terça-feira, 5 de maio de 2020

Opinião do dia – Eliziane Gama*

O que nós temos é um presidente que testa diariamente os limites institucionais. Para mim, ele chegou no limite do tolerável. O presidente Bolsonaro incita o ódio entre os seus seguidores e ele acaba criando, com isso, um clima de instabilidade diário. E agora demonstra claramente a disposição de uso político das Forças Armadas. Está claro de que o presidente está descontrolado no comando da nação brasileira.

*Líder do Cidadania no Senado, Eliziane Gama (MA), no Jornal Nacional da TV Globo, 4/5/2020.

Merval Pereira - Supremo poder

- O Globo

Bolsonaro está esticando a corda a tal ponto que parece querer o confronto para constranger o STF e o Congresso

Pela segunda vez em poucos dias, o ministro da Defesa, General Fernando Azevedo e Silva é obrigado pelas circunstâncias políticas provocadas pelo presidente Jair Bolsonaro a soltar uma nota oficial tentando retirar as Forças Armadas do protagonismo em que o presidente as coloca em manifestações antidemocráticas.

A frase dúbia dita por Bolsonaro durante manifestação de domingo sobre as Forças Armadas tem o propósito de colocá-las ao lado das atitudes ilegais e inconstitucionais que está cometendo.

As Forças Armadas teriam que se pronunciar, natural que não pudessem dizer claramente que o presidente está mentindo, ou usando-os como biombo para ações ilegais, mas coube uma nota oficial a respeito do entendimento sobre democracia, respeito às leis, ao Congresso e ao STF, para que não paire no ar nenhuma dúvida de que não estariam realmente ao lado de Bolsonaro quando ele quebra as regras da democracia.

Sublinhando que as Forças Armadas são “organismos de Estado”, já eximiram-se de uma atuação de Governo, como a de domingo em frente ao Palácio do Planalto, com um teor político explosivo. Bolsonaro, no entanto, ainda tem uma compreensão por parte de seus pares militares, que não entenderam ainda, ou não querem entender, que essas manifestações são claramente ilegais.

José Casado | Bolsonaro perde, de novo

- O Globo

Ele quer envolver as Forças Armadas na sua campanha

Foi um longo fim de semana para Jair Bolsonaro. Imerso na realidade paralela, à distância do país devastado por um vírus que já abateu mais de sete mil vidas, entreteve-se no seu jogo predileto: envolver as Forças Armadas na sua campanha para reeleição em 2022. É raro caso de governante empenhado num pandemônio político em plena pandemia.

No sábado, no Palácio da Alvorada, extravasou sua ira com a suposta conspiração para impedi-lo de governar. Citou Sergio Moro, João Doria, Congresso, STF e governadores. Lula e PT estão fora da sua agenda. Bolsonaro, agora, racha a centro direita. Briga com o governador paulista, a quem vê como adversário eleitoral.

No domingo ensolarado comandou nova manifestação, financiada por empresários amigos, em produção esmerada com faixas de apelo à “intervenção militar com Bolsonaro”. A claque, outra vez, pedia aos generais um golpe em favor do ex-capitão, afastado do Exército por indisciplina, há quase quatro décadas.

Bernardo Mello Franco - Bolsonaro conspira à luz do dia

- O Globo

Bolsonaro conspira à luz do dia. No domingo, ele usou a rampa do Planalto como palanque para o golpismo. Ontem nomeou outro delegado para controlar a PF

Jair Bolsonaro conspira à luz do dia. No domingo, o presidente usou mais um símbolo nacional como palanque para o golpismo. Na rampa do Planalto, confraternizou com extremistas que atacavam a democracia e agrediam jornalistas no exercício da profissão.

Irritado com decisões do Supremo, o capitão vociferou: “Não vamos admitir mais interferência. Deixar bem claro isso aí. Acabou a paciência”. No mesmo tom, ele prosseguiu: “Chegamos no limite, não tem mais conversa”. Só faltou mandar o cabo e o soldado cercarem o tribunal do outro lado da praça.

A ameaça do uso da força é cada vez mais explícita nas falas presidenciais. Diante de sua minoria barulhenta, Bolsonaro disse que as Forças Armadas “estão do nosso lado”. Os militares sabiam quem ele era quando embarcaram sorridentes no novo governo. Agora são arrastados para o centro de uma turbulência política prestes a virar crise institucional.

Em nota, o ministro da Defesa afirmou que as Forças “estarão sempre ao lado da lei, da ordem, da democracia e da liberdade”. O esclarecimento seria desnecessário se o país vivesse tempos normais. A tensão tende a se agravar nos próximos dias, à medida que avançam as investigações sobre o clã presidencial.

Carlos Andreazza - O Bolsa Família do Jair

- Globo

Não me surpreenderá que, tendo surgido em caráter provisório, essa ajuda torne-se permanente

Se não fosse natimorto, o liberalismo bolsonarista — este oximoro perfeito — estaria morrendo em praça pública. Natimorto porque, afora a propaganda influente, nunca foram conciliáveis o fenômeno reacionário bolsonarista, com seu ímpeto permanente para o choque, para a imprevisibilidade e, pois, para a instabilidade, e um programa de reformas liberais do Estado, como aquele vendido por Paulo Guedes, que pressupõe que o solo sobre o qual se obrará seja firme e que haja algum horizonte de constância para a empreitada.

Nada disso jamais houve — jamais haverá — sob um governo de Jair Bolsonaro, a fábrica de crises ele próprio. A usina de conflitos eleita para governar um país em depressão política profunda, onde grassa a insegurança jurídica — e onde só um gringo louco e desinformado, com muito dinheiro para queimar, investiria. Esse tipo exótico que simplesmente... inexiste. Mas que, garante-se, logo estará despejando bilhões aqui.

Houve, no entanto, quem se enganasse. (Ou se deixasse enganar.) Houve também quem enganasse.Para esses foi preciso que a peste sobre nós se abatesse; a chaga inclemente que precipita a imposição da verdade, que estabelece nova convenção social sobre o papel do Estado e que oferece a Bolsonaro, que é Dilma em matéria econômica, a chance de ser Bolsonaro antes de o imaginado — o que se livra do natimorto como se o ofertasse, tal qual vivo fosse, ao sacrifício da morte em praça pública.

Morre em praça pública o juízo daquele que, ante o baixar da praga, supôs que o presidente pudesse se aprumar para liderar algo que não a aplicação radical de seus propósitos. A pandemia é janela de oportunidades. E o homem é Brasil Grande. Ustra nos costumes; Tarcísio na economia.

Recomponho a imagem a que tenho recorrido: Bolsonaro como um girassol publicitário cujo norte se orienta pelo calor — pelo pulso — das redes. Retomo, assim, a reflexão iniciada na coluna da semana passada. Sobre o presidente estar trocando de pele, deixando pelo caminho — ainda antes da metade do mandato — a carcaça narrativa, de matriz eleitoral e existência precária, que o trouxe até aqui; o lavajatismo encarnado em Sergio Moro, por exemplo, já foi. Mais irá.

Míriam Leitão - A esperança, o poeta e o tempo

- O Globo

A música de Aldir Blanc nos lembra o que não podemos esquecer jamais, quando o país vê sombras de um tempo que ele nos ajudou a atravessar

Nossa esperança de novo se equilibra. Perdemos quem cantou para o país que dores pungentes não podem ser inutilmente. Com seu talento, Aldir Blanc fez do sofrimento de um tempo extremo músicas que nos ajudaram a seguir por um trilho estreito. É impensável tudo isso que anda acontecendo, mas a verdade é que tantos anos depois, de novo, a tarde parece cair como um viaduto. A doença que o atingiu já levou mais de sete mil brasileiros, e o Brasil dança na corda bamba. Várias cordas, todas bambas. A da luta diária pela vida, a de um país atormentado, a de velhas sombras que o próprio governante joga sobre nós.

As más intenções estão sendo ditas pelo presidente Jair Bolsonaro, por atos e palavras. Todos os dias. Ele se reuniu com os militares no domingo. Ouvi um general do alto escalão do governo, e ele me disse que existe uma “extrapolação de funções por parte do Judiciário”, e que isso vem desde 2014. Citou dois exemplos, a escolha de auxiliares e a política externa. Seriam prerrogativas do chefe do Executivo que foram invadidas. Portanto, o que senti nessa autoridade foi apoio ao presidente em dois fatos específicos: a suspensão da nomeação do diretor-geral da Polícia Federal e o problema dos diplomatas venezuelanos. Bom, uma coisa é a fricção que possa existir entre os poderes. Normal. Outra é fazer o que Bolsonaro fez.

Bolsonaro usou as Forças Armadas para ameaçar quem pensa diferente daqueles que, ao seu lado, na manifestação de domingo, pediam a volta da ditadura. O protesto contra a democracia poderia ser um evento menor, ainda que sujeito à punição legal, mas o ato se agiganta quando o presidente comparece e afirma: “As Forças Armadas estão do nosso lado.” E quem não está daquele lado deve pensar o quê?

Ricardo Noblat - Bolsonaro e seus delírios de Napoleão de hospício

Blog do Noblat | Veja

À espera que o tempo se esgote

Durou menos tempo do que uma rosa cortada a nova tentativa do presidente Jair Bolsonaro de fazer os militares cerrarem fileira em torno do seu governo. Pela segunda vez em menos de um mês, o ministro Fernando Azevedo e Silva, da Defesa, divulgou uma nota onde diz que as “Forças Armadas estarão sempre ao lado da lei, da ordem, da democracia e da liberdade”.

Sob o título “As Forças Armadas cumprem a sua missão Constitucional”, a nota acrescenta que “Marinha, Exército e Força Aérea são organismos de Estado, que consideram a independência e a harmonia entre os Poderes imprescindíveis para a governabilidade do país”. Se Bolsonaro, pois, imagina usá-las para atropelar a Constituição, vá logo tirando seu cavalinho da chuva.

O aviso vale não só para Bolsonaro e demais interessados em romper com as regras do jogo democrático. Vale também para acalmar os ânimos dos que temem, e com razão, que um presidente da República cada vez mais enfraquecido, apoiado por não mais do que um terço da população, possa em um ato de desespero atrair para seu lado antigos companheiros de farda.

A ratatuia que sai às ruas a pedir a volta da ditadura militar é uma fração da metade ou de menos da metade desse um terço. Por barulhenta e disposta à violência, dá impressão de ser maior e mais perigosa do que é. Bolsonaro a cultiva porque pensa como ela, deseja o que ela quer, e dela precisa para causar medo aos seus desafetos – que são todos os que se opõem às suas vontades.

Uma coisa são os generais de pijama, empregados ou não no governo, adeptos dos jogos de cartas, de damas e de dominó e que apoiam a pretensão de Bolsonaro de aplicar um golpe de Estado. Bolsonaro é um Napoleão que foi tirado do hospício com o propósito de varrer a esquerda do poder, e varreu. Antes de retornar à sua insignificância, ainda dará trabalho. Fazer o quê?

Aturá-lo até onde for possível. Ou abreviar seu mandato por meio de um processo de impeachment. É o que prevê a Constituição. Mas, enquanto isso, limites lhe estão sendo impostos. Ontem, ele sentiu-se obrigado a telefonar para o comandante do Exército para negar a veracidade de notícias que deram conta do seu desejo em substitui-lo. Por conveniente, a mentira de Bolsonaro foi aceita.

Luiz Carlos Azedo - Emergência e fricção

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“Bolsonaro agrega à epidemia de coronavírus um ambiente político de conflitos desnecessários e estresse institucional, com crises criadas dentro do governo”

Nunca vivemos, desde a gripe espanhola de 1918, uma emergência sanitária como a que o mundo atravessa. O problema do novo coronavírus é que ainda há mais dúvidas do que certezas em relação à doença, exceto que se propaga muito rapidamente, é letal para um contingente significativo de suas vítimas e não se tem previsão de quando e se teremos uma vacina que o previna, nem um remédio realmente eficaz para combatê-lo. O que tem sido mais eficiente no combate à epidemia é o distanciamento social e um sistema público de saúde robusto, para tratar os casos graves e salvar vidas.

Ninguém estava preparado para enfrentar o coronavírus, essa é a verdade. Mas talvez nenhum outro governante no mundo tenha revelado tanto despreparo para lidar com a situaçao como o presidente Jair Bolsonaro. Até hoje, não se deu conta de que a volta à normalidade é impossível enquanto o vírus estiver se propagando numa velocidade maior do que a capacidade de atender as pessoas que necessitam de assistência médica, pois isso significa pôr em colapso o sistema de saúde e, consequentemente, toda a economia.

Ranier Bragon – O sonho da quartelada

- Folha de S. Paulo

Tanques não podem mais escrever a história política deste país

A paciência de Jair Bolsonaro acabou, ele está em seu limite, tem ao seu lado as Forças Armadas e fará cumprir, a qualquer preço, a sua interpretação da Constituição.

As palavras proferidas na mais recente algazarra golpista, no domingo (3), têm como objetivo intimidar não só Alexandre de Moraes, que dificultou sua intenção de interferir em investigações da PF, mas qualquer ministro do STF que possa lhe causar embaraços. Como Celso de Mello, que comanda a apuração das acusações do ex-ministro Sergio Moro.

Como suporte às bravatas, o presidente ameaça mover o sonho de toda uma vida de delinquência sem punição: uma quartelada a seu favor.

A ameaça de ruptura institucional foi coroada no domingo pela violência de covardes que se escoram na proteção dos bandos para atacar alvos pelas costas. Os presidentes do próprio Supremo, Dias Toffoli, e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), acoelharam-se, mudos.

Hélio Schwartsman - Centrão é virtuoso e Moro é petista

- Folha de S. Paulo

O centrão, vale lembrar, é sinônimo da "velha política"

Eu tento ser uma pessoa boa, mas nem sempre consigo. Confesso que experimento um certo prazer —uma "Schadenfreude", diriam os sempre precisos alemães— ao ver bolsonaristas contorcendo seus neurônios para processar a nova aliança do mito com o centrão ou ao se verem obrigados a reclassificar o ex-herói Sergio Moro como um traidor.

O centrão, vale lembrar, é sinônimo da "velha política", que Bolsonaro jurou que não teria vez em sua administração. Circula na internet um vídeo impagável em que o general Heleno, o fiador verde-oliva do governo, arrisca acordes em que sugere que todos os parlamentares do centrão são ladrões. Agora, Bolsonaro ameaça demitir os ministros que resistirem em ceder cargos para esses políticos.

Já Moro, que até alguns dias atrás emprestava à administração sua imagem de campeão da luta contra a corrupção, deixou o governo acusando Bolsonaro de crimes graves. É Moro que mudou ou Bolsonaro que mentiu?

Joel Pinheiro da Fonseca* - Amadorismo político não é virtude

- Folha de S. Paulo

Demos um voto de confiança à antipolítica, agora colhemos os frutos

Macron, Boris Johnson, Conte: líderes de diferentes colorações ideológicas, todos viram sua popularidade subir na pandemia. Nenhum deles foi particularmente genial: apenas compareceram à chamada da responsabilidade, o que naturalmente fez com que a população se unisse ao redor de seu chamado ao esforço coletivo pelo bem comum.

Jair Bolsonaro fugiu. Não só não foi capaz de implementar nenhuma resposta sua à epidemia como ainda escarneceu de quem tomava esse papel.

Numa franca admissão da própria inutilidade, quando informado que passáramos de 5.000 mortos, respondeu apenas: "E daí? Lamento, quer que eu faça o quê?".

Ele realmente acredita em fazer "isolamento vertical" e aplicar hidroxicloroquina universalmente? Tinha a faca e o queijo na mão para brigar por essas soluções, mas preferiu se ausentar e reclamar. Para completar, criou novas crises por conta própria, como a que culminou na saída de Sergio Moro.

Isso não é problema de ser esquerda ou direita: é de falta de capacidade política. Embora tenha longa carreira, Bolsonaro sempre foi um político inábil e inexpressivo, característica que carrega na Presidência.

Isso o torna um líder fraco, incapaz de criar consensos e capitanear o barco.

Em cima desse vazio, novas lideranças crescem e batem cabeça com ele. Para cada fracasso ou pedra no caminho, há um culpado: o Congresso, o STF, a imprensa, o ministro traidor, as pessoas que torceram contra. Uma hora as desculpas não enganam mais.

FHC teme ‘paredão’ e alerta para risco de autoritarismo

Ex-presidente diz que Forças Armadas não estão preparando um golpe, mas podem ser levadas a preparar

Por Cristiane Agostine e Ana Conceição – Valor Econômico


SÃO PAULO - O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse ter a sensação de que o Brasil enfrente em breve cenário “muito desagradável” e o risco de um projeto autoritário. A um mês e meio de completar 89 anos, ele teme enfrentar um novo “paredão”, referência à ditadura militar, que governou o país de 1964 a 1985, e criticou o presidente Jair Bolsonaro por não ter projeto de governo, mas, “ímpeto” para o autoritarismo.

Ao debater o cenário político, social e econômico com o sociólogo e professor emérito da USP José de Souza Martins, em “live” promovida ontem pelo Valor, FHC disse que falta comando no paí. Para ele, as Forças Armadas não estão preparando um golpe. “[Mas] podem ser levadas a [isso].”

O ex-presidente disse que a democracia brasileira vive uma crise e demonstrou receio em relação ao que pode acontecer nos próximos meses. “Tenho a sensação de que podem me ocorrer coisas desagradáveis. Coisas muito desagradáveis vão começar. No ano que vem faço 90 anos. É muita idade. A esta altura, ter que encontrar um paredão outra vez... É duro”, disse FHC. “A verdade é que vai ser difícil.”

Ao falar sobre os riscos de o país enfrentar uma nova ruptura institucional, o ex-presidente ponderou que o contexto político atual é diferente do vivido pelo país em 1964, quando houve o golpe militar, mas disse que é preciso cuidado.

“Em 1964, quando houve ruptura, havia um projeto que foi desenvolvido aos poucos contra a desordem simbolizada pelo pobre do Jango [João Goulart], e havia uma realidade. Havia Cuba, URSS etc. Hoje não há propriamente um projeto de autoritarismo. Ele pode acontecer. É pior, talvez, porque não tem projeto. Mas pode acontecer”, disse FHC. “Há o impulso, o ímpeto de pessoas, inclusive do presidente. É grave.”

Maria Cristina Fernandes - Reação bolsonarista é de quem está acuado

- Valor Econômico

O presidente segue a rota traçada no início da pandemia de provocar o cerco institucional para tentar angariar apoio militar

O presidente Jair Bolsonaro segue a rota traçada no início da pandemia de provocar o cerco institucional para tentar angariar apoio junto às Forças Armadas. Com o Congresso recuado, valeu-se do protagonismo do Supremo Tribunal Federal na contestação a atos do Executivo para buscar uma saída que margeie a Constituição. Segue sem sucesso.

A nota do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, segmenta o posicionamento das Forças Armadas para cada uma das peças em jogo. Ao abrir pela importância da independência e da harmonia entre os Poderes para a governabilidade, o ministro coloca em foco o desagrado provocado entre militares pela suspensão da expulsão de diplomatas venezuelanos por liminar do ministro Luís Roberto Barroso, do STF.

Não que concordem com a decisão do chanceler Ernesto Araújo, mas os militares consideram Venezuela um tema sensível para a defesa nacional e sobre o qual o Supremo teria se excedido com sua ingerência. O vice-presidente Hamilton Mourão verbalizou ontem esse desagrado. O Exército acompanha com preocupação o conflito com o país vizinho. O regime de Nicolás Maduro abateu, no domingo, um barco, supostamente vindo da Colômbia, e matou oito integrantes de sua tripulação.

Eliane Cantanhêde - Crise sobre crise

- O Estado de S.Paulo

A covid-19 avança, mas o tipo de crise de que Bolsonaro gosta é outro. Melhor não alimentá-lo

O objetivo não era esse, mas o ministro do Supremo Alexandre de Moraes pode ter salvo, ou ao menos aliviado, o presidente Jair Bolsonaro no processo em que é acusado pelo ex-ministro Sérgio Moro de investir contra a autonomia da Polícia Federal para obter informações sigilosas e interferir em processos autorizados pelo próprio Supremo.

Até onde se sabe, Moro acusa o presidente de “intenções”. Se o ministro Moraes não tivesse impedido a posse do delegado Alexandre Ramagem na direção-geral da PF, estariam criadas as circunstâncias para que essas “intenções” se transformassem em atos – ou não. Sem Ramagem e com o delegado Rolando Alexandre de Souza na PF, os cuidados serão naturalmente redobrados para não jogar álcool na fogueira.

Logo, Alexandre de Moraes pode ter obtido o efeito inverso ao pretendido, dando uma mão para Bolsonaro e evitando que ele saísse do mundo da vontade para o da execução, caso Ramagem já chegasse reunindo investigações sobre este ou aquele amigo, este ou aquele inimigo do presidente e enviando diretamente para o Planalto. A subjetividade teria adquirido materialidade.
Por ora, é a palavra de Moro contra a de Bolsonaro. Os generais Braga Netto, Luiz Eduardo Ramos e Augusto Heleno, apontados pelo ex-colega como testemunhas, não podem nem mentir para a Justiça nem incriminar o chefe. Basta confirmar que Bolsonaro exigia, sim, trocar o diretor da PF e ameaçava, sim, demitir o ministro da Justiça. E daí? É atribuição do presidente nomear e demitir o outro.

Paulo Hartung* - Na travessia da pandemia, o presente e o futuro

- O Estado de S.Paulo

É impositivo reformar o Estado, em todos os níveis, tornando-o contemporâneo

Nesta dura travessia, para além da angústia das incertezas e do sofrimento dilacerante das perdas, há que exercitar a altivez do espírito e a grandeza da razão. Isso porque, se não há – e não há – sentido algum intrínseco a esta tragédia, que produzamos um sentido a partir do seu enfrentamento. Só esse duro desafio nos tornará aptos a concluir essa caminhada em pé, e não de joelhos, capacitados para a reconstrução e também para a prevenção de situações como a que nos abate.

Esse é um caminho possível, porque toda crise tem três forças: aprendizados, oportunidades e finitude. Além disso, as mais bem-sucedidas travessias de tempos trágicos, ou seja, as que implicaram menos perdas e possibilitaram uma reabilitação mais rápida e com uma sociedade mais preparada, tiveram o dom de dar prioridade às demandas do momento e ao olhar no pós-crise – mais que o olhar, o agir em prol do futuro.

Nesse sentido, sempre no espectro dos valores democrático-republicanos e humanísticos, o atual enfrentamento consolida certezas como a prioridade absoluta de salvar vidas, cuidar dos vulneráveis, preservar empregos, empresas e atividades econômicas. Há também a consciência de que devemos ter humildade diante deste obscuro mal, investindo nas melhores ferramentas da ciência e nas virtudes da prudência, da generosidade e da justiça.

No campo dos aprendizados e das oportunidades que a crise enseja, há pontos importantes. A pandemia escancarou a infâmia da desigualdade social no Brasil. Num país que ainda debate sobre a necessidade ou não de quarentena, há mais de 30 milhões de irmãos nossos sem acesso regular a água tratada. Não se trata de discutir distanciamento social, mas de não ter água dentro de casa para lavar as mãos. Mais: 100 milhões não estão conectados aos sistemas de coleta e de tratamento de esgoto. Assim, além do aspecto humanitário e sanitário, os investimentos em saneamento são uma oportunidade, seja para gerar ocupação e renda, seja para enfrentar um dos maiores desafios de nossa secular desigualdade socioeconômica.

A superação dessa desigualdade tem no investimento em educação básica o seu mais potente recurso. Uma educação qualificada promove a autonomia cidadã, é agente de prosperidade compartilhada. E nem é preciso reinventar a roda. Há experiências bem-sucedidas, como as de Ceará, Pernambuco e Espírito Santo, entre outras, assim como há exemplares movimentos da sociedade, como o Todos Pela Educação e os Institutos Unibanco, Ayrton Senna, Natura, ICE e Sonho Grande.

Pedro Fernando Nery* - New Deal verde

- O Estado de S.Paulo

Ao seguir outros países, Brasil poderia superar a imagem de pária na questão ambiental

Se o polêmico plano de obras do atual governo foi chamado de Plano Marshall, fora do Brasil a referência tem sido outra, o New Deal. Dos Estados Unidos à União Europeia, continua se falando no New Deal Verde. Referência ao investimento maciço do governo americano depois da Grande Depressão de 1929, o verde do novo New Deal revela os ambiciosos objetivos de descarbonização da sociedade. A nova geração de programas de infraestrutura é voltada para enfrentar a mudança climática.

Popularizado ao longo de 2019 pela deputada Alexandria Ocasio-Cortez, o plano já foi incorporado pela candidatura de Joe Biden – o opositor democrata contra Trump nas eleições de novembro. Biden chegou a sugerir que já neste ano o Congresso aprovasse o programa, em uma nova rodada de estímulos fiscais contra a crise do coronavírus. Seu plano é gastar quase US$ 2 trilhões em uma década em investimentos.

Na União Europeia, o plano, anunciado em dezembro e mantido após a pandemia, compartilha do objetivo de Biden de zerar as emissões líquidas de carbono até 2050. Sem o “New” da versão americana, o Deal Verde (Pacto Ecológico na tradução oficial) foi introduzido pela Comissão Europeia como “uma nova estratégia de crescimento”.

Andrea Jubé - O recalcitrante

- Valor Econômico

“Falta quem lidere a moderação”, diz general sobre crise

A crise política insuflada pelo próprio presidente da República cresce no mesmo ritmo e proporção que a acentuada curva em ascensão da pandemia da covid-19 no Brasil. Na contramão, a inflexão para baixo verificada nos últimos dias foi a da popularidade presidencial.

Segundo a pesquisa XP/Ipespe divulgada ontem, a aprovação de Bolsonaro caiu quatro pontos percentuais em uma semana (até 30/4), desde o pedido de demissão do ex-ministro Sergio Moro. No mesmo período, o número de casos confirmados e óbitos provocados pelo coronavírus dobrou. Eram 3.704 vítimas fatais em 24 de abril; ontem esse número subiu para 7.288.

É um círculo vicioso e infeccioso: os minicomícios dominicais que atentam contra a democracia (e agora contra a liberdade de imprensa) elevam a temperatura política e violam a quarentena; essa violação gera aglomerações, que podem levar ao aumento dos casos de covid-19; o incremento dos casos obriga governadores a prolongarem a quarentena, o que mantém o comércio fechado, acirra a crise econômica e a política e estimula os minicomícios com o presidente; esses minicomícios violam a quarentena e causam aglomerações, que aumentam os casos da doença.

No domingo, a reedição dos atos antidemocráticos com a participação do presidente Jair Bolsonaro, apenas 15 dias depois do evento cobrando intervenção militar, voltou a gerar desconforto e contrariedade entre políticos e militares. Em paralelo, contudo, prevalecia um sentimento de resignação: no curto prazo, a saída institucional é conviver com a ousadia e recalcitrância presidencial.

O presidente já foi aconselhado a não estimular nem participar desses atos, mas faz ouvidos moucos. “Não adianta, Bolsonaro não vai mudar”, sentenciou à coluna um cacique político com trânsito nos três Poderes. “É o que temos para o jantar”, completou, num esgar. Esta liderança diz que será preciso “administrar” os atos do presidente, e no caso de eventuais arroubos autoritários, acionar os freios e contrapesos institucionais.

Luiz Gonzaga Belluzzo* - Emissão monetária, dívida e crise

- Valor Econômico

Se a derrocada seguir incontida, até mesmo o fluxo de renda dos pensadores inflacionistas vai cessar

Em um Boletim de 2014, “Money Creation in the Modern Economy”, o Banco da Inglaterra ensina que nos sistemas monetários contemporâneos, o dinheiro é administrado em primeira instância pelos bancos. Essas instituições têm o poder de avaliar o crédito de cada um dos centros privados de produção e de geração de renda e, com base nisso, emitir obrigações contra si próprios, ou seja, depósitos à vista, o meio de pagamento dominante. A criação monetária depende da avaliação dos bancos a respeito do risco de cada aposta privada.

O dinheiro ingressa na circulação com a benção do Estado, o cobrador de impostos, e a unção das relações de propriedade, isto é, decorre das relações estabelecidas entre credores e devedores, mediante a cobrança de uma taxa de juros. No circuito da renda monetária, os gastos privados e públicos precedem a coleta de impostos. As razões são óbvias. Não há como recolher impostos, se a renda não circula.

O banco credor empresta exercendo a função de agente privado do valor universal. O devedor exercita seus anseios de enriquecimento como proprietário privado, usufruindo a potência do valor universal. O dinheiro é riqueza potencial, promessa de enriquecimento, mas também algoz do fracasso. Se o devedor não servir a dívida, o banco, agente privado do valor universal, deve expropriar o inadimplente. A política monetária do Estado é incumbida, em cada momento do ciclo de crédito, de estabelecer as condições que devem regrar e disciplinar as expectativas de credores e devedores. Faz isso mediante a taxa de juros que remunera as reservas bancárias.

No livro “First Responders”, organizado por Ben Bernanke, Henry Paulson e Timothy Geithner, assessores do Federal Reserve e do Tesouro registram as características dos mercados contemporâneos: “O sistema financeiro mudou de forma fundamental nas décadas que antecederam à crise de 2008: mais crédito e precificação de risco foram intermediados nos mercados financeiros, sob os auspícios de instituições não bancárias. Muitas dessas instituições dependem de financiamento de curto prazo nos mercados monetários atacadistas, em vez de depósitos à vista garantidos e estáveis; assim, são mais vulneráveis a uma queda na confiança dos investidores, o que pode levar à queima de ativos e ao contágio do mercado”.

Dina Lida Kinoshita* - Lições históricas que a esquerda dogmática insiste em ignorar

Nos últimos 30 anos a politização e partidarização nas universidades brasileiras chegou a um extremo, sobretudo na área de ciências humanas. Com raras exceções, a posição do militante sobrepujou os fatos históricos e sociológicos que presumidamente os cientistas sociais deveriam conhecer.

Durante a curta campanha eleitoral recém encerrada escutei, na lógica maniqueísta e hegemônica que “os candidatos Geraldo Alckmin e Jair Bolsonaro representam a mesma coisa”.

Imediatamente me veio à lembrança a eleição alemã de 1932. No VI Congresso da Internacional Comunista (IC) realizado em 1928, alegando uma suposta Terceira Onda Revolucionária, foi aprovada a política de “classe contra classe” e, nesta lógica, os social democratas alemães foram tachados de social fascistas. Como resultado desta política Hitler assumiu o poder pela via democrática, não revogou a Constituição de Weimar, transformando a Alemanha, por meio de decretos, na ditadura mais hedionda que o mundo conheceu.

Após esse episódio, no VII Congresso da IC realizado em julho de 1935, foi aprovada a proposta de Dimitrov da construção das “Frentes Populares” para barrar o nazi-fascismo. No ano seguinte foram eleitos governos desse tipo na França e na Espanha. A monarquia espanhola foi derrubada e o governo republicano propôs reformas modestas já realizadas nos países europeus mais avançados ao longo do século XIX. Monarquistas, a Igreja Católica e conservadores em geral, indignados, deram ensejo a parte do exército liderada por Francisco Franco, a dar um golpe. Os golpistas utilizaram uma estratégia que isolou a República e teve início uma guerra fratricida selvagem com quase três anos de duração. Enquanto socialistas e comunistas entendiam que era preciso defender a República, anarquistas e trotskistas pensavam que havia chegado o tempo de uma revolução profunda. 

A divisão entre essas forças foi uma das causas da derrota republicana. Essa guerra civil se internacionalizou; a Alemanha nazista e a Itália fascista apoiaram os golpístas, a URSS enviou assessores militares e armamentos e mobilizou as Brigadas Internacionais através da IC. Grã Bretanha e França optaram pela “não intervenção”. Esta guerra foi um prelúdio da II Guerra Mundial onde se testaram vários armamentos e, pela primeira vez, populações civis foram deliberadamente atingidas. Esse episódio foi magnificamente retratado por Pablo Picasso, no quadro Guernica. Depois de tudo isso os espanhóis sofreram quase 40 anos de uma ditadura feroz.

Ruy Castro*- Aldir Blanc fez versos que poderiam estar em qualquer livro de poesia

- Folha de S. Paulo

Conheça composições do artista doce e recluso que morreu por coronavírus nesta segunda

Em março de 2010, Aldir Blanc desceu de um táxi na porta do teatro João Caetano, na praça Tiradentes. Venceu a multidão no foyer sem dar tempo a que o reconhecessem, subiu as escadas até o balcão e se escondeu numa poltrona atrás de uma pilastra. Era a primeira vez que escapava de casa em muito tempo.

E só fez isto porque se tratava da estreia de um musical, “Era no Tempo do Rei”, cujo score continha 19 canções feitas especialmente para a peça –música de Carlos Lyra e letras dele, Blanc, tão ricas e sofisticadas que a plateia, ainda desabituada a musicais com material inédito, não captou nem metade da beleza. Ao fim do espetáculo, Blanc não subiu ao palco com os autores para os aplausos. Já tinha se mandado sem ninguém perceber, de volta a seu apartamento, na rua Garibaldi.

Morto nesta segunda-feira (4), ele morava –ou se escondia– num dos pontos mais charmosos da zona norte do Rio de Janeiro, na confluência entre a Muda da Tijuca e Vila Isabel, ao lado do Bar da Dona Maria, que ajudara a tornar famoso, e de uma feira livre semanal, ambos com rodas de samba criadas por ele no tempo em que ainda exercia fisicamente a boemia. E nem assim saía de casa e atravessava a rua. Mas, à noite, os boêmios podiam ver a sua silhueta na janela e sabiam que Blanc estava velando por eles.

Era recluso, mas não antissocial nem rabugento. Ao contrário, ninguém mais doce ao telefone ou ao email, seus meios de comunicação com o mundo –dos zaps, de que nem chegava perto, cuidava Mari, sua mulher.

Aldir Blanc cantou a aldeia e, por isso, falou do mundo

Compositor é um poeta da Brasilidade, que vem a ser um canto desesperado de amor e liberdade

Luiz Antonio Simas | O Globo

Aldir Blanc é um poeta da Brasilidade, palavra com que defino uma comunidade de sentidos, afetos, sonoridades, rasuras, contradições, naufrágios, ilhas fugidias, identidades inviáveis, subversões cotidianas, voo de arara e picada de maribondo, saravá e samba. Coisas que o Brasil oficial, o estado brasileiro delimitado em marcos territoriais, odeia. O Brasil é, vez por outra, como nos nossos dias, um empreendimento de ódio; a Brasilidade é um canto desesperado de amor e liberdade.

Letrista excepcional, daqueles raros capazes de letrar nota por nota de uma melodia, fugindo das soluções fáceis brincando com as palavras na beira de um precipício, Aldir fez o mergulho mais profundo que um poeta da canção brasileira ousou. Foi capaz de descrever nossas vertigens a partir do cume das montanhas e do rasteiro das sarjetas; navegou oceanos com os corsários, cruzou a Baía da Guanabara na embarcação do Almirante Negro, cantou os mistérios do tempo entre a condenação da eternidade e o amor pelo residual. Conquistou a fama do Olimpo da música almejando o anonimato nos botequins mais vagabundos.

Aldir celebrou a vida porque sempre olhou a cara da morte. Cria das encruzilhadas em que a Vila Isabel, o Estácio, a Muda, o velho Maracanã e o Salgueiro se abraçam, consagrou-se como o cronista da Zona Norte carioca. Cantou a aldeia e, apenas por cantar a aldeia, falou o tempo todo do mundo. As letras de Blanc, mesmo quando falam dos bêbados do subúrbio carioca, são capazes de sondar com a profundidade dos escafandristas as obsessões de um esquimó.

Irmão siamês de João Bosco, parceiro dos abismos delirantes da música de Guinga, um Pelé para o Coutinho Moacyr Luz, furioso como os cavalos de Ogum, caudaloso como as hemoptises de um Canal do Mangue virado em assentamento de Oxumarê, o vascaíno Aldir permanecerá. Ao lado dele, como totens, encantados, orixás, Villa-Lobos, Pixinguinha, Tom Jobim, Aracy de Almeida, Noel Rosa, Luiz Gonzaga, Elizeth, Clara, Capiba, Ary e tantos gigantes da nossa cultura.

A Brasilidade está na arte de viver na síncope, no drible, na dobra do tambor, na oração dos romeiros, na dança de Oxalufan, nas serestas suburbanas, nos namoros em Paquetá, na suavidade dos sons bonitos, no esporro dos tambores das matas e cidades, no grito de gol e na imponência calada das imensas gameleiras, nas salas de aula, recreios, terreiros, lupanares, valas, sarjetas e jardins. E está em cada verso de Aldir Blanc.

O Brasil tem verdadeiro horror da Brasilidade, essa bruma incerta que une os marujos da nau sem rumo, a filha dos lanhados, ferrados, exterminados, encantados, contra o vento, contra o rei, contra a lei, contra o altíssimo, contra a foice, o facão, o canhão e o arado. Aldir Blanc carregou a Brasilidade no colo, deu nela petelecos e fez cafunés em seus caracóis. Que a Brasilidade possa agora embalar Aldir em sua longa jornada pelo tempo, aquela reservada aos que hoje, como ele, viraram memória e incêndio na solidão de cada um de nós.

Poesia | Carlos Drummond de Andrade - Sentimento do mundo

Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.
Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.
Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais noite que a noite.