sexta-feira, 27 de março de 2020

Fernando Henrique Cardoso* - É hora de ação coordenada e de ter rumo

- Folha de S. Paulo

Não é hora de jogar pedras. Nem de fazer elogios descabidos. É hora de ação coordenada e de ter rumo. É este o papel principal de quem exerce a Presidência e demais posições governamentais. O coronavírus não é culpa de ninguém: aconteceu. Como outras tragédias já ocorreram com a humanidade.

Ainda bem que, apesar da tragédia das doenças, dispomos no Brasil de algumas vantagens: as informações fluem e o SUS existe. Além de existir uma indústria farmacêutica que pode rapidamente se adaptar às nossas necessidades. Poucos países (nenhum capitalista e com mais de 100 milhões de habitantes; nós temos mais de 200) possuem um sistema nacional de saúde capaz de atender, de modo universal e gratuito —só no ano de 2019 foram 12 milhões de internações hospitalares e mais de 1 bilhão de consultas ambulatoriais. Nós dispomos dele.

Antes do SUS, havia atendimento médico gratuito para as corporações e para o funcionalismo civil e militar. Os pobres tinham de recorrer às santas casas de misericórdia. Foi na Constituinte de 1988, com o empenho de deputados que eram médicos sanitaristas e de uns poucos que apoiaram as reivindicações deles que houve, finalmente, a decisão de criar o SUS, tomada pela maioria.

Sua posta em prática se deve a ministros como Adib Jatene, César Albuquerque e José Serra e a funcionários do calibre do então secretário-geral do ministério, Barjas Negri.

Mas deve-se, principalmente, à dedicação de médicos, enfermeiros, atendentes e funcionários, tanto do setor público quanto do privado, que foram capazes de dar vida a uma instituição que hoje é básica, o SUS. E às faculdades de medicina, assim como as de enfermagem, que formam profissionais competentes para trabalhar em hospitais que, na ponta, têm qualidade.

Cabe aos governos, diante da crise atual de saúde, atuar. Escrevo governo no plural, pois, além do governo federal, existem os estaduais e os locais. Estão tentando agir. Não é fácil: requer coragem, competência e coordenação. E não requer choques desnecessários com a mídia, mas deixá-la fazer seu papel, importantíssimo, de informar às pessoas o que fazer e aos governos o que ainda falta fazer.

Merval Pereira - Contradições paralisantes

- O Globo

Está difícil a equipe econômica virar a chave para se tornar pelo menos temporariamente keynesiana

Há contradições internas no governo Bolsonaro que emperram a tomada de decisões. Além dessas, há ainda disputas ideológicas que levam a decisões políticas nada baseadas em fatos comprováveis. O voucher previsto para os trabalhadores em situação vulnerável, como os que trabalham por conta própria, ainda não saiu do papel, mas já está sendo alvo de disputa politica.

O primeiro intuito do governo era distribuir R$ 200, a oposição propôs R$ 300 e o presidente da Câmara elevou a proposta para R$ 500. Ontem à tarde, o presidente Bolsonaro revelou que pensa em distribuir R$ 600 para cada vulnerável. Não há conta feita, apenas disputa política. Ainda bem que essa disputa favoreceu os mais pobres.

A injeção de dinheiro para as empresas continuarem abertas, garantindo empregos na transição do confinamento para a tentativa gradual de volta à normalidade, também continua empacada. Dias atrás o empresario Abilio Diniz anunciou em um fórum de debates que o ministro da Economia Paulo Guedes havia lhe garantido que injetaria R$ 600 bilhões com o intuito de preservar empresas e empregos, mas até agora não se tem uma decisão.

As medidas esbarram muito na concepção econômica da equipe, que quer a volta às atividades normais até o dia 7 de abril. Um sinal de que o desencontro dentro do governo é grande e uma disputa entre as equipes técnicas da Saúde e a da Economia. A decisão de usar a cloroquina ou hidroxicloriquina apenas em casos graves de Covid-19 foi considerada equivocada pela equipe econômica, que teme que o tratamento dos infectados se prolongue mais do que o necessário.

O próprio presidente Bolsonaro levou à reunião do G-20 a discussão sobre esse medicamento, que ele ordenou ser fabricado pelo Exército para aumentar a produção. Apesar dos resultados positivos já alcançados, no mundo e aqui, não há ainda indicações seguras sobre se seu uso nos casos de Covid-19 pode provocar efeitos colaterais.

Bernardo Mello Franco - Mergulho no esgoto

- O Globo

Nem diante da pandemia o governo disfarça seu desprezo pelos mais pobres. Ontem Bolsonaro disse que o brasileiro mergulha no esgoto e “não pega nada”

Enquanto o resto do mundo faz um esforço de guerra contra o coronavírus, o Planalto quer derrotar a epidemia sem fazer nada. Depois de atacar a política de isolamento social, Jair Bolsonaro disse que a responsabilidade de enfrentar a doença não é do governo. “O brasileiro tem que entender que quem vai salvar a vida dele é ele, pô!”, afirmou ontem, na porta do Alvorada.

Na contramão da comunidade científica, o presidente sustenta que o país deveria relaxar as medidas de distanciamento e confinar apenas a população idosa, mais vulnerável ao vírus. É uma tese furada, contestada por todos os especialistas sérios. Países que retardaram a quarentena obrigatória, como a Itália, produziram milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas.

Além disso, não há como separar todos os idosos de seus parentes. Em boa parte dos lares brasileiros, famílias inteiras dividem um único cômodo, em condições precárias de moradia e saneamento.

Flávia Oliveira - Darwinismo Social é o nome

- O Globo

Priorizar a engrenagem econômica é evidência de desumanidade. O luto é improdutivo

É Darwinismo Social, conceito que fundamenta regimes supremacistas, o que o presidente da República defende para o Brasil no enfrentamento à pandemia do coronavírus. Sem eufemismo, não há outra expressão para definir a preferência pela saúde da economia em detrimento da vida de parte da população idosa brasileira. Milhões de desempregados combinam menos com o projeto político do atual governo do que milhares de pais e mães, avôs e avós sepultados. Para não deixar dúvida, o mandatário eleito com 57 milhões de votos — em uníssono com seus pares na ideologia, no empresariado, nas igrejas — defendeu em rede nacional o isolamento dos mais velhos, a volta das crianças às escolas e dos adultos ao trabalho.

O grupo que comanda o país na travessia da aguda crise demonstra ou consciência vil ou desconhecimento inaceitável sobre a sociedade brasileira. De duas uma, ambas terríveis. A Organização Mundial da Saúde recomenda o distanciamento social e o confinamento doméstico como antídotos para reduzir o ritmo de contaminação que, fora de controle, leva ao colapso o melhor dos sistemas de saúde. Sanitaristas, infectologistas, pesquisadores — a ciência, enfim — alertam para o risco de crianças e jovens, comumente assintomáticos, transmitirem aos parentes a Covid-19. Ainda assim, nos Estados Unidos, epicentro da doença, duas em cada dez pessoas internadas com a doença tinham entre 20 e 44 anos.

Míriam Leitão - Como encontrar os novos pobres

- O Globo

Paes de Barros explica que o governo terá que se aliar às entidades da sociedade civil para socorrer quem perdeu renda

O governo que prometia privatizar, diminuir o Estado e fazer o ajuste fiscal terá que ampliar e muito a presença do Estado. Mas saberá como fazer? O economista Ricardo Paes de Barros acha que o governo terá que acionar as ONGs, as associações comunitárias para achar os “novos pobres”. Ele diz que este é um caminho para enfrentar o dilema do país neste momento: achar rapidamente a diarista, o trabalhador autônomo, o vendedor ambulante, todos os que tinham renda do seu trabalho diário, mas não têm poupança e repentinamente ficaram sem capacidade de sustento. E é urgente.

Enquanto o Congresso votava a elevação da renda para os informais de R$ 200 para R$ 500, o presidente Bolsonaro anunciou pela rede social que serão R$ 600. O problema mais grave é como encontrar de forma rápida os trabalhadores informais. Como chegar a todos os que precisam agora do Estado? Esse é o maior desafio. O governo precisa ouvir quem sabe. O Ipea lançará hoje um estudo sobre como enfrentar os problemas sociais do novo coronavírus, feito por um grupo de cientistas sociais que sempre se dedicou à medição da desigualdade e ao combate à pobreza. Esse assunto, ampliar a rede de proteção social, nunca foi a agenda prioritária do grupo de economistas que desembarcou no governo Bolsonaro.

Felizmente o Brasil tem ótimos especialistas em formulação de políticas sociais ativas. Um deles é Paes de Barros.

– Havia uma série de pessoas que ganhavam a vida e se mantinham no dia a dia sem poupança e seu fluxo de renda foi descontinuado. Não aparecem nos cadastros e podem se tornar extremamente vulneráveis: o motorista de táxi, a diarista, o ambulante. Ou um carpinteiro bem-sucedido que fazia armário embutido e agora não terá demanda alguma. Se todos esses não tinham poupança e viviam do que ganhavam naquela semana ou no mês, eles estão em apuros. Esse grupo não era pobre, mas vai ficar pobre agora – diz Paes de Barros.

Luiz Carlos Azedo - Corpo fechado

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“Há muita agitação contra a política de distanciamento social. Os aliados de Bolsonaro partiram para cima de prefeitos e governadores”

Os Estados Unidos se tornaram, ontem, o país com mais casos confirmados da Covid-19 no mundo, superando a Itália e a China, com 82 mil registros. O presidente Donald Trump minimizou o fato, com o argumento de que o aumento dos casos se deve à ampliação dos exames. “No fundo, não sabemos quais são os números reais da doença, mas nós testamos um grande número de pessoas e, a cada dia, vemos que nosso sistema funciona”, disse. Trump está preocupado com a economia norte-americana, que corre risco de entrar em profunda recessão. Negociou com o Congresso um pacote de US$ 2 trilhões, que serão injetados na economia e já estão repercutindo positivamente no mercado financeiro mundial.

No Brasil, ontem, o presidente Jair Bolsonaro insistiu na linha de minimizar a doença, a ponto de tripudiar da política de distanciamento social do Ministério da Saúde, que vem sendo seguida por governadores e prefeitos. “Eu acho que não vai chegar a esse ponto”, disse, se referindo aos Estados Unidos. “Até porque, o brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha, tá certo? E não acontece nada com ele. Eu acho até que muita gente já foi infectada no Brasil, há poucas semanas ou meses, e ele já tem anticorpos que ajuda a não proliferar isso daí”, disse.

Eliane Cantanhêde - Isolamento vertical

- O Estado de S.Paulo

Bolsonaro teme crise na economia e nas ruas, com derrota em 2022. E busca culpados

Uma pergunta sobrevoa os ares de Brasília nesses tempos de coronavírus: por que, com toda a tragédia e péssimas previsões para a economia, o presidente Jair Bolsonaro não dá um tempo nas suas guerras pessoais e assume mínima postura de estadista? A resposta inevitável é o temperamento incontrolável do presidente, mas isso é só uma parte da explicação.

Além da incapacidade de ouvir a própria assessoria, da mania de perseguição e da inveja de quem brilhe mais do que ele, o presidente tem motivações políticas e econômicas para a radicalização e o confronto, como no fatídico pronunciamento em que mandou às favas o isolamento social para se concentrar na economia. Os dois não são excludentes, mas isso é outra história.

Bolsonaro quer jogar a culpa da crise na mídia, governadores, prefeitos, Congresso, STF e até na China, porque teme perder apoio da base (aliás, do topo) bolsonarista – grande capital, empresariado e a tropa da internet. Logo, começou a bater o pânico de não ter gás para 2022. Com a economia derretendo, ou derretida, fica tudo mais difícil.

Há, também, outros fatores nas manifestações erráticas de Bolsonaro. Além de seu “passado de atleta”, de ter sobrevivido a uma facada e não temer “gripezinhas” e “resfriadinhos”, como esse tal de coronavírus, ele não é homem de esperar calado os ataques que imagina vindo de toda a parte. Sobretudo da esquerda, pretexto para tudo.

Ignácio de Loyola Brandão - Um presidente sem ternura

- O Estado de S.Paulo

Gosto de dar minhas voltas, ir aos lugares. Agora mesmo vou dar uma saidinha. Vou ao lavabo

Permitam-me começar com um desabafo. Todo mundo teve e está com medo, se emocionou, se solidarizou, mostrou compaixão para com os mortos e infectados, milhares estão em trabalhos voluntários. Só uma pessoa ignorou tudo. Não se abalou, não compartilhou a agonia dos brasileiros. Não mostrou um pingo de ternura para com este povo. Eis o que ele é, um homem sem ternura. Sem ela como amar seu povo e salvá-lo?

Iniciemos.

Encontro minha mulher vindo do quarto.

“Que tal? Tomamos o café juntos?”

“Será um prazer. Afinal o último juntos foi ontem.”

“Tanto tempo assim? O que vai fazer hoje?”

“Irei ao escritório, depois me sentarei na sala de visitas para montar uma lista de pedidos online ao supermercado.”

A sala de visitas é a mesma sala de estar é a mesma sala de almoço e janta, como se diz em Araraquara. Mas em cada momento cada um escolhe um lugar para ficar, assim temos a sensação de que a casa é grande.

“Já lavou as mãos?”

“Com sabonete e álcool-gel.”

“Pois eu penso em ir para o escritório e resolver um problema bobinho de um projeto.”

O escritório é o mesmo dos dois. Era o meu, há anos trabalho em casa, e ela trouxe do escritório a mesa, o computador, suas tralhas e trabalha aqui na minha frente. Há um pacto de silêncio entre nós. Um não fala para não atrapalhar o outro. Tenho de me conter, porque às vezes leio alto minhas frases, procuro palavras, sinônimos e antônimos, analogias, tentando ouvir o som. Ela faz psiuuu, calo-me.

Levanto-me.

“Onde vai?”

“Ao banheiro.”

Saio, não vou ao banheiro, vou à janela olhar a rua. Mania de cronista, olhar. Não reconheço a cidade silenciosa. Sumiram buzinas, escapamentos, sirenes, gritos. Ontem percebi, aqui do décimo terceiro andar (não somos supersticiosos), que lá embaixo havia um homem encostado no poste, olhando para cima. O que queria? Olhava para minha janela? Estava a me observar? (Paranoia do fantasma do Planalto, esse Nero que nos desgoverna.) Várias vezes durante a noite, olhei. Ele lá. A me vigiar?

Ricardo Noblat – Bolsonaro queima suas caravelas e vai para o tudo ou nada

- Blog do Noblat | Veja

Ou cairá mais adiante ou se fortalecerá como aspirante a ditador

Esta semana marcou uma virada sem retorno na trajetória do presidente da República. De problema político, a provocar conflitos e a desatar crises entre os Poderes na esperança de destruir a democracia e instalar uma ditadura no seu lugar, Jair Messias Bolsonaro passou também à condição de um grave problema sanitário que ameaça à saúde dos brasileiros.

Os próximos serão dias dilacerantes com a elevação dos casos confirmados de coronavírus e do número de mortos. E os dias mais trágicos ainda não terão chegado. Calculam técnicos do Ministério da Saúde que o pico da primeira onda da pandemia só se dará daqui a quatro semanas, coincidindo com o pico de mais duas epidemias: influenza e dengue. Tempestade perfeita.

Os Estados Unidos são o novo epicentro do coronavírus no planeta, ultrapassando em número de infectados a China, a Itália e a Espanha. Em Nova Iorque, nas últimas 24 horas completadas ontem à noite, morreram mais de mil pessoas. Há pelo menos meio milhão de infectados nos os países que costumam remeter seus dados oficiais à Organização Mundial da Saúde.

Jamais se saberá com exatidão quantos de fato foram contaminados e quantos perderam a vida. É assim nas pestes. Aqui, cientistas desconfiam que os números estejam sendo achatados, ou por deficiência dos sistemas de registro, ou por falta maior de conhecimento da doença, ou por razões ocultas que ainda não foram decifradas, mas que poderão vir a ser um dia.

Dora Kramer - Dilema atroz

- Revista Veja

Na nossa história recente tivemos duas eleições canceladas

A existência de urgências para além dos seis meses e alguns dias que ainda faltam para as eleições municipais não justifica, muito menos aconselha, a interdição do debate sobre a possibilidade do adiamento de votações nos 5 570 municípios brasileiros, que necessariamente levarão milhões às ruas num só dia.

Pode até não ser hora de decidir, mas a dinâmica da crise sanitária dá demonstrações constantes de que é preciso nos anteciparmos aos problemas antes que nos caiam na cabeça. Na atual conjuntura, não seria um tabu: o Chile cancelou um plebiscito marcado para 26 de abril, e a Bolívia suspendeu a eleição presidencial de 3 de maio.

Donde, nos ambientes adequados e entre personagens e instituições envolvidos na questão, torna-se desde já indispensável tratar do assunto. Se não for necessário adiar, ótimo. Mas, se for, melhor que estejamos prevenidos, pois o adiamento de uma eleição não é coisa trivial, envolve muitas e sensíveis questões. Evitar o tema só porque é difícil não é a solução.

Nessa seara, mudanças de datas por si são complicadas, ainda mais quando implicam a duração de mandatos. Até hoje, por exemplo, não se resolveram os problemas práticos decorrentes da posse de presidente, governadores e prefeitos marcada pela Constituição de 1988 para 1º de janeiro. Embora haja concordância geral sobre a conveniência de adiar ou adiantar a posse, não se mexe nisso devido aos aspectos institucionais que envolvem aumento ou diminuição do mandato de sucessores eleitos e antecessores ocupantes dos cargos.

Guilherme Amado - O mau militar, o retorno

- Revista Época

Em condições normais, seria uma crise institucional. O vice enquadrou o presidente

Se ainda não reencarnou, Ernesto Geisel deve estar com os olhos atentos a cada lance que se passa nesta dimensão, mais especificamente no quadradinho dentro de Goiás onde deveria estar o comando do combate ao coronavírus. Em uma entrevista em julho de 1993, para a historiadora Maria Celina D’Araújo, Geisel mencionou bem en passant Bolsonaro ao falar sobre as vivandeiras, os poucos que, menos de dez anos após o fim da ditadura, imploravam que o Exército derrubasse o presidente e retomasse o controle do país.

O então deputado federal era um deles e, desde aquele tempo, não se constrangia em atentar contra a democracia. O artífice da abertura divagava sobre a presença de militares na política brasileira, desde o Império, para defender a tese (até agora furada) de que o desenvolvimento os afastaria da tentação de fazer o que não lhes cabe. A menção a Bolsonaro veio aí, quando observou que naquela legislatura quase não havia mais militares congressistas. “Há militares no Congresso? Não contemos o Bolsonaro, porque o Bolsonaro é um caso completamente fora do normal, inclusive um mau militar.” A sagacidade do general acertou em cheio: pelo “completamente fora do normal” e por enxergar a indisciplina e a deslealdade de Bolsonaro, que fizeram com que os coronéis o condenassem em 1987 — em 1988, o Superior Tribunal Militar o absolveria por 8 votos a 4. Esteja onde estiver, Geisel viu nos últimos dias mais exemplos de como Bolsonaro esqueceu-se agora de outro preceito caro aos militares: o cientificismo. E o general também já deve ter sacado que, entre a ignorância (termo usado pelo governador Ronaldo Caiado para se referir a Bolsonaro) e a ciência, Hamilton Mourão fica com esta.

Os militares dificilmente concordarão com a tese do isolamento vertical, ou seja, deixando apenas idosos e pessoas com doenças preexistentes fora do convívio social. Disse na quarta-feira 25 o vice-presidente: “A posição do nosso governo, por enquanto, é uma só: o isolamento e o distanciamento social”. Na véspera e na manhã daquele mesmo dia, o presidente havia dito o oposto, na porta do Alvorada: “A orientação vai ser vertical daqui para a frente”.

Monica de Bolle* - Relaxamento de medidas sanitárias pode levar Brasil ao colapso

- Revista Época

Contaminação em grande escala da população resultaria em situação de descontrole que seria ainda mais letal para a economia

Não demorou para que a falsa escolha entre a saúde e a economia chegasse ao Brasil. Após ter sido ventilada por Donald Trump há poucos dias, o presidente brasileiro e parte de sua cúpula de irresponsáveis não tardou a vir a público para fazer aquela que talvez tenha sido a sua pior aparição – e isso não é coisa pouca. Quando vi Bolsonaro discursar na ONU, escrevi para a Época artigo intitulado “O Espetáculo Brutal da Nulidade Absoluta”. O que o Brasil assistiu na última terça-feira foi o espetáculo brutal da nulidade absoluta elevado à undécima potência e amparado por uma pequena parte do empresariado brasileiro que não percebeu o que acontece quando se chafurda na ignorância e na desumanidade.

Tenho escrito e falado muito sobre a doença, as medidas sanitárias, seus efeitos na economia e as políticas para atenuar esses efeitos. Em artigo para O Estado de São Paulo publicado em 18 de março, elenquei todas as medidas emergenciais que o governo precisa tomar para ontem. As medidas contemplam R$ 50 bilhões para o SUS, o aumento de 50% para o valor do benefício do Bolsa Família, além da ampliação do programa, a destinação de R$ 30 bilhões para as micro e pequenas empresas que não têm acesso aos bancos públicos, a criação de uma renda básica emergencial no valor de R$ 500 a ser dada por 12 meses para os 36 milhões de brasileiros vulneráveis desassistidos registrados no Cadastro Único. Também incluí medidas de médio prazo – a crise é de longa duração –, como o crédito do BNDES para permitir a reconversão industrial, isto é, que fábricas possam se voltar para a produção de equipamentos médicos, além da inversão da pirâmide tributária brasileira. Invertê-la significa tributar rendas altas e patrimônios progressivamente, desonerando o consumo e a produção.

Ruy Castro* Tribunal do futuro

- Folha de S. Paulo

Chamar Bolsonaro de irresponsável não é correto; ele será o grande responsável por tudo

Há uma sensação de que, se Jair Bolsonaro não for amarrado a uma árvore e amordaçado antes de tomar mais medidas desastrosas, o custo em vidas —pessoas que não precisariam nem ter sido infectadas e que morrerão— será incalculável. Mas, um dia, essas vidas terão de ser calculadas. Todos os membros do governo que, por atos ou palavras, se opuseram à política de isolamento social e contribuíram para a disseminação do coronavírus serão obrigadas a pagar por isso.

Entre esses, deverão incluir-se o senador Flávio Bolsonaro e o ministro da Destruição do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Eles postaram um vídeo do dr. Drauzio Varella gravado há dois meses, quando a situação era diferente, como se se referisse a hoje, e depois pediram "desculpas pela distração". Essa "distração" pode ter tirado de casa e exposto à doença milhares de pessoas que respeitam Drauzio Varella e seguem sua orientação.

Na apuração das cumplicidades, não poderão faltar pascácios como Regina Duarte, secretária da Cultura, e seu subordinado que lhe é superior, Sérgio Camargo, diretor da infeliz Fundação Cultural Palmares —nenhum deles agente sanitário ou sequer mata-mosquitos, mas que se apressaram a aderir à política de contaminação.

Hélio Schwartsman - Crime de irresponsabilidade

- Folha de S. Paulo

Até traficantes já mostram mais responsabilidade do que Bolsonaro

Reportagem de Catia Seabra e Júlia Barbon mostrou que, no Rio de Janeiro, organizações criminosas estão impondo toque de recolher em favelas para restringir a disseminação da Covid-19. Quando até traficantes atuam com mais responsabilidade do que o presidente da República, é sinal de que já passa da hora de nos livrarmos do inquilino do Alvorada. A questão é como.

O remédio constitucional para a nossa patologia é o impeachment. Seria complicado, porém, utilizá-lo agora. O processo de afastamento de um presidente demanda tempo e drenaria as energias de um Congresso que, no momento, tem assuntos mais urgentes para tratar, notadamente a aprovação de medidas econômicas de emergência para atenuar os efeitos da crise, que serão dramáticos.

A alternativa pragmática é isolar politicamente o presidente. Ele continuaria proferindo desatinos, enquanto prefeitos, governadores e até ministros da ala racional fariam o que precisa ser feito. No plano jurídico, mesmo que esteja disposto ao enfrentamento, Bolsonaro não tem autoridade para revogar determinações de autoridades municipais e estaduais relativas ao funcionamento de comércio, escolas, transporte local etc.

Reinaldo Azevedo – Bolsonaro cobra do país o impeachment

- Folha de S. Paulo

É uma ilusão tola apostar que o presidente vai parar, ele não vai

O presidente Jair Bolsonaro busca desesperadamente o impeachment. Nem ele sabe disso. Já escrevi a respeito no meu blog. Trata-se de uma fantasia narcísica da qual, obviamente, ele não tem consciência.

Quer ser mártir de um delírio compartilhado com um país mental que chamo “Bolsolavistão”. Se e quando cair, e tudo indica que vai, poderá, então, se oferecer como a verdade sacrificada pelos homens maus. No terreno pessoal, só isso explica o seu comportamento.

Um dado puramente técnico: na minha conta, ele já cometeu 10 crimes de responsabilidade, com 15 agressões à lei 1.079. Na leitura desta Folha, foram 15 crimes autônomos. Tanto faz. Para sustentar uma denúncia, basta um. O único seguro do governante, nesse caso, é impedir que se forme uma maioria qualificada de dois terços da Câmara em favor do impeachment. Com 342 deputados, já era! Não será o Senado a segurá-lo.

As ruas decidirão a sorte de Bolsonaro, mesmo essas enclausuradas nas sacadas e janelas. A canção de resistência do Brasil, a “Bella Ciao” destas plagas, entre 20h e 20h30, tem outro refrão: “Fora Bolsonaro”, sem vírgula. O comportamento do presidente na crise do coronavírus está transformando essas duas palavras numa divisa civilizatória. A economia pode fazer o resto.

Bruno Boghossian – Hambúrgueres e quinquilharias

- Folha de S. Paulo

Presidente age como se a solução fosse só vender hambúrgueres e quinquilharias

Além de fazer propaganda de um remédio em fase de testes, Jair Bolsonaro anunciou outra ideia para enfrentar o coronavírus. O presidente disse que a população deve voltar ao trabalho e lançar a campanha "Fica em casa, vovô". "O brasileiro tem que entender que quem vai salvar a vida dele é ele", esbravejou.

O retorno à atividade econômica se consolidou como aposta definitiva do governo na crise. Bolsonaro ainda tenta disfarçar sua desumanidade atroz ao indicar a necessidade de equilíbrio entre saúde e a retomada da produção, mas continua priorizando um só lado. "Lamentavelmente, a nossa vida, um dia ela se esvai", disse, nesta quinta-feira (26).

O presidente sabe que boa parte da população teme o desemprego e a evaporação da renda como consequências da crise. O problema é que o próprio governo reforça o medo: até agora, foi incapaz de oferecer uma proteção para quem perder o salário e não conseguiu criar condições seguras para a volta ao trabalho.

Vinicius Torres Freire – Brasil está sem governo na economia

- Folha de Paulo

Equipe econômica só sabe anunciar medidas vagas, insuficientes e sem efeito prático

Os números do colapso econômico ainda são muito raros e parciais, mas prenunciam calamidade. O consumo de energia caiu quase 9% em uma semana (para ser preciso: foi a queda da carga do dia 15 ao 22 de março, domingo), para começar.

Não é preciso muito discernimento para prever que comércios e fábricas paradas vão provocar uma baixa inédita no PIB pelo menos durante um trimestre, embora o resultado do ano possa ser também um desastre secular.

Por ora, vamos argumentar como se o país tivesse um governo. Não é preciso ter muita luz para perceber que um governo sabotado pelo próprio presidente da República intensificará de modo genocida o desastre.

Mas, por ora, suponhamos que as autoridades econômicas façam parte de um governo minimamente funcional. Pois bem, o governo da economia também não demonstrou que é minimamente funcional, organizado, imaginativo ou com capacidade de implementação.

Entrevista | Governo deveria pagar os salários nas empresas menores, diz economista

Para Armando Castelar, é mais simples depositar o dinheiro na conta dos empregados do que conceder crédito via bancos

Vinicius Torres Freire | Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Em certos casos e condições, é melhor o governo pagar salários de pequenas empresas em dificuldades por causa do paradão da epidemia. Melhor, de qualquer maneira, que o Tesouro emprestar dinheiro por meio de bancos, diz o economista Armando Castelar, coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV e professor da UFRJ.

Castelar tem dúvidas sérias sobre os planos de criar uma linha de empréstimos a taxas de juros baixas e prazos longos de pagamento, com fundos ofertados pelo governo, que ficaria com o risco de crédito, o qual seria concedido por meio de bancos.

“Deve ser necessário, por exemplo, manter empregos em empresas viáveis, mas sem faturamento algum na crise, pequenas e médias empresas. É mais simples o governo pagar esses salários, depositando o dinheiro diretamente na conta dos empregados da empresa, por exemplo na conta do FGTS.”

As receitas de paliativos para crise, porém, são várias e devem mudar, diz o economista. “Neste começo, o tamanho do pacote não precisa ser grande, pois famílias e empresas ainda têm reservas para lidar com a parada de, até aqui, uma semana ou duas, dependendo do caso. Com o passar do tempo, mais ajuda será necessária. Será preciso focar quem não tem reservas: famílias pobres, trabalhadores informais e micro, pequenas e médias empresas. Não acho que seja o caso de ajudar grandes empresas.”

A crise vai ser longa. Além de paliativos, o que fazer? “Agora é hora de prover uma rede de segurança. Haverá uma segunda etapa em que será adequado dar mais estímulos monetários e fiscais. Isso ocorrerá quando a crise de saúde pública começar a amainar e a economia tentar começar a reagir.”

• As medidas anunciadas pelo governo são razoáveis? Pode-se fazer mais? 

Em termos. O pacote parece relativamente bem focado, dirigido a fornecer liquidez a quem mais precisa nesta etapa, micro, pequenas e médias empresas, trabalhadores informais ou que podem ficar desempregados, por exemplo. O BC também está operando bem em garantir a liquidez nos mercados de crédito e ativos financeiros.

Isto posto, o tamanho anunciado até aqui do pacote reflete o fato de a crise de saúde e a quarentena ainda estarem no início, em relação a Europa e EUA. Acredito que mais recursos serão adicionados conforme o tempo passe e as reservas financeiras de empresas e famílias seja consumida.

Os trabalhadores informais, por exemplo, têm renda média bem superior a R$ 200 e seria importante ver como elevar esse valor.

Para as pequenas empresas, postergar pagamento de tributos e dívidas resolve bem. Fica faltando ajudar com os salários, e isso pode ser feito via os diversos registros, como a Rais. O problema são as empresas informais, mas aí o foco deve ser nos trabalhadores.

• Fala-se em ajudar a travessia do deserto, a falta de faturamento, com empréstimos com carência razoável e prazos alongados de pagamento. 

Sim, o crédito pode cumprir esse papel. A questão é que os bancos querem que o Tesouro garanta o pagamento dessas dívidas. Aí deixa de ser uma boa ideia, pois o perigo de risco moral é grande [bancos emprestarem sem critério, para quem não precisa, já que o governo fica com o risco].

Como disse, acho que a melhor solução é ajudar no pagamento dos salários em micro, pequenas e médias empresas, além de adiar pagamento de tributos. As dívidas com os bancos, estes deveriam resolver privadamente.

José de Souza Martins* – Epidemia e crise social

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Quando setembro chegar e as mudanças sociais e culturais decorrentes da pandemia já tiverem se tornado realidade, haverá consequências políticas, como a possibilidade de um governo desamparado pela sociedade

Esta epidemia da covid-19 terá consequências socialmente duradouras, como já aconteceu em várias sociedades em outras situações de pânico e em situações de guerra. Nesses momentos, insuficiências, fragilidades e limites de uma sociedade ficam expostos e motivam o despertar do lado crítico da consciência social.

Reinterpretações até radicais substituem a passividade do senso comum. Emerge a possibilidade de transformações sociais necessárias à correção dos problemas de organização da sociedade revelados pelas ocorrências inesperadas.

Pandemias são expressões, também, da fragilidade social e da limitada durabilidade das estruturas sociais. Se elas não se renovam na vida cotidiana, se a sociedade não se reproduz, o vazio expõe os carecimentos radicais que promovem a revolução das inovações sociais profundas que possa resolvê-los.

Nossa sociedade ainda não se deu conta da extensão das mudanças sociais que decorrerão da pandemia, tanto na enfermidade quanto nas fantasias que alcançarão a mentalidade popular e as normas sociais com elas relacionadas. São as racionalizações para explicar o inexplicável, tentativas de senso comum para adivinhar causas e fatores das ocorrências e reagir a eles.

Tardiamente descobriremos, em comparação com países prósperos alcançados pela pandemia, que a cópia de modelo econômico aqui implantada em 1964 permitiu à economia brasileira produzir lucros de Primeiro Mundo graças à remuneração do trabalho de Terceiro Mundo. Relativizaram-se os direitos sociais, o que vem sendo completado no governo de Jair Messias.

César Felício - Quem sobrevive

- Valor Econômico

Na pandemia, política e compaixão são água e óleo

Política e compaixão são universos que não se misturam, está claro, assim como economia e comiseração. Em uma calamidade como a que vivemos, fica evidente o brutal “trade-off”: a classe política deve tolerar quantas mortes na pandemia? É aceitável que os mais vulneráveis morram para que a engrenagem gire? Qual o custo social da parada da engrenagem?

Não há desavisados neste jogo e as opções de cada um dos protagonistas têm em mente o equilíbrio das forças que buscam o poder. Sobre o comportamento do presidente da República, há quem veja em sua atuação intenções preocupantes.

Para o filósofo Marcos Nobre, presidente do Cebrap, a perspectiva eleitoral deixou de ser o plano A na estratégia política do presidente Jair Bolsonaro para se manter no poder. Nobre acredita que o presidente concluiu que a pandemia do coronavírus comprometeu definitivamente o cenário econômico para 2022.

A depressão econômica retira o favoritismo de uma candidatura à reeleição. Bolsonaro teria passado então a apostar no caos social, eliminando os instrumentos de controle da pandemia que tentam ser impostos, como forma de estimular o surgimento de um cenário que permita a ruptura institucional.

“Bolsonaro não está pensando mais em eleição para se manter no poder. Ele acha que com o caos há um ambiente para as Forças Armadas interferirem. Se há algo que as Forças Armadas não toleram é o caos”, aposta Nobre.

Claudia Safatle - Para quando o voucher de R$ 600 chegar

- Valor Econômico

Está nas mãos dos liberais a edição de um plano keynesiano

Das medidas anunciadas pelo governo federal para o combate ao coronavírus, as mais urgentes e ainda não operacionalizadas talvez sejam a do “voucher” destinado aos cerca de 38 milhões de trabalhadores informais, no valor mensal de R$ 600 por três meses; e a proposta de medida provisória que regulamentará a suspensão temporária do contrato de trabalho (“layoff”) e definirá quem vai pagar os milhões de trabalhadores de micro, pequenas e médias empresas que estarão nesse regime. Provavelmente um percentual do rendimento mensal desses empregados será financiado pelo seguro desemprego. Uma outra parcela deverá caber aos empregadores, na proporção do tamanho das empresas.

Passados oito dias do anúncio do voucher, a proposta ainda não foi aprovada pelo Congresso. Os deputados sugeriram aumentar dos R$ 200 iniciais oferecidos pelo governo para R$ 500. O presidente Jair Bolsonaro, porém, anunciou o valor de R$ 600 com autorização prévia, segundo ele, do ministro da Economia, Paulo Guedes.

O governo estimou gastar R$ 22 bilhões com essa ajuda de R$ 200 que Guedes chamou de “cheque cidadão”. Para chegar aos R$ 600, a despesa sobe para algo próximo a R$ 45 bilhões.

Os informais são pessoas que, diante do isolamento social decretado pelos governos dos Estados no enfrentamento da pandemia, perderam as condições de trabalho e estão, desde então, sem renda sequer para comprar alimentos.

A medida, que estava sendo apreciada ontem pela Câmara, ainda terá que passar pelo crivo do Senado antes de o dinheiro chegar no bolso dos trabalhadores autônomos.

Fernando Abrucio* - Coronavírus traz trevas, mas ensina

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana 

Pior presidente da história do país, Bolsonaro tem todos os predicados indesejáveis para enfrentar a crise atual

A expansão da pandemia de coronavírus traz milhares de más notícias todos os dias. São mortes e casos da doença crescentes, com situações calamitosas principalmente na Itália, Espanha e agora nos EUA. Além da perda de vidas, os sistemas de saúde entraram em colapso em muitos lugares. A economia mundial terá seu pior desempenho desde a crise de 2008, na melhor das hipóteses produzindo uma grande recessão, e na pior, gerando uma depressão similar à da década de 1930. O Brasil não escapará dessa realidade, apesar de o presidente Bolsonaro dizer que teremos apenas uma “gripezinha”. É um período de trevas, mas do qual muitos ensinamentos podem surgir.

A crise atual tem uma multiplicidade de efeitos que a torna muito mais complexa do que qualquer outra depois da Segunda Guerra Mundial. Afetará não só a saúde, mas também a economia, a organização da sociedade, a política dentro dos países e as relações internacionais. Disso resulta a sensação de um cenário mundial sombrio.

No caso brasileiro, o problema é ainda maior não apenas por conta das nossas limitações de recursos e da enorme desigualdade social. No momento mais difícil do país em décadas, está no comando um timoneiro que pode ser caracterizado, tranquilamente, como o pior presidente da história do Brasil. Bolsonaro tem todos os predicados indesejáveis para enfrentar a crise atual: político radical que vive da polarização e não do diálogo, inimigo da ciência, da imprensa e de qualquer visão diferente da dele, além de não ter equilíbrio emocional para o posto que ocupa. O pior de tudo é que não consegue organizar e coordenar seu governo, inclusive muitas vezes atrapalhando seus ministros. É este o líder de que precisaríamos agora?

Equipe econômica quer cortar salário de todos os servidores

Propostas em discussão envolvem redução salarial de ao menos 20% e valeria até 2024

Por Ribamar Oliveira | Valor Econômico

BRASÍLIA - A equipe econômica pretende que o corte de salários dos funcionários públicos, previsto em proposta de emenda constitucional (PEC) em negociação com o Congresso, alcance os membros dos Poderes, como juízes, procuradores, promotores, ministros, parlamentares, governadores, prefeitos e militares, além de inativos e pensionistas. Ficariam de fora só aqueles com remuneração mais baixa.

O corte nos salários do funcionalismo é considerado essencial pela área técnica do governo para que União, Estados e municípios possam enfrentar o custo das ações de combate à pandemia. A PEC é de iniciativa de lideranças políticas e conta com o apoio do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Há várias versões em discussão, com cortes de 20% a 30% e limites de isenção entre R$ 6.032,73 (teto do INSS) e R$ 10 mil. Há também a ideia de instituir um empréstimo compulsório em substituição ao corte de salários dos servidores.

André Lara Resende e Francisco Serra Lopes Rebelo de Andrade* -Ousar e confiar

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

É imperativo ser generoso com a população desassistida e que se adote um programa de ajuda de custo universal

Estamos diante de uma crise sem precedentes. A pandemia provocada pelo coronavírus não tem mais fronteiras. A experiência dos países onde a epidemia está mais avançada deixa claro que não há opção. Para evitar um pico de infectados com necessidade de atendimento hospitalar que levaria ao colapso do sistema de saúde, é imperioso que as pessoas se isolem e evitem todo o contato social. O confinamento domiciliar de todos que não trabalhem nas atividades essenciais é a única forma de reduzir o coeficiente de infecção e de distribuir o número de doentes ao longo do tempo.

O confinamento obrigatório tem altos custos pessoais e econômicos. A paragem brusca da economia será sem precedentes. Muito mais intensa do que a provocada por qualquer crise recessiva cíclica do passado. Estamos diante de uma verdadeira escolha de Sofia: ou o colapso do sistema de saúde, com um enorme número de mortos, vítimas da sobrecarga do sistema hospitalar, ou bem uma paragem sem precedentes da economia. Mas não há alternativa. Ao menos por alguns meses, na melhor das hipóteses, será preciso paralisar todas as atividades não essenciais para reduzir a circulação de pessoas.

A sobreposição da crise econômica a uma dramática crise sanitária exige resposta imediata e audaciosa. Na Europa e nos EUA os governos anunciaram medidas de emergência. O Banco Central Europeu e o Fed estenderam linhas de crédito praticamente ilimitadas para o sistema bancário. Medidas fiscais estão sendo negociadas para aprovação nos parlamentos. Há uma preocupação de não repetir o erro de 2008, quando foi feito “muito pouco, muito tarde”.

Antes de mais nada, é preciso descartar as falsas restrições. A questão das fontes de recursos para as despesas do governo é um falso problema. É resultado de um arcabouço teórico equivocado e anacrônico que foi erigido em dogma dos economistas hegemônicos nos últimos anos. A tese de que o governo não pode gastar se não dispuser de fontes fiscais, de que é sempre preciso equilibrar o orçamento para evitar a expansão da dívida pública interna, não tem qualquer validade lógica ou empírica. É um mito com pretensão científica. Um mito transformado em dogma para restringir a ação do Estado. Trata-se de um mito com altos custos em tempos normais, mas que em situações extraordinárias, como a atual pandemia, ao impedir a adoção de políticas públicas indispensáveis para minorar a crise e o sofrimento, é desastroso.

Propaganda do Planalto pede fim de isolamento, e Bolsonaro posta vídeo de carreata anticonfinamento

Presidente joga todas suas fichas na disputa com os governadores e Congresso sobre o coronavírus

Igor Gielow | Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - A defesa de uma política leniente com a propagação do novo coronavírus no país virou objeto de um vídeo de divulgação institucional da Presidência de Jair Bolsonaro. Nele, a volta ao trabalho de regimes de confinamento é estimulada, contrariando orientações globais sobre o tema.

A peça foi distribuída, em forma de teste, para as redes bolsonaristas. Nela, categorias como a dos autônomos e mesmo a dos profissionais da saúde são mostradas como desejosas de voltar ao regime normal de trabalho. "O Brasil não pode parar", encerra cada trecho do vídeo, inclusive para os "brasileiros contaminados pelo coronavírus".

O primogênito do clã, o senador Flávio (RJ), foi o responsável por dar o chute inicial desta etapa da campanha #BrasilNaoPodeParar, em postagem no Facebook na noite de quinta (26). O filho presidencial é o pivô das investigações criminais acerca de relações entre milícias e a família Bolsonaro.

A página da Secom (Secretaria de Comunicação da Presidência), cujo chefe, Fabio Wajngarten, foi contaminado pelo patógeno, divulgou na quarta (25) a hashtag da campanha.

Além disso, o próprio presidente postou em sua conta no Twitter o vídeo de uma carreata realizada em Camburiú (SC) contrária ao isolamento social recomendado pela maioria dos governos que lidam com a pandemia e pela OMS (Organização Mundial da Saúde).

A ofensiva mostra que Bolsonaro colocou todas suas fichas na hipótese de que a pandemia, que já matou 77 brasileiros desde o primeiro caso registrado há um mês, terá impacto reduzido sobre a saúde pública.

Desde a emergência da questão sanitária, Bolsonaro tem sistematicamente negado a gravidade da infecção pelo vírus que causa a Covid-19. Em oposição a ele, os 27 governadores de estado se uniram em uma frente pedindo recursos federais e medidas para aliviar o impacto econômico da crise.

Entrevista | Arminio Fraga: Se não houver isolamento, economia pode sofrer segundo baque

Ex-presidente do Banco Central diz que é falso o debate entre salvar vidas e a economia

Luciana Rodrigues e Cássia Almeida | O Globo

RIO - O economista Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central, alerta que é falsa a dicotomia entre salvar vidas e a economia. Suspender a quarentena imposta na maior parte do país não levaria os brasileiros a saírem gastando, nem os empregos seriam preservados em sua plenitude. “Dá a impressão de que há um custo econômico, e há. Mas dá também a impressão de que há uma alternativa sem custo, que seria fazer o (isolamento) vertical. Mas isso não é verdade”, afirma Arminio em entrevista, por videoconferência, de sua casa no Rio. E diz que, para socorrer a economia, é preciso agir rapidamente, o que não está acontecendo.

• Os economistas defendem um socorro à economia. No caso da pandemia, os médicos dizem que, quanto antes a quarentena, mais eficaz ela é. É possível fazer um paralelo com a economia? O socorro não está demorando?

- São duas situações diferentes, mas há, sim, um paralelo. No caso do isolamento, a ideia é se antecipar à propagação do vírus. Em outros países, como Cingapura, que é rica e pequena, foi possível também testar muito, com rastreamento de contatos, um processo quase individual. Mas isso não seria possível aqui. Então, o isolamento é a única opção, e quem agiu com presteza teve resultados melhores. No lado da economia, a ação ganha contornos de urgência, em função do colapso súbito da receita de várias empresas, pequenas, médias e grandes. Dependendo do setor, o colapso chega a 100%. Nada disso existe em situações normais. Numa recessão, a receita cai aos poucos e chega, no pior momento, a uma queda média de 10%. Por consequência, espera-se uma onda enorme de desemprego. Por isso, é importante agir rapidamente. O que não está acontecendo.

• Muitos dizem que a quarentena vai “matar a economia”. Não adotar a quarentena pode ser um risco maior à economia?

- Considero que sim. É preciso olhar no detalhe. Suspender a quarentena não significa que as pessoas vão sair gastando e os empregos vão ser preservados na sua plenitude. No caso do Brasil, pegaria um número muito grande de pessoas muito fragilizadas. Da população brasileira, 38% são idosos, portadores de doenças crônicas ou ambos. Seria uma loucura. Quem faz essa proposta (de não adotar a quarentena) sugere o seguinte modelo chamado de vertical: fecha tudo por duas semanas, identifica-se quem está carregando o vírus e isola essas pessoas. Segrega e isola os mais velhos. Aqui no Brasil, isso é totalmente impossível. E os que ficarão expostos são muito numerosos e vulneráveis. Nossa rede de hospitais, como aliás em boa parte do mundo, não estava preparada para uma emergência desse tamanho, seria uma catástrofe social. Isso foi ventilado no Reino Unido, e eles rapidamente desistiram. A ideia de que há uma relação de troca entre saúde e economia, na minha avaliação e de meus colegas do Ieps (Instituto de Estudos para Políticas de Saúde), é que não é bem assim. As pessoas já estão muito assustadas e não vão sair consumindo mesmo que se decrete o fim do isolamento de repente.

• A adoção do isolamento vertical no Brasil prejudicaria a população mais vulnerável?

Sim. Teremos de gastar algum tempo em quarentena. Seria reduzida aos poucos, com cuidados. Haverá, portanto, um custo econômico. Alguns passam a impressão de que há uma alternativa sem custo, que seria fazer o (isolamento) vertical. Mas isso não é verdade, como já mencionei. Estamos lidando com uma situação com grande potencial de instabilidade. Cabe uma resposta firme de política social e econômica. Nós temos os recursos. Os EUA vão gastar 5% do PIB. Aqui poderíamos gastar um pouco menos, 3%, 4% do PIB, deixando claro que são gastos temporários, mas ajudariam bastante A situação já não estava tão boa, o desemprego já vinha alto, a economia vinha crescendo pouco

• O senhor vem de uma família de médicos. Como vê a discussão entre salvar vidas ou salvar a economia?

- Eu não vejo esse trade-off (relação de troca) sendo tão marcante. É evidente que a opção é salvar vidas. Mas eu não creio que a economia se beneficiaria tanto (de uma suspensão da quarentena, que faria mais vítimas). E, num segundo momento, a economia poderia levar a um segundo baque. Estamos fazendo uma administração para ganhar tempo, minimizando as perdas humanas, é uma questão humanitária, reduzindo ao máximo possível o pico da demanda por UTI hospitalar e torcendo para que chegue logo o momento da vacina ou de alguma cura. Nesse meio tempo, é crucial que o governo apresente uma estratégia clara, que deveria englobar quatro grandes ações de resposta à crise: apoio à rede hospitalar, manutenção do abastecimento e da logística, ajuda à população mais pobre e socorro às empresas. Na questão da logística, é importante levar até as pessoas alimentos que, no Brasil, são produzidos em enorme abundância. Não podemos correr o risco de as pessoas passarem fome. Essa talvez seja a parte menos complicada, existe uma logística que funciona muito bem até nas favelas.

Carta dos governadores do Brasil neste momento de grave crise

O Brasil atravessa um momento de gravidade, em que os governadores foram convocados por suas populações a agir para conter o ritmo da expansão da Covid-19 em seus territórios. O novo coronavírus é um adversário a ser vencido com bom senso, empatia, equilíbrio e união. Convidamos o presidente da República a liderar este processo e agir em parceria conosco e com os demais poderes.

Reunidos, queremos dizer ao Brasil que travamos uma guerra contra uma doença altamente contagiosa e que deixará milhares de vítimas fatais. A nossa decisão prioritária é a de cuidar da vida das pessoas, não esquecendo da responsabilidade de administrar a economia. Os dois compromissos não são excludentes. Para cumpri-los precisamos de solidariedade do governo federal e de apoio urgente com as seguintes medidas (muitas já presentes na Carta dos Governadores assinada em 19 de março de 2020):

1. Suspensão, pelo período de 12 meses, do pagamento da dívida dos Estados com a União, a Caixa Econômica Federal, o Banco do Brasil, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, e organismos internacionais como Banco Mundial e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), bem como abertura da possibilidade de quitação de prestações apenas no final do contrato, além da disponibilização de linhas de crédito do BNDES para aplicação em serviços de saúde e investimentos em obras;

2. Disponibilidade e alongamento, pelo BNDES, dos prazos e carências das operações de crédito diretas e indiretas para médias, pequenas e microempresas. Demanda-se viabilizar o mesmo em relação a empréstimos junto a organismos internacionais;

3. Viabilização emergencial e substancial de recursos livres às Unidades Federadas, visando a reforçar a nossa capacidade financeira, assim como a liberação de limites e condições para contratação de novas operações de crédito (incluindo extralimite aos Estados com nota A e B), estabelecendo ainda o dimensionamento de 2019 pelo Conselho Monetário Nacional e permitindo a securitização das operações de crédito;

4. Imediata aprovação do Projeto de Lei Complementar 149/2019 (“Plano Mansueto”) e mudança no Regime de Recuperação Fiscal, de modo a promover o efetivo equilíbrio fiscal dos Entes Federados;

5. Redução da meta de superávit primário do Governo Federal, para evitar ameaça de contingenciamento no momento em que o Sistema Único de Saúde mais necessita de recursos que impactam diretamente as prestações estaduais de saúde;

6. Adoção de outras políticas emergenciais capazes de mitigar os efeitos da crise sobre as parcelas mais pobres das nossas populações, principalmente no tocante aos impactos sobre o emprego e a informalidade, avaliando a aplicação da Lei nº 10.835, de 8 de janeiro de 2004, que institui a renda básica de cidadania, a fim de propiciar recursos destinados a amparar a população economicamente vulnerável;

7. Apoio do governo federal no tocante à aquisição de equipamentos e insumos necessários à preparação de leitos, assistência da população e proteção dos profissionais de saúde.

O que a mídia pensa - Editoriais

O isolamento de Bolsonaro – Editorial | O Estado de S. Paulo

Seus recuos ou acenos ao diálogo são apenas táticos, para manter a esperança de que a institucionalidade prevalecerá, enquanto o bolsonarismo trabalha para miná-la

O presidente da República, Jair Bolsonaro, escolheu isolar-se dentro de seu próprio governo. Multiplicam-se os relatos de que Bolsonaro já não dá ouvidos nem mesmo a alguns de seus principais ministros, inclusive em questões de alta complexidade e que demandam o parecer de especialistas. O desencontro entre o discurso irresponsável do presidente em relação à epidemia de covid-19 e as recomendações de cautela por parte do Ministério da Saúde foi apenas o mais recente exemplo do distanciamento de Bolsonaro daqueles que trabalham para auxiliá-lo neste momento dramático.

Em sua quarentena particular, optou deliberadamente por não mais levar em conta as opiniões daqueles cuja função é fornecer-lhe os dados da realidade e apontar soluções com base neles. Tem preferido prestar atenção em conselheiros que o atiçam contra tudo e todos que são considerados obstáculos a seu projeto de poder.

Poesia | Fernando Pessoa - Tenho tanto sentimento

Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.