domingo, 5 de janeiro de 2020

Fernando Henrique Cardoso* - Cidadania e prosperidade

- O Globo / O Estado de S.Paulo

A rotina pesa mais que a vontade de mudar, de construir um futuro melhor. Voltemos a sonhar

Todo começo de ano, a mesma ladainha: feliz ano novo! É difícil escapar do lugar-comum e não pretendo dele me afastar (pelo menos neste início de janeiro). Tenho boas razões para manter certo otimismo, pois chego aos quase 90 anos – que cumprirei no próximo ano se os fados assim dispuserem – mantendo o bem-estar, o que supõe certa autonomia pessoal. E posso dizer, sem arrogância, que me sinto mais livre, mais à vontade, para dizer o que penso e o que me emociona. Já não serão amarras ideológicas ou partidárias que irão frear meus impulsos. Por certo, a família sempre há que tomar em consideração, assim como também os amigos. Quanto aos demais, importam, mas não tanto como a família ou os amigos.

Dito isso, justifico meu otimismo relativo. Nasci, em 1931, num Brasil mais pobre (nasci no Rio e lá vivi até os 9 anos). Era comum ver nas cidades pessoas usando tamancos, nos campos havia medo dos bichos-de-pé, o analfabetismo no País era avassalador, as classes médias altas compravam manteigas e queijos, bem como uvas e muitas outras gulodices mais, importados.

Automóveis usava quem os tinha: os ricos – e olhe lá – ou, então, os altos burocratas. O comum dos mortais usava o bonde. No Rio havia um reboque em cada bonde, chamado “taioba”, com passagem mais barata. Em São Paulo havia os “camarões”, mais fechados, e também havia o bonde duplo comum. Para ir a São Paulo (cidade para onde vim em 1940), ou ir de lá ao Rio, usavam-se mais frequentemente os trens, também com categorias de primeira e segunda classe. A grande renovação foi a chegada das “litorinas” (comboios menores e mais ágeis), cujo percurso – diurno – durava cerca de oito horas, enquanto os trens requeriam 12. Avião era para os valentes e milionários... De carro, quem podia, dividia a longa viagem de 12 a 14 horas ou mais e se alojava no meio do caminho num hotel ou em alguma fazenda de parente ou amigo. No verão chovia sem parar, tornando um lamaçal os trechos de terra do que veio a se chamar Via Dutra. E era via de pista única, com mão para ir, outra para voltar.

De lá para hoje as mudanças foram enormes. Tornamo-nos uma das dez maiores economias do mundo (embora na rabeira delas). A economia se industrializou e a de serviços cresceu. A agricultura e a mineração brilharam. O País se urbanizou: mais de dois terços da população vivem em cidades (ou em suas muitas periferias pobres). O analfabetismo não chega a abranger 7% da população maior de 15 anos e vem caindo há alguns anos. Universidades (pelo menos no nome) o País as tem às dezenas, e olha que as primeiras foram criadas nos anos 1930, embora houvesse antes escolas isoladas, mais antigas. E o Serviço Único de Saúde (SUS), por mais que seja criticado nas cenas em que as tevês mostram filas enormes, é uma realidade de dar inveja a muitos povos: o atendimento é universal e gratuito. Antes só eram acolhidos nos hospitais os membros de alguma categoria profissional ou os que batiam às portas das Santas Casas de Misericórdia. Naturalmente, os mais ricos pagavam e tinham atendimento melhor, mesmo no passado.

Merval Pereira - O xadrez da sucessão

- O Globo

Os problemas políticos criados pelo presidente só o ameaçarão no cenário eleitoral se a economia não der motivos para esperanças

Existem no momento três candidatos naturais à presidência da República: Bolsonaro, Lula e Sérgio Moro. Os dois últimos dependem de condições fora de seus controles para se viabilizarem. Bolsonaro depende de completar seu mandato, e manter os êxitos econômicos que se prenunciam. Caso consiga, é o provável vencedor em 2022. Desde que a reeleição foi implantada, todos os presidentes se reelegeram.

A perspectiva de dobrar o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), podendo chegar este ano a 2,5%, traz consigo um ambiente favorável no país: inflação abaixo de 4% ao ano, juros cadentes, em direção às taxas internacionais, criação de empregos.

Claro que o cenário internacional terá influência decisiva nessas previsões otimistas, mas, internamente, os problemas políticos que necessariamente acontecerão pela agressividade do presidente só se tornarão obstáculos intransponíveis se a economia não der motivos para esperanças. Desse ponto de vista, o presidente Bolsonaro é uma espécie de refém do ministro da Economia, Paulo Guedes. Ou melhor, das reformas estruturais que estão em curso, inclusive na microeconomia.

Bernardo Mello Franco - Ano novo, discurso velho

- O Globo

O núcleo olavista do governo já indicou que não vai baixar o tom em 2020. A guerra ideológica deve continuar firme, com incentivo do presidente Bolsonaro

Muitos leitores ainda brindavam a chegada do Ano Novo quando Ernesto Araújo pegou o celular para agitar a tropa. À 1h02 do dia 1º, o ministro das Relações Exteriores tuitou que “em 2020 é preciso continuar trabalhando contra o mecanismo esquerdista”. “Lulopetismo + isentoleft são expressão de um projeto de poder global e globalista”, fantasiou.

Ninguém está imune a se exceder um pouco no réveillon, mas o chanceler não pode culpar só o champanhe. No dia 2, ele já estava à caça de outra polêmica virtual. Passou a bater boca com Leonardo Boff, a quem chamou de “mentiroso” e “apóstata”. “Os brasileiros rejeitaram o seu teomarxismo e correram para as igrejas evangélicas, onde podem louvar Jesus Cristo”, escreveu, como se o teólogo fosse responsável pela conversão de milhões de fiéis.

A incontinência verbal de Araújo indica que o núcleo olavista do governo não está disposto a baixar o tom em 2020, ano de eleições municipais. A guerra ideológica deve continuar a todo vapor, com incentivo do presidente Jair Bolsonaro.

Na sexta-feira, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, voltou a atacar imprensa e ambientalistas. Publicou um gráfico sugerindo que as queimadas da Austrália seriam mais graves que as da Amazônia. “Certas ONGs e alguns jornalistas só se importam em falar mal do seu próprio país”, concluiu.

Míriam Leitão - O magro programa de privatização

- O Globo

Na privatização, como em vários outros itens da chamada agenda liberal, este governo tem mais discurso do que atos concretos

O programa de privatização do governo Bolsonaro começou de forma tímida. O que foi vendido até agora está na categoria de desinvestimento das estatais, como a venda da TAG pela Petrobras, ou então foram concessões. O pouco que foi feito estava preparado pelo governo Temer. Houve operação que estava até com data marcada. O que andou no governo Bolsonaro, em áreas como a infraestrutura, foi porque houve continuidade de decisões tomadas no governo anterior, avaliam técnicos que acompanham o setor por dentro e por fora do governo.

O secretário de desestatização Salim Mattar disse ao “Valor” que o programa vai acelerar e que podem ser vendidas 120 empresas ou 300 se incluir a Eletrobras e suas subsidiárias. O governo Bolsonaro não conseguiu vender a Eletrobras apesar de o governo Temer ter deixado o modelo pronto e ter conseguido resolver o problema das seis subsidiárias que eram muito deficitárias.

A Petrobras estava desde as administrações de Pedro Parente e Ivan Monteiro num programa de venda de ativos, para diminuir o endividamento, e fechamento de unidades que geravam prejuízo. Isso teve continuidade na administração de Roberto Castello Branco.

Elio Gaspari – A gestão desastrada do FNDE

- O Globo / Folha de S. Paulo

Uma escola de Minas Gerais receberia 30 mil laptops (117 para cada aluno)

No escurinho dos feriados, o presidente do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), Rodrigo Sergio Dias, soube, pelo Diário Oficial, que havia sido demitido. Ele assumira em agosto, substituindo um professor nomeado em fevereiro.

O FNDE não é uma repartição qualquer, tem uma caixa de R$ 58 bilhões e transfere recursos tanto para a merenda escolar como para o malfadado Fies, um programa de financiamento de vagas em faculdades privadas, cujo rombo está em R$ 12 bilhões, com 584 mil inadimplentes. É, sem dúvida, o maior escândalo da história do ensino superior brasileiro.

Os repórteres Pedro Prata e Pepita Ortega revelaram o teor da colaboração de uma ex-diretora da Universidade Brasil, de Fernandópolis (SP), na qual ela contou à Polícia Federal que a instituição vendia vagas no curso de medicina por R$ 80 mil. Se o aluno quisesse financiamento do Fies (com a Viúva pagando), o pedágio custava R$ 100 mil. À época, só tinham acesso ao Fies jovens de famílias com renda per capita de até três salários mínimos. O MEC engolia dados fraudados.

Dorrit Harazim - O elo incendiário

- O Globo

Está em marcha no Congresso o atual processo de impeachment de Donald Trump, que dificilmente não será contaminado pelo assassinato

A história e o destino têm seus caprichos. De repente, um incômodo penduricalho da “Guerra ao Terror” de 2003 pode vir a se cruzar de forma explosiva com o assassinato em território iraquiano de um homem forte do Irã, general Qassem Soleimani. E Donald Trump é o elo incendiário dessa fusão.

Antes de ordenar a execução de Soleimani, o presidente dos Estados Unidos avaliava zerar um “resto de guerra” do conflito anterior. Incomodado com quem, nas suas palavras, costuma defender o conceito de “Forças Armadas politicamente corretas”, Trump havia indultado três integrantes da Marinha acusados de crimes de guerra no Iraque. Como esta medida tomada dois meses atrás agradara a seu eleitorado, o presidente começara a cogitar a concessão de mais um perdão presidencial. Não a qualquer veterano, mas, segundo o site “Daily Beast”, a Nicholas Slatten, membro do infame exército privado Blackwater que atuou no Iraque a serviço do Pentágono.

Slatten, condenado à prisão perpétua nos EUA, liderou a chamada “fuzilaria da Praça Nisour” de Bagdá, em 2007, na qual morreram dez homens, duas mulheres e duas crianças. Foi uma chacina a tiros de fuzil e granadas, que feriu outros 17. Nenhuma das vítimas portava armas. Apenas estavam vivas, até ali. Do episódio ficaram feridas escancaradas até hoje, pois o Pentágono impediu que os implicados fossem julgados no Iraque e os retirou às pressas do país. Ficou a promessa de que seriam — e foram — julgados em cortes dos EUA. A condenação levou 11 anos para sair.
Imagine-se o rancor redobrado dos iraquianos se ouvirem falar das cogitações caridosas da Casa Branca, justo na semana em que drones militares americanos dispararam sem pedir licença.

Luiz Carlos Azedo - Sonhos de King

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

”’O ethos do ‘destino manifesto’ justificou a expansão territorial e a supremacia branca nos Estados Unidos, cujo eixo era a ideia de que Deus os estaria ajudando a comandar o mundo”

Memphis é uma das três cidades mais importantes da música norte-americana, com Nova Orleans e Nashville, famosa por ser a casa de Elvis Presley entre 1948 e 1977. A mansão Graceland, patrimônio da família Presley, continua sendo um dos pontos mais visitados do estado, atraindo cerca de 600 mil pessoas por ano. Ofusca o fato de que, poucos sabem, foi em Memphis que o pastor batista Martin Luther King Jr., prêmio Nobel da Paz, foi assassinado em março de 1968, aos 39 anos, durante uma visita em apoio aos trabalhadores em greve no serviço de saneamento da cidade.

Martin Luther King reivindicava salários dignos e mais postos de trabalho para a população negra. Além disso, defendia os direitos das mulheres e foi contra a Guerra do Vietnã, que considerava moralmente corrupta. Formado na Universidade de Boston, tornou-se pastor e membro da Associação Nacional para Avanço das Pessoas de Cor. Destacou-se como líder dos direitos civis por organizar protestos por todo o sul dos Estados Unidos, inclusive o boicote ao sistema de ônibus de Montgomery. Em Birmingham, no Alabama, em 1963, foi preso por duas semanas ao participar de um protesto, o que só aumentou seu prestígio.

Quando foi solto, King liderou a Marcha sobre Washington, na qual proferiu seu famoso discurso “Eu tenho um sonho”, que está entre os dez mais importantes do século XX, no qual afirma: “Tenho um sonho de que meus quatro filhos viverão um dia em uma nação onde não serão julgados pela cor de sua pele, mas pelo teor de seu caráter”. Seu êxito político se deve não somente à sua combatividade e resiliência e, enfim, ao seu martírio, mas à estratégia assentada em três eixos: a luta contra a ignorância, a não violência e o combate às desigualdades.

Eliane Cantanhêde - E o Brasil com isso?

- O Estado de S.Paulo

No maior teste da nova política externa, Brasil adota neutralidade ou assume lado?

O conflito dos Estados Unidos com o Irã é o maior teste do governo Jair Bolsonaro e já exibe duas claras guinadas, não apenas em relação aos governos petistas, mas à própria política externa tradicional do Brasil. E o pior está por vir, pois a vingança do Irã é certa, mas não se sabe quando, como e com que grau de ferocidade. O que fará o Brasil?

As duas mudanças perpassam as discussões de cúpula do governo e podem ser identificadas na nota do Itamaraty. A primeira é que o foco no Oriente Médio não é mais o conflito Israel-Palestina e sim o Irã. A segunda é que o Brasil deixa de tratar o terrorismo como uma questão distante, dos países desenvolvidos e do Oriente Médio. O terrorismo passa a ser problema nosso, sim.

No “novo Brasil”, alinhado incondicionalmente não só aos EUA, mas ao governo Trump, o Irã é a maior ameaça internacional, com seu projeto audacioso de hegemonia na região e insinuando-se até como novo líder mundial a partir do seu programa nuclear. Persa, não árabe, é o Irã quem assume a dianteira no enfrentamento a Israel, negando até o holocausto e o próprio Estado de Israel, como já se esgoelava Mahmoud Ahmadinejad, homem forte do país entre 2005 e 2013.

Tanto Trump quanto Bolsonaro têm forte base política entre judeus e evangélicos, que estão na linha de frente pró-Israel. Não por acaso, o primeiro compromisso e a segunda manifestação de Trump após o ataque que matou o principal líder militar iraniano foram em Miami, num evento evangélico.

Mary Zaidan* - Populismo em rede

- Blog do Noblat | Veja

Bolsonaro aposta tudo

A mistura de política com entretenimento não é novidade. Era assídua nas marchinhas de carnaval, na música popular, e continua arrancando gargalhadas nos programas humorísticos de TV. Artistas sempre foram bons cabos eleitorais e showmícios faziam parte das campanhas até serem proibidos pelo Supremo, em 2006. Tudo para lá de inocente perto do que se vê nas redes sociais, ambiente em que a política virou um reality show sob medida para o populismo de ocasião.

Nele, o presidente Jair Bolsonaro tem se mostrado imbatível. Na última quinta-feira, movimentou o Facebook com uma enquete sobre como deveria agir quanto ao fundo eleitoral de R$ 2 bilhões proposto pelo seu governo e aprovado pelo Congresso. Vetar e correr o risco de um impeachment ou sancionar, provocou.

De duas, as duas. Mentiu ao delegar a escolha para a galera e tratou uma decisão presidencial como bacalhau que se joga na plateia. (Que o genial Chacrinha me perdoe pela citação.)

Nada que cause espanto em um governo que define políticas públicas por likes no Facebook, retweets e coraçõezinhos de aprovação.

Ministros como Abraham Weintraub, da Educação, Damares Alves, da Mulher, Família e Direitos Humanos, e Ernesto Araújo, das Relações Exteriores, parecem que se ocupam mais das redes do que das tarefas para as quais foram nomeados. Pelo volume de posts diários e lives semanais, que duram em média uma hora, o próprio presidente dá a entender que agradar fãs no Facebook e no Twitter é determinante. Importa mais que a governança, que o país.

Janio de Freitas – No tempo da caverna

- Folha de S. Paulo

Incluir votos de Natal e de Ano-Novo nos textos recentes, portanto, seria uma hipocrisia

Nas primeiras vezes, há não sei quantos anos, em que encerrei uma crônica com intimidade, nos votos de ano bom ou dando férias aos leitores no início das minhas, aqui na casa a coisa não caiu bem. Flávio Rangel, cronista de sucesso na Ilustrada e meu introdutor nestas páginas, me dava as notícias divertidas das críticas.

A Folha era, ou é, um jornal compenetrado, de acordo com a índole local. Quanto a mim, era e continuei visto, entre outros, como um forasteiro da imprensa. Mas não poucos adotaram as mensagens informais.

Não incluí votos de Natal e de Ano-Novo, nem mesmo sisudos, nos textos recentes. Senti que, sem ressalvas, cometeria alguma hipocrisia, não crendo na possibilidade do que diria. E ressalvas não eram próprias para a ocasião. Não duvido de que parte das previsões otimistas para 2020 venha de convicções e esperanças verdadeiras —o que, em todo caso, não se confunde com fundamento. Não foi assim, porém, a maioria do que se leu e ouviu.

A sinceridade não é bem vista, com escassas hipóteses de exceção. Esse é um vício forte e muito difundido do jornalismo, não só o nosso. Os viciados constrangidos recorrem à dubiedade, ao negativo seguido da compensação positiva. Nada os impedindo, nem aos mais extremados, de mostrar nas suas relações o oposto do que escrevem ou dizem como profissionais.

Hélio Schwartsman - Decência democrática

- Folha de S. Paulo

"How to Save a Constitutional Democracy" (como salvar uma democracia constitucional), de Tom Ginsburg e Aziz Huq, que já citei aqui en passant, é mais um livro sobre a onda populista com traços autoritários que vem fazendo aparições no Ocidente. Ele tem, porém, uma diferença que o torna digno de nota. Seus autores são juristas e não cientistas políticos, de modo que se concentram nas regras constitucionais e leis que podem tanto acelerar quanto conter a erosão democrática.

"How to Save..." mergulha nas experiências autoritárias que estão mais avançadas (Venezuela, Hungria, Turquia, entre outras) e mostra os vetores normalmente atuantes no processo de fragilização da democracia. Tenta também extrair lições que sejam úteis para os países que ainda estão no meio do caminho.

Americanos, fieis ao mito do excepcionalíssimo, costumam acreditar que sua vetusta Constituição os protege de regressões, mas os autores discordam. Para eles, a dificuldade de promover reformas constitucionais nos EUA dá um poder desproporcional à Suprema Corte, que não hesita em abraçar velhas doutrinas que dão a última palavra ao Executivo.

Cristina Serra - O Porta dos Fundos e o silêncio presidencial

- Folha de S. Paulo

Surge mais um personagem bizarro na já extensa galeria de figuras grotescas

Eis que no apagar das luzes de 2019 surgiu mais um personagem bizarro na já extensa galeria de figuras grotescas que povoam a vida contemporânea brasileira. Trata-se de Eduardo Fauzi Richard Cerquise, um dos responsáveis pelo atentado terrorista à sede da produtora do canal de humor Porta do Fundos.

A folha corrida do sujeito é um passeio pelo Código Penal. Ele foi condenado por dar um soco no secretário de Ordem Pública da Prefeitura do Rio em 2013. Recorria em liberdade. Tem cerca de 20 registros criminais, entre eles: ameaça, formação de quadrilha e agressão à ex-mulher.

Fauzi foi logo identificado, mas, enquanto a polícia discutia se o atentado com coquetéis molotov caracterizava ou não crime de terrorismo, ele postou vídeo nas redes sociais; passou lépido e fagueiro pelos controles do aeroporto internacional do Rio e escafedeu-se para a Rússia, onde supostamente tem uma namorada. Sabe-se também que desde 2001 era filiado ao PSL --partido pelo qual o presidente Bolsonaro se elegeu.

Vinicius Torres Freire – O doente pode sair da coma sem tropeçar

- Folha de S. Paulo

Há certa arrumação para o país crescer os tais 2,5%, por aí, estimativa furada desde 2017

Um perigo para o Brasil e o mundo saiu da jaula logo no primeiro dia útil do ano. A metralhadora biruta de Donald Trump atirou no Irã, como se viu. Quanto à vidinha doméstica, como andam as coisas nesta roça?

As perspectivas são ainda medíocres, mas em alta, sem riscos maiores no horizonte, afora os da política, lá fora e aqui.

A agropecuária não faz o país crescer de modo direto e significativo (tem parte pequena no PIB), mas nos mantém de pé.

A previsão mais recente, de dezembro, é de alta de quase 2% na safra 2019/2020, segundo a Conab. As exportações do setor pagam boa parte das contas externas; a alta da produção deve manter os preços da comida sob controle.

Os reservatórios das hidrelétricas estão em mínimas históricas. Mas o sistema tem folga, por causa da recessão, e está mais bem preparado para compensar os danos da seca na produção de eletricidade. Mas, se a chuva continuar pouca, vai haver pressão nos preços, daqui para o ano que vem, o que de resto não é perspectiva boa para quem quer investir.

Por falar em energia, a produção de petróleo e gás enfim começou a aumentar de modo relevante no terço final de 2019. Também não salva a lavoura, claro, não somos um emirado. Mas é outra ajuda para empurrar esta baleia encalhada.

Também na indústria extrativa, a Vale deve elevar sua produção, depois dos desastres assassinos.

Ney Bello* - Juiz das garantias: avanço necessário!

- Consultor Jurídico

Nas vésperas cristãs, o país viu publicarem diversas modificações nos seus diplomas penal e processual penal. As alterações legislativas, após vetos e sanções presidenciais, mergulharam todos -—na viragem da década — na discussão acerca da correção ou inviabilidade do juiz das garantias.

Mas do que se trata? Qual o erro ou onde reside o acerto da partição da competência funcional do magistrado criminal entre juízo de atuação no processo cautelar e juízo de instrução e julgamento? Quais as motivações da criação e da crítica ao seu surgimento?

Duas observações preliminares: em primeiro lugar, é preciso verificar que a criação do juiz das garantias não é uma jabuticaba ou invenção tupiniquim! Nesse tema, nós não estamos sós no mundo do direito! Com algumas modificações referentes às peculiaridades locais, o modelo se repete em Portugal, na Itália e na Alemanha.

Em segundo lugar, é preciso esclarecer exatamente o que a medida significa. A criação basicamente estabelece que o juiz que atua no processo emergencial cautelar, que defere quebras de sigilo, busca e apreensão, prisão preventiva ou temporária, homologa delação premiada e atua na revoada original de coleta de provas antes da formalização da acusação não será o juiz que instruirá o processo, que analisará os argumentos maduros da acusação e da defesa, e nem será o magistrado que julgará a causa, para absolver ou condenar.

As novas redações dos artigos 3°A e 3°B do Código de Processo Penal estabelecem a proibição de que o juiz produza provas, não podendo determiná-las de ofício, e também criam uma diferenciação funcional. O juiz atuante na fase do inquérito terá de ser distinto do magistrado que processa o caso. Que equívoco dogmático há nisso?

A modificação legal — em consonância com o que se faz no mundo ocidental — tem o condão de proteger a imparcialidade do magistrado que instrui e decide o processo, separando definitivamente quem acusa de quem julga, restabelecendo o equilíbrio entre defesa e acusação no processo criminal.

O que a mídia pensa – Editoriais

Reforma ajuda mercado de trabalho – Editorial | O Globo

Flexibilização trabalhista funciona e incentiva a abertura de vagas formais em atividades intermitentes

A proposta de reforma trabalhista apresentada ao Congresso no governo Michel Temer foi recebida com críticas conhecidas. A mais frequente, a de que direitos dos trabalhadores seriam “precarizados”, chavão sempre usado quando se tenta modernizar uma legislação trabalhista esclerosada, ainda da década de 40, dos tempos da ditadura estadonovista de Getúlio Vargas.

Sob a relatoria competente do então deputado Rogério Marinho (PSDB-RN) — competência comprovada no encaminhamento da reforma da Previdência, como secretário especial do Ministério da Economia — , aquele projeto prosperou até de forma surpreendente. Conseguiram-se avanços na área sindical que eram impensáveis não faz muito tempo.

Poesia | Fernando Pessoa - Antes de nós

Antes de nós nos mesmos arvoredos
Passou o vento, quando havia vento,
E as folhas não falavam
De outro modo do que hoje.
Passamos e agitamo-nos debalde.
Não fazemos mais ruído no que existe
Do que as folhas das árvores
Ou os passos do vento.
Tentemos pois com abandono assíduo
Entregar nosso esforço à Natureza
E não querer mais vida
Que a das árvores verdes.
Inutilmente parecemos grandes.
Salvo nós nada pelo mundo fora
Nos saúda a grandeza
Nem sem querer nos serve.
Se aqui, à beira-mar, o meu indício
Na areia o mar com ondas três o apaga,
Que fará na alta praia
Em que o mar é o Tempo?

Inéditos de João Cabral de Melo Neto serão publicados para marcar centenário

Autor, que faria 100 anos no dia 9, terá obra completa e novas biografias publicadas neste ano

Bolívar Torres | O Globo

RIO — Os documentos oficiais e a família de João Cabral de Melo Neto discordam sobre o dia em que o autor veio ao mundo. Mesmo que a certidão de nascimento marque 6 de janeiro de 1920, Cabral sempre comemorou seu aniversário três dias depois. A mãe, Carmen, insistia que ele nascera em um 9 de janeiro. A próxima quinta-feira, portanto, marca o centenário de nascimento oficial do escritor pernambucano, quando se inicia também uma série de comemorações em torno da efeméride.

O ano editorial será cheio, marcado principalmente pela publicação de novas edições das obras completas de Cabral, que trarão textos inéditos em prosa e poesia, e de pelo menos duas biografias. O autor também será homenageado no IX Festival Literário de Araxá (Fliaraxá), em julho.

Poema inédito:
Após a morte de Cabral, em outubro de 1999, foram publicadas duas edições com a integralidade de seus versos: uma da editora Nova Aguilar, de 2008; e outra da Glaciar, publicada em 2014 apenas em Portugal. Ambas foram organizadas pelo poeta e imortal da ABL Antonio Carlos Secchin, grande especialista em Cabral, que também é o responsável pela nova edição da poesia, a ser publicada desta vez pela Alfaguara, em meados do ano. A cada versão da antologia, ele vai aperfeiçoando o trabalho de fixação de texto, o que significa comparar publicações revendo verso a verso em busca de erros e gralhas.

Desta vez, porém, o trabalho ganhou uma dificuldade suplementar. Além de dois livros póstumos de Cabral, “Ilustrações para fotografias de Dandara”, de 2011, e “Notas sobre uma possível ‘A casa de farinha’”, de 2014, que não estavam em outros volumes das obras completas, a nova edição terá o acréscimo de dezenas de poemas nunca publicados.

A pesquisadora Edineia Rodrigues Ribeiro encontrou o material em uma pasta do acervo do autor na Casa de Rui Barbosa, que ainda está sendo analisado em toda sua extensão. Cerca de 40 poemas já foram confirmados como inéditos por Secchin e Edineia. Outros se enquadram na categoria de dispersos (versões diferentes de poemas já publicados). Mas há muito trabalho pela frente, e outras novidades podem surgir.