domingo, 17 de maio de 2020

Luiz Sérgio Henriques* - Os heróis da retirada

- O Estado de S.Paulo

Precisamos deles para traçar uma linha nítida diante dos que semeiam caos e tempestade

Um dos muitos encantos de ler Javier Cercas, o autor de Soldados de Salamina e de Anatomia de um Instante, reside na sua consciente mistura de ficção e História, imaginação e política, alimentando-se mutuamente e dando-nos, como compensação, a certeza de que o mundo não é um conjunto de fatos de fácil catalogação. A matéria de Cercas é a Espanha, amada e amarga, como a definiu certa vez o marxista italiano Pietro Ingrao, com sua história atribulada, repleta de violência, golpes e revoluções, e sua democracia tantas vezes interrompida, o que certamente a traz para bem perto de nós.

A ferocidade da guerra civil de 1936, contudo, não tem paralelo possível na nossa própria vida política. Aqui, o putsch de 1935 foi episódio cruento, doloroso, mas circunscrito, sem a fúria das paixões desatadas em torno da República espanhola, verdadeiro ensaio geral para o grande conflito que viria a seguir. E a Espanha, mergulhada na longa noite do franquismo, só em meados dos anos 1970, ainda antes de nós, é que se libertaria do regime do garrote vil e restabeleceria a liberdade perdida no fim dos anos 1930, quando o nazismo e o fascismo pareciam vitoriosos, impondo-se mediante a violência e o irracionalismo tornado ideologia de massas.

O instante cuja anatomia Cercas empreende tem um simbolismo a toda prova. Como em toda jovem democracia, o golpe costuma estar à espreita. No início da década de 1980, chefes militares essencialmente franquistas, não convertidos à ideia fundamental da obediência ao poder civil, encontravam terreno fértil para maquinações. O terrorismo ameaçava a integridade nacional. O princípio da tutela militar sobre as instituições voltava a se insinuar, ameaçando fazer a Espanha retroceder muitas casas no tabuleiro das democracias modernas.

Celso Lafer* - Política externa bolsonarista

- O Estado de S.Paulo

Ações da diplomacia de confronto são desvio incompatível com os ditames constitucionais

Em nosso país a competência constitucional para a condução da política externa é da alçada do presidente da República. Na experiência histórica do Brasil a prática confirma esse tradicional preceito constitucional.

Foi pela ação, e por vezes também pela omissão, que em nosso país os presidentes exerceram a função de conduzir a política externa, definindo, à luz do cenário internacional, os caminhos da inserção do Brasil no mundo e no nosso contexto regional. Nessa condução seguiram a estratégia e o temperamento de sua personalidade.

O mesmo se pode dizer da política externa do governo Bolsonaro, que se amolda à estratégia do temperamento do presidente e do seu modo de ser e de atuar, que foi desde sempre o do confronto.

O confronto marcou a sua curta vida de militar da ativa. E caracterizou, com pouca ressonância, a sua longa carreira parlamentar. A lógica do confronto foi também a marca identificadora de sua campanha presidencial de 2018.

Na sequência, vem governando pelo ímpeto do confronto, nutrido por sua vocação para a “ascensão aos extremos”, destituída, porém, da sobriedade recomendada por Clausewitz nessa matéria.

São incontáveis os eventos da manifesta inconformidade do seu temperamento com tudo o que na vida democrática legitimamente cerceia o poder monocrático da sua caneta de chefe de Estado.

O presidente alimenta cotidianamente a sua lógica de confronto pelo intenso uso das redes sociais, abastecidas pelo “gabinete do ódio”. O ódio é um sentimento que, como esclarece Ortega nas Meditações do Quixote, desliga e isola, fabricando a falta de conexão com o pluralismo da realidade nacional e internacional. O ódio veiculado pelo amplo uso das redes sociais instrumentaliza suas mensagens pelas fake news das falsificações mentirosas.

Merval Pereira - Novilingua bolsonarista

- O Globo

À medida que a crise avança, conceitos democráticos vão sendo deformados, e palavras, distorcidas pelo governo federal, como na novilíngua de ‘1984’, obra de George Orwell

À medida que a crise avança, vamos assistindo à involução dos hábitos e costumes republicanos, tendo o presidente Jair Bolsonaro como protagonista e ministros como coadjuvantes de uma tragédia, onde os conceitos democráticos vão sendo deformados e palavras distorcidas, a exemplo da “novilingua” criada pelo escritor inglês George Orwell na novela 1984, na qual o autoritarismo muda o sentido das palavras para melhor acomoda-las a seus interesses.

Nesse mundo distópico, o ministério da Verdade cuidava de criar a realidade, controlar a verdade oficial. Palavras ganham sentido inverso do original, ou simplesmente desaparecem por desnecessidade, como “liberdade”. Um lema resume o sentido da “novilingua” orwelliana: “Guerra é paz, escravidão é liberdade, ignorância é força”. Hoje, no Brasil, quando Bolsonaro está muito irritado com sua segurança pessoal, ele promove o chefe do setor.

Orwell escreveu 1984 pensando nos regimes comunistas, mas o autoritarismo de direita tem os mesmos vícios de distorcer os fatos a seu favor. A mais recente demonstração de como é possível torcer o sentido das palavras para tentar mudar a realidade é a declaração do presidente Jair Bolsonaro de que nunca proferiu o nome da “Polícia Federal” na já famosa reunião ministerial em que foi acusado pelo ex-ministro Sergio Moro de tê-lo ameaçado de demissão.

Míriam Leitão - Bolsonaro entre artigos e incisos

- O Globo

O presidente infringiu artigos da Constituição Federal e da lei do impeachment. Se ele não responder por isso, a democracia se enfraquece

O presidente Jair Bolsonaro cometeu crimes de responsabilidade. Vários. Ele tem ameaçado a federação, tem infringido o direito social à saúde, ameaça o livre exercício do Poder Legislativo e do Poder Judiciário. Tanto a lei que regulamenta o afastamento do presidente, a 1079/1950, quanto a Constituição Federal estabelecem o que são os crimes de responsabilidade. Impeachment é um julgamento político, e quem estiver na presidência precisa apenas de 172 votos para barrá-lo. O inquérito na PGR investiga se ele cometeu outros crimes. Até agora os depoimentos e contradições enfraqueceram a defesa do presidente. O procurador-geral da República, Augusto Aras, pode querer muito arquivar o inquérito, mas os indícios aumentam a cada dia.

Bolsonaro pode enfrentar um processo de impeachment no Congresso, se o deputado Rodrigo Maia der início. Há elementos para embasar um pedido de interrupção de mandato por crime de responsabilidade. O Congresso pode fazer isso ou não. É processo longo e penoso. Mas se não ocorrer, a explicação não estará em falta de crime, mas sim em algum insondável motivo que pertence aos desvãos da política.

Bernardo Mello Franco - O sanatório do Dr. Jair

- O Globo

Bolsonaro afastou todos os ministros que ousaram questionar seus desmandos. Sobraram lunáticos, oportunistas e generais que toparam o papel de cúmplices

O slogan “Brasil acima de tudo” está prestes a ganhar novo significado. Desgovernado pelo bolsonarismo, o país marcha para o topo do ranking de mortes diárias pelo coronavírus. Ultrapassar os Estados Unidos virou questão de semanas, prevê o médico Drauzio Varella. “O Brasil vai ser o epicentro da epidemia mundial”, ele resumiu, em debate promovido na quinta-feira pela Oxfam.

Em tempos normais, o país já estaria condenado a uma crise humanitária. O vírus cobraria a conta histórica da desigualdade e da falta de investimentos em saúde e moradia popular. O negacionismo do capitão elevou o patamar da tragédia. Ele desprezou a ciência e torpedeou as medidas de distanciamento, necessárias para frear a contaminação.

O Brasil é o único país do mundo que descartou dois ministros da Saúde em plena pandemia. O primeiro foi chutado porque resistiu às ordens para sabotar governadores e iludir doentes com um remédio milagroso. O segundo entregou o cargo pelas mesmas razões.

Nelson Teich assumiu com a promessa de “alinhamento completo” a Bolsonaro. Precisou de 28 dias para desistir do papel de fantoche. Indicado por um empreiteiro amigo, ele se limitava a assinar papéis num ministério loteado entre militares. Em sua breve gestão, o número oficial de mortes saltou de 1.924 para 14.817.

Dorrit Harazim - E se...?

- O Globo

Caso Bolsonaro fizesse uma live defendendo o isolamento social, o índice de contaminação cairia para quanto?

‘Foi o derradeiro comando, o mais essencial”, escreveu George Orwell no clássico distópico “1984”, referindo-se à ordem da fictícia Oceania para que seus súditos rejeitassem tudo o que os olhos vissem e os ouvidos escutassem à margem da linha oficial. Donald Trump volta e meia adapta a citação quando aponta para o inimigo que adoraria domesticar: a imprensa independente. “Lembrem-se, o que vocês estão vendo e o que vocês estão lendo não é o que está acontecendo”, avisa sempre. No Brasil de Jair Bolsonaro o que se vê, ouve ou lê é bastante parecido com o que acontece intestinamente no governo manicomial eleito em 2018. Um assombro diário. E é o jornalismo arretado, investigativo, que nos permite ver e escutar. Já a tarefa de pensar fica a cargo de cada um.

Basta misturar alguns fatos da semana para constatar que eles mereceriam manter rigoroso distanciamento entre si. No Brasil que beira 15 mil mortes de Covid-19, o participante de uma reunião virtual de empresários com o chefe da nação se esqueceu de desativar a função “vídeo” e apareceu meio peladão na tela tornada pública. Debatiam-se os rumos da economia nacional. O país ultrapassa a barreira de 200 mil casos confirmados do vírus, o SUS pede socorro, erguem-se hospitais de campanha desossados e fraudados, aos moribundos resta esperar morrer fora da curva. Cinco meses após o primeiro caso da doença na China, Bolsonaro ainda se atrapalha com o uso de máscara e mistura “lockout” e “blecaute” com “lockdown” — talvez por horror ao real significado do termo. 

Elio Gaspari - Weintraub ameassa de ceguranssa nacional

- Folha de S. Paulo / O Globo

Ministro sugeriu que fossem mandados para a cadeia ministros do Supremo Tribunal Federal

Segundo o ministro Augusto Heleno, a divulgação integral da conversa de botequim ocorrida na reunião do conselho de ministros de 22 de abril pode ser um “ato impatriótico, quase um atentado à segurança nacional”. De fato, é possível que tenham sido tratados assuntos sensíveis e seria razoável mantê-los embargados, assim como foi elegante abreviar o verbo fornicante da fala do presidente. Se de fato o ministro da Educassão, Abraham Weintraub, sugeriu que fossem mandados para a cadeia ministros do Supremo Tribunal Federal, seria um ato patriótico expô-lo, para que responda pela sua proposta na forma da lei.

Pedir a volta do AI-5 e o fechamento do Supremo numa manifestação popular é uma coisa. Sugerir a prisão de ministros do Supremo numa reunião ministerial é bem outra.

Esse tipo de arbitrariedade não tem precedente. O marechal Floriano Peixoto ameaçou, mas não prendeu ministros. Nas ditaduras seguintes, o tribunal foi coagido e três ministros foram aposentados compulsoriamente, mas nenhum foi preso.

É o caso de se perguntar como é que se faz isso. Só há um caminho, o da ditadura, enunciado há dois anos por Eduardo Bolsonaro: “Para fechar o Supremo bastam um cabo e um soldado”. Junto com isso, viriam o fechamento do Congresso e a censura à imprensa. Daí à reabertura dos DOIs, seria um pequeno passo.

A divulgação do que se disse na reunião permitirá o conhecimento das exatas palavras do ministro. Sua colega Damares Alves, a quem se atribuiu a proposta de prisão de governadores e prefeitos, esclareceu que se referia aos larápios que desviavam recursos e equipamentos. Weintraub fechou-se em copas.

Ricardo Noblat - Entrevista explosiva de empresário agrava a situação dos Bolsonaro

- Blog do Noblat | Veja

Presidente cancela pronunciamento. Vice recolhe-se em quarentena

Quem deu ordem à Polícia Federal para suspender a operação que em meados de outubro de 2018, entre o primeiro e o segundo turno da eleição, tornaria público o envolvimento da dupla Flávio Bolsonaro-Fabrício Queiroz no caso da apropriação criminosa de parte dos salários pagos a funcionários da Assembleia Legislativa do Rio?

A Polícia Federal só age a mando da Justiça. É ela que autoriza suas operações a pedido do Ministério Público. Justiça e Ministério Público são informados quando a Polícia Federal, por alguma razão técnica, adia uma operação que tinha data marcada. Isso torna mais grave o que foi revelado hoje pela Folha de S. Paulo.

Suplente do senador Flávio Bolsonaro, o empresário Paulo Marinho contou à colunista Mônica Bergamo o que diz ter ouvido de Flávio em reunião na sua casa na quinta-feira dia 13 de dezembro de 2018. Foi na casa de Marinho que o então candidato a presidente Jair Bolsonaro gravou seus programas de propaganda eleitoral.

Uma semana antes do primeiro turno, o ex-coronel Miguel Braga, atual chefe de gabinete de Flávio no Senado, recebeu um telefonema de um delegado da Polícia Federal no Rio dizendo que tinha um assunto do interesse do senador eleito e que por isso queria encontrá-lo. Flávio preferiu mandar Braga ao encontro do delegado.

Braga voou para o Rio. Ali, na companhia de um advogado e de Val Meliga, pessoa da confiança de Flávio e irmã de dois milicianos, rumou para a Praça Mauá onde funciona a Superintendência da Polícia Federal. Do prédio, saiu o delegado que Flávio não diz o nome. Ainda na calçada, avisou a Braga mais ou menos assim:

Luiz Carlos Azedo - Resolvam isso aí!

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“A carreira militar é um canal de ascensão social, mas não é nem deve ser uma rampa de acesso direto ao poder político”

O aperto de mãos entre o falecido general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército, e o recém-empossado presidente José Sarney, em 1985, na transição do regime militar à democracia, simbolizou o momento em que a tutela militar sobre a nação, iniciada pouco antes da Guerra do Paraguai(1864 a 1870), ainda no Império, havia acabado. Durante mais de um século, até então, militares da ativa atuaram politicamente e se pronunciaram sobre a vida institucional do país, muitas vezes de forma truculenta e brutal. O gesto pôs um ponto final na ditadura implantada após a destituição do presidente João Goulart, em 1964.

Na madrugada de 15 de março de 1985, com a nação perplexa diante da internação de Tancredo Neves no Hospital de Base de Brasília, o então ministro do Exército, com a Constituição na mão, convencera as lideranças políticas da época de que o vice-presidente eleito, José Sarney, deveria tomar posse. Havia controvérsias, alguns achavam que Ulysses Guimarães, o líder do MDB, deveria assumir interinamente e convocar novas eleições. O então chefe da Casa Civil, ministro Leitão de Abreu, ajudou a dirimir dúvidas entre os dois principais protagonistas da democratização: Sarney queria que Ulysses assumisse. Seria o caos. Para evitar a crise, Ulysses sempre defendeu o contrário. O general comunicou a decisão da maioria: “Boa noite, presidente!”, disse-lhe ao telefone.

Nos bastidores do finado governo Figueiredo, alguns generais pretendiam aproveitar a situação para manter o regime. Além do próprio presidente da República, o ministro do Exército, Walter Pires, e o chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), Octávio Medeiros. Durante a madrugada, Pires ameaçou movimentar as tropas para manter João Batista Figueiredo, mas Leitão de Abreu disse-lhe que já não era mais ministro. Sua demissão viria publicada no Diário Oficial. Leônidas Pires Gonçalves era o novo chefe militar. Figueiredo saiu pelos fundos do Palácio do Planalto, não transmitiu o cargo. À Presidência, Sarney convocou uma Constituinte e passou o cargo ao sucessor eleito pelo voto direto, Fernando Collor de Mello, com a Constituição de 1988 em plena vigência. Presidiu o país em meio a turbulências, uma hiperinflação galopante e milhares de greves operárias e ocupações de terras, mas ajudou a construir um Estado democrático.

Janio de Freitas - Um olhar de viés para o estrago

- Folha de S. Paulo

Por que um artigo do vice e general agora, restrito a acusações genéricas?

O único setor influente na vida institucional poupado pelo vice e general Hamilton Mourão, em artigo no jornal O Estado de S. Paulo, nem precisaria dizer, mas vá lá —são os militares. Isentados de qualquer participação no "estrago institucional" que "está levando o país ao caos", são, portanto, um caso de completa perfeição.

Judiciário, Câmara e Senado e seus atuais presidentes, governadores e prefeitos, empresariado, imprensa, as áreas de governo desunidas contra o coronavírus, e até "as celebridades" arcam com as culpas.

Por que esse artigo agora, repentino, restrito a acusações genéricas, polêmicas sem entrar no debate? Com a também súbita conclusão de que "há tempo para reverter o desastre. Basta que se respeitem os limites e as responsabilidades das autoridades constituídas".

Desconheço a resposta precisa, se existe. Bolsonaro deve estar com a mesma pergunta, mas inquieto. Porque a explicação mais plausível o atinge. É a de que um esgarçamento do seu suporte militar, ainda que incipiente, induza manifestação atrativa e estimulante do vice aos camaradas, como a dizer "olha aqui, bem ao seu gosto, para a providência que reverta o nosso desgaste".

Hélio Schwartsman - Safado, ineficiente e burro

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro é responsável pela morte de muita gente

Cometo hoje um ato de nepotismo. Dedico esta coluna a um tio, Victor Nussenzweig. Victor, 91, é cientista. Deixou o Brasil nos anos 60, por causa da ditadura. Ele e a mulher, a também pesquisadora Ruth (1928-2018), radicaram-se nos EUA, onde tiveram uma linda carreira científica.

Em 1967, Ruth publicou um trabalho seminal, em que mostrou que era possível induzir em mamíferos imunidade contra o protozoário causador da malária irradiando-o com raios X. A partir daí, Ruth e Victor, cada um no comando de seu laboratório, somaram esforços para desenvolver uma vacina.

Nas décadas seguintes, conseguiram identificar a proteína do Plasmodium envolvida na resposta imune, a CSP, e produzi-la em laboratório.

Bruno Boghossian – Bolsonaro na casa dos espelhos

- Folha de S. Paulo

Presidente não quer uma equipe de auxiliares, quer uma casa dos espelhos

O país contava quase 3.000 mortes pelo novo coronavírus quando Jair Bolsonaro reuniu seus ministros no dia 22 de abril. O governo continuava sem rumo na pandemia, mas o time preferiu reproduzir teorias da conspiração, sugerir a prisão de ministros do Supremo e discutir a exploração de órgãos de inteligência para atender às vontades particulares do presidente.

O vídeo daquele encontro já virou peça do inquérito sobre a interferência escancarada do presidente na Polícia Federal, mas deve se tornar também um registro histórico da delinquência do governo na crise da saúde e em outros temas.

Bolsonaro lidera uma equipe absolutamente submissa a seus desejos pessoais, picuinhas políticas e fixações ideológicas. Mesmo diante da escalada descontrolada de mortes, os auxiliares só repetem a ladainha do presidente e alimentam as obsessões alucinadas do chefe.

O pedido de demissão de Nelson Teich é um dos produtos dessa relação. O oncologista só conseguiu o cargo porque se curvou e prometeu um “alinhamento perfeito” com Bolsonaro. Nem ele, contudo, foi capaz de respaldar cegamente o fim do isolamento e a propaganda da cloroquina, como encomendara o patrão.

Vinicius Torres Freire – Brasil, duas epidemias e um Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

Em 6 estados ocorreram 83% das mortes, mas desgoverno pode espalhar a epidemia

A epidemia do coronavírus tem diferenças continentais no Brasil. Seis estados contam 83% das mortes brasileiras: São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Pernambuco, Amazonas e Pará. Nesse país da Covid feroz, há 130 mortes para cada milhão de habitantes.

No conjunto dos outros estados, 22 mortes por milhão.

O motivo das diferenças dá o que pensar. O efeito dessa discrepância, também. Embora a ruína econômica seja disseminada, a percepção da doença pode ser diferente.

Tal disparidade pode influenciar a opinião que brasileiros de diferentes estados têm das atitudes de Jair Bolsonaro.

Em algumas pesquisas de opinião, cerca de metade dos entrevistados aprova o desgoverno federal da doença. Mais de 115 milhões de pessoas moram naquele Brasil bem menos devastado pela pandemia, em termos de mortes. No país da Covid feroz, vivem os outros 95 milhões.

A pandemia quase não existe no Centro-Oeste e no Sul, embora não seja difícil promover uma desgraça.

Mas o morticínio não é bem questão regional, noutras partes do país.

A Bahia, por exemplo, tem 19 mortes por milhão de habitantes. Pernambuco, 162 por milhão. O Ceará, 145. No Sudeste, Minas Gerais tem 7 por milhão. O Rio de Janeiro, 141 por milhão. São Paulo, 98. O estado com a maior taxa de morte é o Amazonas, com 321 por milhão.

Marcos Lisboa*- A falência do Estado

- Folha de S. Paulo

Descoordenação e oportunismo empurram o país para o desastre

O país está cansado e doído. Alguns perderam parentes em razão da pandemia. Outros têm alguém próximo contaminado pelo vírus, sendo alguns casos graves e preocupantes.

Todos sabemos de pessoas que sofrem com a falta de renda e de emprego ou que estejam assistindo à destruição do trabalho de uma vida. Está difícil manter a serenidade nestes tempos tão difíceis.

Os governos, federal e locais, tornam-se os maiores advogados involuntários em favor de uma reforma urgente do Estado brasileiro. A sua incompetência em administrar a crise não para de surpreender.

Não sabemos quais os protocolos a serem adotados. Não sabemos que conselhos seguir. A sociedade assiste atônita à ineficiência do poder público, disfuncional e oportunista.

Servidores, com salário garantido e estabilidade no emprego, pedem para não pagar suas dívidas. Esquecem-se de comentar que a crise afeta o país, mas não o seu contracheque.

Vera Magalhães - Piada no exterior

- O Estado de S.Paulo

Bolsonaro, isolamento meia boca e falta de dados tornam País pária mundial

Terceiro mundo, se for
Piada no exterior
Mas o Brasil vai ficar rico
Vamos faturar um milhão

Renato Russo escreveu os versos de Que País é Esse? em 1987. De lá para cá, voltamos a eleger presidentes, dois dos cinco eleitos sofreram impeachment, ainda integramos o que se chamava de Terceiro Mundo na época dele, e agora se diz eufemisticamente país em desenvolvimento, e vivemos a primeira pandemia de um século que o líder do Legião Urbana não chegou a conhecer ainda na condição de piada no exterior.

O desgoverno Jair Bolsonaro, como o Estado consagrou em sua capa neste sábado, nos faz enfrentar o novo coronavírus de forma destrambelhada. Irresponsabilidade, omissão, sarcasmo, falta de empatia, autoritarismo, fanatismo, desapreço pela ciência e desprezo pela vida compõem o arsenal que o presidente da República lança, como perdigotos tóxicos, sobre uma Nação estupefata todos os dias.

Jogamos fora a vantagem temporal que tínhamos em relação à Ásia, à Europa e aos Estados Unidos no enfrentamento da covid-19 descartando as experiências exitosas que essas regiões tiveram e piorando as desastradas, algo que choca a imprensa internacional, a comunidade médica e científica global e os investidores já assustados com uma recessão planetária sem precedentes. É perceptível em textos de publicações científicas internacionais, em comentários em telejornais de outros países e em análises que agências de risco ou papers acadêmicos a dificuldade até de explicar certas atitudes e declarações de Bolsonaro, dado seu descolamento de qualquer traço de realidade.

A demissão do segundo ministro da Saúde em 29 dias no pico da pandemia foi a cereja desse bolo de vergonha mundial que somos obrigados a passar, como se já não fossem tantos os desafios perturbadores impostos pelo desgoverno e pela pandemia em si.

Eliane Cantanhêde - Nada faz sentido

- O Estado de S.Paulo

Reunião foi do balacobaco e ministro da Saúde tem de fazer o que dr. Jair manda

Nada faz mais sentido, com as versões oscilando entre inacreditáveis e ridículas. Mas vamos ao principal: o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril confirma toda a versão do ex-ministro Sérgio Moro e deixa o presidente Jair Bolsonaro na patética situação de alegar que não falou em Polícia Federal, só em PF... Ah, bem!

O trecho divulgado pela Advocacia Geral da União, que defende Bolsonaro, deixa tudo em pratos limpos. Bolsonaro não apenas citou a PF como a citou em primeiro lugar. E todo o contexto não deixa dúvidas: “querem F.... com ele e a família”, é preciso cuidar da segurança da família e dos amigos.

O órgão responsável pela segurança pessoal da família não é a Polícia Federal (ok, a PF), é a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), vinculada ao GSI. E nem a PF nem a Abin cuidam da segurança de amigos, vamos convir. Logo, o presidente não estava falando da segurança física nem da Abin. Estava falando, sim, da PF. E os desdobramentos confirmam à sobeja.

“Vou interferir. Ponto final”, avisou o presidente. E interferiu. Onde? Na PF. Quem foi demitido foi o diretor geral da PF, delegado Maurício Valeixo, não o também delegado Alexandre Ramagem, da Abin, que chegou, inclusive, a ser nomeado para a vaga de Valeixo. O presidente promoveu quem não estava cuidando direito da segurança pessoal da família e dos amigos?! Não.

Lourival Sant'Anna - Ameaça protecionista


- O Estado de S.Paulo

Mudança na OMC é resultado do enfraquecimento da ordem comercial internacional

A renúncia do diplomata brasileiro Roberto Azevêdo ao cargo de diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC) um ano antes de encerrar seu mandato é resultado do espetacular enfraquecimento da ordem comercial internacional baseada em regras.


A OMC foi criada em 1995 sob a liderança dos Estados Unidos e da Europa. Na época, eles eram os mais competitivos do mundo e portanto os mais beneficiados por regras que impedem a imposição arbitrária de tarifas e o exercício de subsídios que solapam a concorrência.

Se americanos e europeus eram os beneficiários imediatos, no longo prazo o incentivo à concorrência abriria caminho para novos players. Afinal, o livre-comércio leva as empresas a se desdobrar para melhorar seus produtos e reduzir seus custos, sob pena de desaparecer.

Inversamente, a proteção, na forma de tarifas altas e outros benefícios, cria um ecossistema de ineficiência e acomodação. O Brasil, um dos países mais fechados do mundo, é o melhor exemplo disso. Quando viajam para países que têm acordos de livre-comércio com o restante do mundo, os brasileiros compram tudo o que podem.

José Roberto Mendonça de Barros* - O Brasil não será o mesmo depois da pandemia

- O Estado de S. Paulo

O acordo com o “Centrão” garante que o projeto liberal de Guedes naufragou de vez

O coronavírus é o maior choque das últimas décadas. Espalhou-se rapidamente pelo mundo e é bastante letal. Como ainda não temos remédios definitivos ou vacina, a única recomendação da ciência é reduzir a circulação das pessoas por meio de uma quarentena, com diferentes graus de intensidade.

Esse recolhimento produz uma parada súbita na atividade econômica, uma vez que muitas empresas fecham e as pessoas ficam, em sua maior parte, nas suas casas. Essa situação resulta, muito rapidamente, em uma forte recessão na economia.

Como já vimos no caso de vários países, após três ou quatro meses o surto inicial do vírus começa a se reduzir e, cautelosamente, as regras de confinamento começam a ser abrandadas.

Neste momento, descobre-se que ficar fechado em casa por um longo período é uma experiência única, que será marcante na vida de todos. Ninguém será o mesmo quando tudo isso acabar. Vejo alterações em pelo menos três dimensões: enquanto cidadãos, trabalhadores e consumidores.

As pessoas, provavelmente, estarão mais próximas de uma vida mais simples e mais natural, que vai afetar, inclusive, o seu estilo de vida e o tipo de alimentos desejados, mais naturais, menos industrializados, orgânicos.

O que a mídia pensa - Editoriais

• Vada a bordo! – Editorial | O Estado de S. Paulo

Naquilo que já podemos chamar de “doutrina Bolsonaro”, o presidente da República não é responsável por nada

Naquilo que já podemos chamar de “doutrina Bolsonaro”, o presidente da República não é responsável por nada.

O Brasil passou dos 14 mil mortos pela pandemia de covid-19, mas o presidente Jair Bolsonaro considera que não tem nada a ver com isso. Sempre que questionado, transfere a responsabilidade para os governadores e prefeitos. “Não sou coveiro”, chegou a dizer. “Não adianta a imprensa querer colocar na minha conta essas questões que não cabem a mim”, afirmou, como se presidisse outro país. E, quando o número de mortos no Brasil superou os da China, arrematou: “E daí, quer que eu faça o quê?”.

O Brasil já atravessa uma crise econômica sem precedentes, em que grande parte dos trabalhadores do setor privado sofreu redução salarial e milhões simplesmente perderam ou perderão seus empregos, mas o presidente parece muito mais interessado em seus projetos para aliviar os pontos na carteira de motoristas imprudentes, para favorecer a compra de armamentos pela população e para acabar com a “ideologia de gênero” nas escolas.

Poesia | Fernando Pessoa - A criança que pensa em fadas

A criança que pensa em fadas e acredita nas fadas
Age como um deus doente, mas como um deus.
Porque embora afirme que existe o que não existe
Sabe como é que as cousas existem, que é existindo,
Sabe que existir existe e não se explica,
Sabe que não há razão nenhuma para nada existir,
Sabe que ser é estar em algum ponto
Só não sabe que o pensamento não é um ponto qualquer.