproxima dos 200 mil, o desemprego atingiu a taxa recorde de 14,6% da população ativa no terceiro trimestre, ou 14,1 milhões. Bolsonaro continua a insistir que a culpa pela paralisia econômica cabe às medidas de contenção, como distanciamento ou uso de máscaras, não à insegurança trazida por um vírus insidioso que põe todos sob o risco de morte. Seu grau de incompreensão da realidade — como, de resto, o de boa parte dos empresários e políticos brasileiros — é aterrador.

É triste que tantos ainda creiam em delírios comprovadamente falsos, como os poderes mágicos da cloroquina e de vermífugos, ou que a esta altura ainda citem a estratégia sueca da “imunidade de rebanho” como modelo de preservação da atividade econômica. Dias atrás, o próprio rei da Suécia, Carl XVI Gustaf, admitiu que o país “fracassou”. O número de mortos por lá ultrapassa a soma dos vizinhos Dinamarca, Noruega e Finlândia, mais rígidos nas medidas preventivas, por isso com perspectivas melhores na economia.

A saída para a crise que se abateu sobre o planeta é conhecida: a vacina, justamente aquilo que Bolsonaro desdenha. Quanto mais a vacinação em massa demorar, mais estagnada a economia ficará e maior o risco de uma nova recessão (basta ver o fuzuê que tomou conta dos mercados quando uma nova linhagem do vírus pôs em dúvida a eficácia dos imunizantes disponíveis).

A própria equipe econômica sabe disso. Em encontro com investidores internacionais, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, disse ser mais barato vacinar a população do que estender o auxílio emergencial. Não é uma visão só financista. A vacina é a única ferramenta capaz de erradicar epidemias salvando vidas.

Por influência de Bolsonaro, porém, tudo atrasou no Brasil: encomenda das vacinas, seringas, agulhas e outros materiais. A guerra política com o rival João Doria em torno da CoronaVac, produzida no Brasil pelo Instituto Butantan, aumentou a ansiedade dos brasileiros, que assistiram pela televisão ao início da vacinação nos Estados Unidos e no Reino Unido. O Supremo se viu compelido a intervir em favor da vacinação obrigatória e da autonomia de estados e municípios para promovê-la.

Uma das cegueiras mais espessas é a ideológica, como tem demonstrado diuturnamente a visão tacanha de Bolsonaro no decorrer de toda a pandemia. O ano de 2021 começará sob a égide da incerteza em relação à vacinação. O próprio Bolsonaro pagará o preço político se a recessão for prolongada.

Cidades ainda estão despreparadas para crescimento súbito de ciclistas – Opinião | O Globo

Pandemia fez explodir a venda de bicicletas no país. Aumentar a segurança nas ciclovias é desafio

O aumento no número de bicicletas nas cidades tem se revelado um efeito saudável destes tempos de pandemia. Segundo a Associação Brasileira do Setor de Bicicletas (Aliança Bike), as vendas nos meses de setembro e outubro registraram aumento de 64% em relação ao mesmo período do ano passado. Em julho e agosto, os negócios foram ainda melhores, com crescimento de até 114%.

Uma explicação para a tendência está relacionada ao risco de contágio pelo novo coronavírus e às restrições impostas pelas autoridades de saúde. Com academias fechadas durante meses, muitos procuraram manter a forma em atividades ao ar livre. Ao menos nos pequenos trajetos, a bicicleta passou a ser também uma opção ao transporte público, onde aglomerações são quase inevitáveis.

Mas nem tudo gira à perfeição nesse mundo de duas rodas. Grandes cidades como São Paulo ou Rio construíram vasta malha de ciclovias e ciclofaixas, mas não conseguiram torná-las seguras. A expansão parece ter sido motivadas mais pela visibilidade política do que pela necessidade real de uma população que sofre com a deficiência de transporte no dia a dia e não tem como trocar o ônibus pela bike simplesmente porque apareceu uma ciclofaixa.

O atropelamento e morte da ciclista Marina Kohler Harkot, de 28 anos, numa ciclovia na Zona Oeste paulistana na madrugada de 8 de novembro, chocou a cidade e revelou como a segurança dessas vias é precária. Marina, que coordenava a Associação de Ciclistas Urbanos de São Paulo, era uma defensora árdua da atividade. Infelizmente, não foi caso isolado. Entre janeiro e outubro, 17 ciclistas morreram nas vias do Distrito Federal. A relação entre ciclistas e motoristas é selvagem — e trágica.

Não se pode esquecer que o governo de Jair Bolsonaro flexibilizou as normas de trânsito e, entre outras medidas, aumentou de 20 para 40 a pontuação necessária para cassação da carteira de habilitação. Deu a infratores contumazes a chance de cometerem o dobro de barbaridades ao volante.

Não basta construir ciclovias ou pintar faixas de vermelho em avenidas movimentadas achando que se oferece opção de mobilidade à população. Ainda que ciclistas sejam um grupo minoritário, é preciso garantir-lhes segurança. Isso não se faz apenas com boas intenções, mas com políticas públicas, campanhas educativas, punição a quem descumpre a lei, adequação das ciclovias às normas de segurança.

O aumento súbito das bicicletas durante a pandemia pode ser uma oportunidade para que as cidades trabalhem por um trânsito mais amigável, em que carros, motos, ônibus, bikes — e pedestres, claro — convivam de forma civilizada. Tendo como guia as leis de trânsito, não a lei do mais forte.

Reabertura segura das escolas – Opinião | O Estado de S. Paulo

Sempre, mas especialmente durante a pandemia, a educação deve ser uma prioridade dos gestores públicos

Entre os muitos desafios trazidos pela pandemia de covid-19, há um especialmente relevante, com consequências de curto, médio e longo prazos para toda a sociedade: a reabertura segura das escolas. Para auxiliar as novas gestões municipais nessa tarefa, o Todos Pela Educação lançou um documento com 25 recomendações para uma volta adequada às atividades escolares presenciais.

Dada a diversidade dos municípios no País, não há uma fórmula única para o retorno das aulas presenciais. O que se tem – e serviu de base para a elaboração das recomendações – é uma série de evidências científicas, além das orientações de organismos nacionais e internacionais. Sendo a preservação da vida a primeira premissa, é essencial, por exemplo, seguir os protocolos sanitários.

Como ponto de partida, o documento faz um diagnóstico do ensino remoto. Apesar do esforço empregado para mitigar os efeitos do fechamento das escolas, o Todos Pela Educação reconhece as sérias limitações do ensino remoto para a formação das crianças e adolescentes. São quatro os principais efeitos negativos: (i) graves lacunas de aprendizagem, (ii) ampliação das desigualdades educacionais, (iii) aumento do abandono e da evasão escolar e (iv) impactos na saúde emocional de alunos e profissionais da educação.

Diante desse quadro, é necessário que as redes de ensino elaborem um plano capaz de atenuar esses efeitos. A respeito do momento de reabrir as escolas, o documento admite: “Essa definição (de quando reabrir) é complexa, devendo partir de uma análise multifatorial que considere os diversos riscos envolvidos”. O importante, diz, é que “a Educação precisa receber prioridade em qualquer discussão sobre a reabertura de setores da sociedade”.

As 25 recomendações estão organizadas em torno de três eixos: retorno seguro, atendimento de todos e organização pedagógica em prol da aprendizagem.

Em relação à reabertura segura do ponto de vista da saúde pública, o documento destaca a necessidade de um planejamento de retorno gradual das atividades presenciais em conjunto com a Secretaria Municipal da Saúde. Para essa finalidade, é preciso, por exemplo, fazer um diagnóstico da infraestrutura física das escolas, desenvolver um protocolo sanitário para a volta às aulas, prover recursos financeiros adicionais às escolas e readequar serviços de limpeza, alimentação e transporte escolar.

Diante desse cenário novo, com muitas incertezas e perplexidades, o Todos Pela Educação ressalta o caráter prioritário da comunicação. Para que seja possível uma reabertura segura das escolas, é fundamental estabelecer uma comunicação clara com a comunidade escolar.

No segundo eixo, referente ao atendimento de todos, as recomendações são: identificar os alunos que não voltaram às escolas, fixar estratégias de busca ativa em parceria com outros órgãos, avaliar o potencial crescimento da demanda por vagas e planejar a oferta, realizar o acolhimento socioemocional dos estudantes e profissionais e assegurar a distribuição da merenda para os alunos mais vulneráveis.

A respeito da organização pedagógica, o documento propõe, como primeira medida, avaliar o que se fez em 2020, tanto os objetivos de aprendizagem trabalhados como a carga horária cumprida. A partir daí, definir os objetivos de aprendizagem e habilidades essenciais do currículo a serem priorizados e readequar o planejamento curricular envolvendo os anos letivos de 2020 e 2021. Ou seja, cuidar da educação em 2021 envolve necessariamente não se esquecer do que ficou faltando em 2020.

Outra medida é o planejamento curricular no contexto de ensino remoto combinado com o presencial. Ao menos por um bom tempo, essas duas modalidades de ensino coexistirão. Nesse sentido, é preciso aprimorar a conectividade nas escolas, bem como formar e apoiar os professores.

Sempre, mas especialmente na pandemia, a educação deve ser uma prioridade dos gestores públicos. Para tanto, não é preciso reinventar a roda. Basta trabalhar bem, com as evidências científicas e orientações disponíveis.

Da recuperação à arrecadação – Opinião | O Estado de S. Paulo

Retomada eleva receita de tributos e permite acerto de impostos diferidos

A reação da economia, puxada pelo consumo e pela indústria, continua reforçando a arrecadação federal, mesmo num cenário de alto desemprego e de muita incerteza quanto ao próximo ano. O governo recolheu em novembro R$ 140,101 bilhões, 7,31% mais que um ano antes, descontada a inflação. Foi o maior valor arrecadado num mês de novembro desde 2014, quando a soma coletada pelo poder central chegou a R$ 142,286 bilhões. Mas a arrecadação do mês passado foi engordada pelo recolhimento de R$ 14,770 bilhões de tributos diferidos no primeiro impacto da pandemia. O total arrecadado em 11 meses, de R$ 1,320 trilhão, foi 7,95% inferior ao de janeiro-novembro de 2019, também com valores ajustados pelo IPCA.

Dois fatores principais favoreceram a arrecadação de novembro: a produção industrial de outubro, 1,03% maior que a de igual mês do ano passado, e as vendas do comércio varejista, com crescimento de 6% no mesmo tipo de comparação. O principal fator negativo foi o fraco desempenho dos serviços, com vendas 7,40% inferiores às de outubro de 2019.

O setor de serviços começou a recuperar-se em junho, com defasagem de um mês em relação aos outros dois setores. Além disso, o crescimento até outubro foi insuficiente para o retorno ao patamar anterior à queda ocasionada pela pandemia. Depois de uma perda de 19,8%, o ganho acumulado até a última apuração foi de apenas 15,8%. Antes disso, indústria e comércio varejista já haviam voltado a um nível superior ao de fevereiro. Para os dois setores o tombo ocorreu em março e abril.

A arrecadação federal de novembro parece ter surpreendido parte do mercado. O valor recolhido foi superior à mediana das expectativas colhidas no mercado pelo Broadcast, serviço de informação em tempo real da Agência Estado. As projeções foram de R$ 115 bilhões a R$ 146 bilhões, com mediana de R$ 137,80 bilhões.

“Ainda estamos otimistas com o resultado da arrecadação”, disse o chefe do Centro de Estudos Tributários e Aduaneiros da Receita Federal, Claudemir Malaquias. “Os números sinalizam trajetória positiva da arrecadação até o fim do ano”, acrescentou. O volume de compensações dos tributos diferidos, comentou, mostra contribuintes empenhados em liquidar os débitos. Até o fim do ano, segundo ele, o Tesouro deverá completar a recuperação dos R$ 62,822 bilhões diferidos até novembro.

A liquidação desses compromissos indica a melhora de condições de parte significativa das empresas. É um dado positivo para o governo e para o próprio setor empresarial. Com isso, o horizonte pode parecer mais claro, mesmo com a expectativa de retorno lento ao nível de atividade de 2019.

O balanço de 2020 deve mostrar um Produto Interno Bruto (PIB) sensivelmente menor que o do ano passado, com recuo de uns 4,40%, segundo projeções correntes. O prosseguimento da retomada em 2021 deve ser insuficiente, pelas estimativas atuais, para o retorno ao patamar do ano passado. Mas essa recuperação pode ser mais complicada do que estimam o governo e vários analistas.

Primeiro, é preciso ver o ritmo dos negócios. Em outubro a produção industrial superou a de setembro por 1,1%. Foi o menor crescimento desde o começo da recuperação. Também as vendas do comércio perderam impulso. Falta verificar como estarão essas atividades nos primeiros meses de 2021. Comunicados do Banco Central (BC) têm mencionado uma incerteza “acima da usual” em relação ao ritmo da economia no próximo ano.

Em segundo lugar há o risco de um novo surto de covid-19, já observado em várias das economias mais avançadas. Com ou sem mutações do vírus, o risco de uma nova onda é aumentado quando as pessoas se comportam de forma imprudente. A expectativa de vacinação de nenhum modo autoriza a imprudência.

Mas o maior fator de insegurança é o governo, até agora incapaz de exibir um compromisso firme com a gestão responsável das contas públicas e com a condução nacional de uma verdadeira política sanitária. Desses fatores, e especialmente do terceiro, dependerão os negócios, o Tesouro e a saúde dos brasileiros.

Democracia latino-americana na enfermaria – Opinião | O Estado de S. Paulo

Ao único regime não democrático da região, Cuba, juntaram-se outros três países

Após ser inundada por uma “terceira onda” de democratização desde os anos 80, na última década a democracia na América Latina deu sinais de erosão. Prova disso é que ao único regime não democrático da região, Cuba, juntaram-se outros três: Venezuela, Nicarágua e em certa medida a Bolívia (ao menos até as eleições de 2020). Além disso, os desafios econômicos após o superciclo das commodities, como crescimento lento, aumento da dívida pública e um espaço fiscal sob pressão, limitaram a capacidade de qualificar serviços públicos, reduzir desigualdades e promover mobilidade social.

Somem-se a isso deformidades estruturais jamais solucionadas, como a alta taxa de criminalidade, fragmentação e polarização política, corrupção e debilidade institucional. As frustrações sociais culminaram em 2019 com a eclosão de protestos, notadamente no Chile, Bolívia, Peru e Equador, e tudo indicava que eles recrudesceriam, se não tivessem sido atropelados pela pandemia. Mas, apesar das ruas vazias, há indícios de que as crises sanitária e econômica, muitas vezes enfrentadas com um misto de incompetência e autoritarismo, agravaram os riscos à democracia.

Em um estudo sobre o Estado da Democracia na América Latina, do Institute for Democracy and Electoral Assistance, a mera enumeração das ameaças à democracia latino-americana durante a pandemia é atordoante: adiamento de eleições; uso excessivo da força nas quarentenas; uso das Forças Armadas em tarefas civis; delinquência e violência persistentes; riscos ao direito à privacidade; acentuação das desigualdades de gênero e violência doméstica; novos riscos aos vulneráveis; acesso limitado à justiça; restrições à liberdade de expressão; abuso dos Poderes Executivos; supervisão parlamentar reduzida; choques entre instituições; novas oportunidades para a corrupção; e um eleitorado descontente com as formas tradicionais de representação política.

O Brasil ilustra vários desses sintomas: a superlotação de militares nos gabinetes executivos; surtos de violência na disputa entre narcotráfico e milícias; ataques verbais de autoridades (a começar pelo presidente) aos meios de comunicação; enfrentamentos entre os Três Poderes e entre o governo federal e os subnacionais na implementação de medidas sanitárias; e indícios de corrupção na compra de equipamentos e medicamentos.

Todos os indicadores mostram que a América Latina tardará mais que as regiões desenvolvidas para superar a crise e retomar um caminho de estabilização social e crescimento econômico. Essas dificuldades só avolumam os desafios monumentais de uma região que já se mostrava defasada na adaptação a transformações globais, como a 4.ª Revolução Industrial, as mudanças climáticas ou a reconfiguração da globalização, imensamente abalada pelas tensões geopolíticas entre EUA, China e União Europeia.

Não obstante, é possível identificar também exemplos de resiliência e inovação durante a pandemia. Várias nações, como o Brasil, conseguiram consumar seus processos eleitorais em relativa normalidade. Para muitas cadeias produtivas, a aceleração da digitalização trouxe uma injeção de ânimo e inovação. Mais importante: as manifestações de solidariedade e cooperação em nível local mostram que, sob o esgarçamento institucional e as tensões políticas, há focos de cidadania suficientemente vigorosos para ativar um processo de revitalização dos contratos sociais.

Não há “atalhos” e “regressar às práticas do passado tampouco é uma possibilidade”, conclui o estudo. “A única opção é impulsionar reformas ambiciosas para melhorar os padrões econômicos e democráticos, baseados em um crescimento equitativo, responsável, sustentável e inclusivo.” Naturalmente, isso demandará um esforço redobrado dos protagonistas da arena pública para canalizar protestos e conflitos em um debate construtivo. Se malograrem, “as alternativas populistas ou autoritárias se imporão em uma região marcada pela insatisfação, desemprego, delinquência, violência e corrupção”. 

A Covid de cada um – Opinião | Folha de S. Paulo

Brasil e EUA seguem receita oposta à dos mais bem-sucedidos no combate ao vírus

A pandemia de Covid-19 se manifesta em múltiplas epidemias locais, de características diferentes até num mesmo país. O balanço díspar de vítimas sugere pistas de como se disseminou o coronavírus e de como enfrentá-lo.

As Américas e a União Europeia, com seus quase 800 mortos por milhão de habitantes até aqui, contrastam de modo gritante com os 71 mortos por milhão da Ásia, 45 da África e 23 da Oceania.

O isolamento relativo, a juventude e a baixa mobilidade de certos países africanos, bem como o peso do sucesso da China e de sua imensa população no continente asiático, podem ser explicações vagas para fenômenos tão amplos.

Entretanto há motivos específicos, derivados de providências no combate à epidemia, que ajudam a explicar essas diferenças.

Estão na Ásia alguns dos países que tomaram as medidas mais precoces, estritas e organizadas de contenção. Taiwan impôs bloqueios internacionais ainda em janeiro. Tinha um comitê profissional de combate a epidemias desde os surtos de gripe do início do século, com planos específicos e autoridade para executá-los.

Rastreou possíveis doentes por meio de um sistema nacional de dados, testou, impôs máscaras e quarentenas sob pena de multas pesadas. Havia confiança nas autoridades e um senso comunitário de colaboração com as medidas sanitárias. O país tem 0,3 morte por milhão de habitantes. O Brasil, 894.

O método taiwanês descreve parte das providências de países mais bem-sucedidos. Foi assim em China, Vietnã, Coreia do Sul, Japão, Singapura, Nova Zelândia e, em menor medida, Austrália.

Países da África, com poucos recursos, ligaram alertas precoces nas fronteiras e souberam recorrer a planos de combate ao ebola a fim de conter também o coronavírus.

Entre os mais exitosos da América Latina (onde houve mais de 800 mortos por milhão), Cuba e Uruguai seguiram parte do pacote taiwanês, como Finlândia, Noruega e Dinamarca na Europa —porém com menos controle da vida privada e também menos sucesso.

Organização do sistema de saúde, comando técnico do combate de epidemias, autonomia de ação para cientistas e profissionais de saúde, transparência do governo, confiança da população e alerta precoce. Essa parece ser uma lista razoável de atitudes exitosas.

Já negacionismo, propaganda de crendices e sabotagens presidenciais marcaram a conduta de países como Brasil, México e Estados Unidos, que se assemelham como exemplos trágicos de mortandade.

O racismo de Lobato – Opinião | Folha de S. Paulo

Mostras de preconceito em obras devem ser contextualizadas, não suprimidas

A discussão sobre como lidar com o racismo nas obras infantis de Monteiro Lobato parece infindável.

Há oito anos, a proposta de sustar a distribuição de “Caçadas de Pedrinho” em escolas públicas chegou ao Supremo Tribunal Federal. Agora, a reedição de “A Menina do Narizinho Arrebitado” pela bisneta do autor provocou reações até de membros um tanto ociosos do governo Jair Bolsonaro.

A revisão de Cleo Monteiro Lobato procurou alterar ou suprimir “passagens problemáticas”, como a que se referia a Tia Nastácia como “negra de estimação”.

Bastou para que Sérgio Camargo, o presidente da Fundação Palmares que fez de sua marca a oposição ao movimento negro, fosse às redes sociais para denunciar aquilo como uma “mutilação politicamente correta”. Foi seguido por Mario Frias, secretário da Cultura, que achou a mudança uma vergonha.

O argumento central de Camargo, de que não há racismo na obra de Lobato, não se sustenta. Não deixam dúvidas a construção estereotipada de Nastácia e as menções à cor de sua pele como um defeito, por exemplo quando Narizinho diz que ela “é preta só por fora, e não de nascença”.

Não é por isso, contudo, que se deve defender que os trechos racistas sejam simplesmente apagados dos livros do escritor.

Primeiro porque a intenção de ajustar clássicos literários a um certo ideal político será sempre infrutífera. Leitura assim encontrará o que corrigir em qualquer obra de qualquer geração passada e corre o risco, além disso, de eliminar sutilezas e contradições relevantes.

Em segundo lugar, porque o exercício é fútil. A literatura tem, entre suas funções, a de documento histórico de uma época e do pensamento de seu autor. Alterar trechos, não importa por qual motivo bem-intencionado, causará inevitável distorção do conteúdo.

A meta de evitar que crianças encampem ideias preconceituosas é alcançável por outros meios, como notas de contexto ou orientação de pais e professores. Pode-se também escolher outra coisa para ler.

Em canais de streaming, tem se tornado mais comum a adoção de avisos que alertam para “cultura desatualizada”, antecipando que o filme mostrará práticas ou discursos discriminatórios —o que suscita debate sobre certa infantilização do espectador.

Ora, se uma obra reflete uma sensibilidade ultrapassada, é natural que seja logo esquecida. E se outras qualidades impedirem essa obsolescência, seus problemas continuarão sob o escrutínio saudável do debate público.

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