quinta-feira, 21 de maio de 2020

Míriam Leitão - A dor coletiva e o desamparo

- O Globo

Visitar os que sofrem em uma tragédia não é um ato simbólico, é parte de bem governar. Bolsonaro negou ao país esse gesto

Um chefe de Estado demonstra sentimento quando o seu povo sofre, vai aos locais onde a tragédia acontece, conversa com atingidos e os conforta. Um governante mantém uma atitude de seriedade quando o país é alvejado por alguma catástrofe. Tem palavras de encorajamento para os que estão na frente da batalha socorrendo os enfermos. O que parece ser apenas protocolo faz parte do conjunto de obrigações da pessoa pública. Isso não resolve o problema, mas impacta muito mais do que se imagina a tomada de decisões. Só tem chance de acertar o líder que entende a dimensão da dor coletiva.

A comunicação de quem governa não pode ser tocada por um miliciano digital. Tem que ter sobriedade e propósito. Não pode ser uma corrida por likes e lacrações. É a expressão do próprio Estado e por isso tem que ser dirigida por pessoas que evitem os ruídos e as agressões, as omissões e os conflitos. Mas nada substitui a palavra do líder, se ela for sincera e tiver relação com os atos praticados.

Ir até o local onde se sofre é a norma de conduta mais elementar que um governante tem que seguir. Não estar presente simboliza desprezo pelos governados. Normalmente, os que visitam o povo em seu sofrimento entendem a urgência da tomada de decisão. A pessoa pública conseguirá dialogar apenas com alguns e ver somente uma fração do que acontece, mas algumas histórias costumam falar por muitas e por isso, ao sair do seu casulo, onde os áulicos lhe dizem que está tudo certo, o governante precisará ter ouvidos para ouvir e aproveitar a chance de ver com os próprios olhos.

Merval Pereira - Cloroquina nele!

- O Globo

Se não há estudos conclusivos, e se o remédio usado no combate à Covid-19 pode causar até morte, por que ampliar seu uso no serviço público de saúde?

Nos anos 1970 chegou ao Brasil uma figura polêmica internacional, o futurólogo Herman Kahn, físico, matemático, escritor e estrategista militar, que trabalhou no projeto da Bomba H e foi consultor de diversos governos dos Estados Unidos. Considerado um gênio, dirigiu o Hudson Institute e foi da RAND Corporation. Obeso, seu peso de 150 quilos só era menor do que seu QI 200.

Foi o criador da tese da “destruição mútua assegurada”, MAD, que garantia que um ataque da União Soviética geraria uma reação da mesma proporção, base da estratégia dos Estados Unidos durante a Guerra Fria.

Pois Herman Kahn chegou ao Brasil para expor um projeto chamado “Grandes Lagos”, percebido como um primeiro passo para a internacionalização da Amazônia tanto pela esquerda brasileira quanto pelos militares. Uma barragem no Baixo Amazonas transformaria a bacia amazônica em um lago gigante que desenvolveria o comércio com outros países, facilitando o transporte de minérios e outras comoditties.

A revolta foi tamanha que uma foto sua saindo da piscina do Copacabana Palace, com aquele corpanzil, foi usada para um grande outdoor com as palavras: “Ciclamato nele!”. Foi um outdoor criado pelo publicitário Marcus Pereira. O jornal O Pasquim, à época, fez muitas críticas ao futurólogo americano. Naquele momento, pesquisas indicavam que o adoçante com ciclamato fazia mal à saúde.

Hoje, Bolsonaro mereceria um meme com a frase: “Cloroquina nele!”. O protocolo para o uso da cloroquina desde os primeiros sinais da Covid-19, assinado pelo ministro interino da Saúde General Eduardo Pazuello sem a validação de médicos, pode ser considerado uma ameaça à saúde pública, e certamente será questionado nos tribunais, sobretudo no Supremo Tribunal Federal que, aliás, ontem começou a tomar posição sobre tema análogo, a Medida Provisória que busca isentar de culpa o agente público que cometer erros durante o período da pandemia.

Ascânio Seleme - Até papagaio bate continência

- O Globo

Os milhares de cargos federais entregues a militares, suas famílias e seus amigos se transformam em motivadores do apoio a Bolsonaro

Nunca, desde abril de 1985, as Forças Armadas foram usadas de maneira tão escancarada em favor de um projeto político. E nunca, em toda a história do Brasil, cederam tão docilmente. A ocupação das estruturas do Executivo por militares já depõe sobre a subserviência das forças ao presidente Bolsonaro. Não se trata de disciplina, de obediência ao comandante em chefe, que podem ser até a desculpa oficial, mas é porque há uma compensação. Com esse loteamento de cargos, Jair Bolsonaro interfere à vontade em todas as instâncias de poder militar, sobretudo no Exército.

Não fosse assim, sua ordem para a revogação de três portarias do Comando Logístico do Exército que estabelecem controle, identificação e rastreabilidade de armas e munições jamais passaria. Passou e foi mais um dos muitos ataques de Bolsonaro ao Estatuto do Desarmamento, que o Ministério Público Federal denunciou por inconstitucional. O presidente já baixou diversos decretos autorizando porte, aumentando volume de compra de munições, reduzindo idade e ampliando áreas para uso de armas de fogo. Quase todos foram revogados depois de reconhecidas suas inconstitucionalidades.

Um desses decretos aumentava de 50 para 5.000 o número de munições que poderiam ser compradas anualmente por qualquer pessoa que tivesse arma registrada. Ela autorizava a compra de pouco mais de 2 bilhões de balas por ano, permitindo que se dessem quase 6 milhões de tiros a cada dia no Brasil. Caiu, claro. Em outro, Bolsonaro flexibilizava de tal forma a lei de compra de armas que um cidadão como você e eu poderia ir ao mercado e comprar um fuzil para defesa pessoal. Há quem veja nisso apenas o atendimento de uma pauta da turma da bala. Ma há os que veem mais do que isso.

Bernardo Mello Franco - O papelão da Viúva Porcina

- O Globo

Regina Duarte reviveu a Viúva Porcina. Foi secretária da Cultura sem nunca ter sido. Agora ela vai trocar o ócio em Brasília por uma sinecura mais perto de casa

Regina Duarte reviveu a Viúva Porcina: foi secretária da Cultura sem nunca ter sido. A atriz trocou o protagonismo nas novelas por uma ponta num governo de chanchada. Saiu de cena em menos de três meses. Um fracasso de público e crítica.

A estreia já foi um espetáculo constrangedor. Entre caras e bocas, Regina definiu a cultura nacional como uma mistura de chimarrão, pum de palhaço e caipirinha de maracujá. “Cultura é assim: é feita de palhaçada”, discursou. Nem o tradutor de libras conseguiu disfarçar o espanto.

Em poucos dias, o polemista Olavo de Carvalho sentenciou que a atriz não estava “bem da cabeça”. Ela tentou se livrar dos discípulos dele, mas fracassou. O guru manteve seus radicais no comando de órgãos como a Biblioteca Nacional e a Fundação Palmares. Sem poder efetivo, Regina se resignou a fazer figuração.

Carlos Alberto Sardenberg - Quem é o dono da vacina?

- O Globo

O acesso às doses exigirá um amplo esforço global, num ambiente de colaboração entre empresas, governos e instituições internacionais

No início deste ano, a companhia farmacêutica Moderna, com sede em Cambridge, nos EUA, tinha um valor de mercado em torno de US$ 7 bilhões. No início desta semana, bateu US$ 30 bilhões depois de ter informado que obtivera resultados positivos em testes com humanos para a vacina contra o novo coronavírus. Dois dias depois, esse valor caiu uns US$ 2 bilhões, quando cientistas e autoridades sanitárias levantaram algumas questões.

A principal: o teste havia sido limitado a poucas pessoas e ainda na fase 1. Mas a companhia já tinha autorização do governo americano para iniciar a fase 2, com milhares de testes. Estará pronta, se tudo der certo, depois de uma fase 3, lá pelo final deste ano ou início de 2021. Esperanças. Mas, de todo modo, a companhia já adiantou planos de levantar no mercado um aporte de US$ 1,2 bilhão.

A empresa recebeu ajuda do governo americano – algo como 500 milhões de dólares – mas é privada, com ações diluídas em bolsa.

Diversas outras companhias privadas estão trabalhando na vacina antiCovid-19. Há também laboratórios ligados a governos ou a universidades, mas é grande a possibilidade de que empresas privadas cheguem antes aos melhores resultados. E diferentes: as empresas estão desenvolvendo tecnologias diversas — por exemplo, ou enfraquecendo o vírus ou usando partes dele.

Na verdade, a melhor expectativa entre cientistas e autoridades sanitárias é a seguinte: que várias farmacêuticas, cada uma no seu caminho, cheguem a, digamos, quatro ou cinco tipos de vacinas.

Ricardo Noblat - Nas mãos de Celso de Mello, mais um campeão de audiência

- Blog do Noblat | Veja

Decisão sobre sigilo de vídeo pode sair ainda hoje

O ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, acabou de retocar, ontem, seu voto sobre o sigilo do vídeo com a gravação da reunião ministerial de 22 de abril último onde, segundo o ex-ministro Sérgio Moro, o presidente Jair Bolsonaro ameaçou intervir politicamente na Polícia Federal. Foi por isso que Moro se demitiu.

Celso ficou chocado com o que viu. Ele disse que anunciaria sua decisão amanhã, mas fez a ressalva de que poderia antecipá-la. Hoje ou amanhã, não importa. O ministro já reuniu argumentos de sobra para justificar o voto a favor da liberação do vídeo na íntegra. Se assim for, vem por aí mais um campeão de audiência.

Quando o Procurador-Geral da República pediu a abertura do inquérito, Celso decidiu de pronto que tudo deveria correr a céu aberto. Sob reserva, apenas o que pudesse a certa altura prejudicar investigações ainda em curso. O distinto público tem o direito de saber se procede ou não o que Moro imputa a Jair Bolsonaro.

Os dois não são pessoas comuns. Um, além de ministro da Justiça, foi juiz durante mais de 20 anos e comandou a maior operação de caça a corruptos da história do país. O outro é simplesmente o presidente da República. Não poderão restar dúvidas sobre o comportamento de um ou de outro. Transparência mata dúvidas no nascedouro.

De resto, como um ministro do Supremo pode eventualmente tomar conhecimento de um ou mais crimes cometidos e preferir ocultá-los? A ser verdade que o ministro da Educação defendeu diante do presidente a prisão dos 11 ministros do Supremo, isso por si só já configura um crime que não pode ser ignorado.

William Waack - As razões dos militares

- O Estado de S.Paulo

Eles suportam um governo que embarcou numa perigosa aventura

Os militares que estão no governo aparentemente não comandam. Por motivo simples: uma coisa é a aptidão técnica e a formação intelectual para planejar e executar considerando meios e fins. Para isso os militares foram muito bem preparados em suas academias, que equivalem a escolas de business comparáveis às melhores lá de fora.

Outra coisa é o exercício da política, aprendizado que não está nos currículos dessas academias. Tem sido mais fácil para os militares no governo se apegar a seu padrão ético de “cumprir a missão”, “obedecer ao comando hierárquico” e “não abandonar o barco em dificuldades” do que enxergar que prestígio e respeito pacientemente recuperados pelas Forças Armadas após o regime que instauraram e conduziram por 21 anos estão naufragando pelo suporte que emprestam ao que hoje, sob Bolsonaro, deriva numa aventura rumo ao abismo.

O que os levou a pular para a carruagem do atual presidente, que estava longe de ser a primeira escolha deles, foi a noção de esgarçamento do tecido social e de desagregação institucional ilustrada por dois episódios significativos ainda no início da campanha eleitoral de 2018. O primeiro foi o fica ou sai de Lula da cadeia em Curitiba, devido a uma sequência de canetadas do Judiciário. Bagunça que por um triz não levou à desordem. O segundo foi a bagunça mesmo criada pela greve dos caminhoneiros.

Eugênio Bucci* - A pandemia da ignorância

- O Estado de S.Paulo

O remédio de que dispomos contra ela responde pelo nome de impeachment

Para falar das coisas prementes, vamos começar por um diagnóstico antigo: “Hoje, a maioria dos homens está doente, como que de uma epidemia, em função das falsas crenças a respeito do mundo, e o mal se agrava porque, por imitação, transmitem o mal uns aos outros, como carneiros”. Essas palavras foram mandadas gravar em pedras na cidade de Enoanda, na Capadócia (atual território da Turquia), por um certo Diógenes, no século 2.º desta era. Seguidor dos ensinamentos do filósofo grego Epicuro (341-270 a.C.), Diógenes fez essas e outras inscrições em nome de seu mestre, para quem a filosofia teria o poder de nos curar. Epicuro via na ignorância um terrível mal da humanidade e nisso concordava com outros sábios gregos.

A ignorância é um mal que mata. Se alguém ainda duvida, que olhe para o Brasil. Em nosso país ficaram escancarados os nexos entre a estupidez e o fracasso no combate à pandemia da covid-19. Se quisermos olhar o mesmo fato por um ângulo invertido, diremos que estão mais do que patentes os nexos entre o conhecimento e o sucesso contra a pandemia. Países onde as autoridades evitam espalhafatos e ancoram suas decisões na ciência têm se saído melhor. Nesses lugares distantes, os governos agem com o que se pode chamar de bom senso: as decisões são pautadas na razão, nas evidências científicas, e, não menos importante, a sociedade compreende o que as autoridades falam. A comunicação honesta e séria deve ser concebida como uma dimensão integrante da razão. Onde as autoridades alopram, predominam os surtos cloroquínicos, as mortes se avolumam e ninguém entende nada.

Roberto Macedo* - A pandemia e a saúde da economia

- O Estado de S.Paulo

Cabe uma liberação controlada e focada em atividades econômicas específicas

Temo que a chegada e a reversão do pico da crise que a covid-19 impôs ao Brasil tomem mais tempo do que em países onde isso já aconteceu. Não temos ampla testagem de sintomas e contágios, nem assistência médica suficiente. Especialistas dizem que sete dias após o contágio os efeitos da enfermidade são muito mais acentuados. O ideal seria que testes antecipassem o tratamento.

Unidades de terapia intensiva (UTIs), respiradores, testes, leitos e pessoal da área médica são escassos diante das necessidades. O Estado do Amazonas, daquele tamanhão, só dispõe de UTIs na capital. Os fatos falam por si, pois esse mesmo Estado se destaca pelo forte avanço da enfermidade.

Nossa coesão social também é baixa e os apelos a isolamento e cuidados pessoais nem sempre são ouvidos. O segmento mais pobre da população é o mais atingido e a própria pobreza dissemina a doença, pois tem moradias de pequena dimensão, pouco isoladas umas das outras, saneamento frágil. O maior tamanho das famílias também contribui para o contágio.

De olho nos números da covid-19, costumo recorrer ao jornal britânico Financial Times (FT), que tem detalhada cobertura internacional sobre o assunto. Nos últimos dias, no Brasil, o número de novas mortes continuou batendo recordes, estamos apenas abaixo dos EUA quanto a esse número. Mas também é preciso levar em conta as grandes diferenças de tamanho da população, o que o FT faz num de seus gráficos. Aí o Brasil fica no meio do gráfico, com cerca de 3,4 mortes por milhão de habitantes no dia 18/5, em média móvel de sete dias, enquanto vários países superaram em muito esse número, chegando, no pico da doença, a cerca de 18 na Espanha e 25 na Bélgica.

Zeina Latif* - Ajustar engrenagens para travessia longa

- O Estado de S. Paulo

Toda ajuda estatal deve ter como objetivo a travessia nos próximos meses, e não corrigir falhas estruturais

O ex-ministro Luiz Mandetta alertou que a crise seria longa. Em 16 de março, afirmou que a curva de novos casos da covid-19 atingiria o platô apenas em julho. O declínio efetivo se daria em setembro, assumindo 50% da população imunizada (ou já infectada).

Em pesquisa recente, Fernando Reinach apontou na mesma direção. A taxa de imunização na cidade de São Paulo – provavelmente superior à média do País – está em 5,2% e chegaria a 65% em 2 meses. Uma taxa de imunização inferior a 60% seria suficiente para estabilizar a curva de infectados.

Na economia, alguns analistas – como esta colunista – alertaram que a volta da economia seria lenta, diferentemente da crise de 2008, por conta da natureza da crise e da fragilidade econômica do País.

Esse cenário se cristaliza cada vez mais, ainda que com boa dose de incerteza. Não se sabe quando o período de calamidade pública será superado.

Bruno Boghossian – Salve-se quem puder

- Folha de S. Paulo

Sem aptidão para o cargo, presidente já mostrou que não tem interesse em governar

Se um ator de "Malhação" se oferecesse para assumir seu lugar, Jair Bolsonaro seria capaz de aceitar a proposta. O presidente jamais mostrou aptidão para o cargo. Cada vez mais, ele também deixa claro que não tem interesse em governar.

Depois de obrigar o Ministério da Saúde a recomendar um medicamento sem eficácia comprovada contra o coronavírus, Bolsonaro tentou novamente fugir de suas responsabilidades. "O que é a democracia? Você não quer? Você não faz. Você não é obrigado a tomar cloroquina", disse, na última terça (19).

O presidente não estimulou o desenvolvimento de nenhum protocolo sério para o tratamento da doença nem se esforçou em organizar o sistema de saúde para enfrentar momento críticos. Investiu na instabilidade e preferiu fazer piada na data em que o país registrou mais de mil mortos em 24 horas.

Bolsonaro poderia trocar o slogan do governo para "salve-se quem puder". Além de transferir para cidadãos leigos a escolha do tratamento de uma doença ainda desconhecida, ele já declarou que "o brasileiro tem que entender que quem vai salvar a vida dele é ele, pô!".

Mariliz Pereira Jorge - Risco Brasil

- Folha de S. Paulo

Além do coronavírus, temos que lidar com o comportamento kamikaze do brasileiro

Gado indo para o abate. Foi essa a sensação que tive ao embarcar numa ponte aérea nesta semana. Primeira vez fora do circuito casa-supermercado-farmácia, em dois meses, tive que recorrer ao ansiolítico no caminho até o aeroporto.

Muita gente não aguenta mais ficar trancada em casa, mas desconfio que o processo de descompressão daqui a uns três meses vá ser traumático, dependendo dos estragos em nossa saúde mental. Talvez nem todos consigam retomar a vida lá fora como já foi um dia. E ainda tem o "risco Brasil".

Além do coronavírus, temos que lidar com o comportamento kamikaze do brasileiro. Desde que coloquei os pés no Santos Dumont, nenhuma das recomendações de segurança foram seguidas pela maioria dos passageiros e pelos funcionários da companhia pela qual viajei. As marcações no chão para a fila de embarque foram ignoradas, todos amontoados, muitos com máscaras que só serviam de enfeite.

Fernando Schüler* - O fim de modo voluntarista de governar

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro percebeu que precisa de suporte político e algum nível de pactuação

Boa parte de nossa crônica política passou ano e meio reclamando que Bolsonaro não formava sua base no Congresso, que vinha com essa conversa mole de “nova política”, que era impossível governar daquela maneira. Mostrei dias atrás que o experimento do governo sem coalizão produziu alguma funcionalidade, no primeiro ano do governo, mas depois desandou. A pandemia foi sua pá de cal.

Bolsonaro parte então para um novo arranjo, de maneira surpreendentemente agressiva, com foco em uma articulação com os partidos do centrão. O professor Carlos Pereira escreveu um bom artigo descrevendo a nova estratégia como um “modo de sobrevivência”. Observei a ele que há algo um pouco além disso no arranjo: a disputa pela sucessão de Rodrigo Maia.

Controlar a presidência da Câmara significa dar o ritmo da agenda política, no Congresso, o que inclui admitir ou não pedidos de impeachment. Sérgio Abranches observou, acertadamente, que a nova coalizão não terá nada de programático.

Maria Hermínia Tavares* - Escolhas trágicas

- Folha de S. Paulo

Jair Bolsonaro se compraz em apostar no caos

Há momentos nos quais Bolsonaro revela por inteiro sua, digamos, visão do que seja democracia. Nenhum é melhor do que aqueles minutos usados para ofender os jornalistas, ao lhes dar o ar de sua graça; ou quando, nas manifestações domingueiras, sua presença estimula e avaliza os insultos ao Congresso e ao Judiciário.

Segundo essa percepção, típica do populismo, a democracia é tão somente uma forma de escolha periódica do chefe do Executivo, cuja ação não deve ser travada pelos demais Poderes do Estado, pela imprensa ou por outros órgãos da sociedade. Eis porque ele os confronta e provoca dia sim, outro também.

Mas o presidente não está só em seu desdém pelas instituições que constituem a essência da democracia pluralista. Na quinta-feira da semana passada, por exemplo, o seu vice, general Hamilton Mourão, publicou extenso artigo no jornal O Estado de S. Paulo. Nele, mostra que compartilha com o titular muito mais do que a louvação do regime autoritário implantado em 1964, a admiração pelo coronel torturador Brilhante Ustra, ou o desprezo pela cultura e os direitos dos povos indígenas.

Alessandro Molon* - Por um novo normal

- Folha de S. Paulo

Não cabe mais um Brasil da desigualdade, perpetuador da involução

Em nossas casas, isolados; nos hospitais, na linha de frente; nos comércios, adaptando-se para sobreviver; nos cemitérios, chorando a dor dos que enterram seus mortos sozinhos. Onde quer que estejamos, todos queremos que esse vírus invisível —e, ao mesmo tempo, impossível de ser ignorado— seja vencido. Que se descubra uma vacina ou um tratamento que nos permita voltar ao normal.

Há algumas semanas, no entanto, uma frase grafitada numa parede de metrô em Hong Kong viralizou: “Não podemos voltar ao normal, porque o normal que tínhamos era justamente o problema”.

Há tempos temos insistido na direção errada, ignorando avisos, fingindo não haver outra saída. Seguimos estimulando economias pesadas, com altas emissões de carbono, e que alimentam o crescimento de sociedades desiguais e doentes. Aqui no Brasil, devemos acrescentar ainda o alto desemprego, a fome, a reprimarização da nossa economia e a devastação das nossas florestas.

O sinal de alerta, desta vez, veio em forma de uma perigosa pandemia que nos obriga a parar e pensar. Queremos retornar aonde estávamos? Ou será que, diante do abalo às estruturas desta casa em que vivemos por tanto tempo, devemos construir uma morada mais sólida, mais resistente, mais acolhedora?

Não há mais espaço para um mundo em que os 22 homens mais ricos da Terra têm mais riqueza do que todas as 325 milhões de mulheres da África somadas. Um mundo em que 7 milhões de pessoas morrem todo ano por conta da poluição do ar, e em que 1 em cada 4 habitantes do planeta vive sem saneamento básico.

Maria Cristina Fernandes - Cassação da chapa é o labirinto mais curto

- Valor Econômico

Se cabo, soldado e Centrão deixarem, bastam quatro votos no TSE

Das saídas constitucionais para o fim do governo Jair Bolsonaro, a da cassação da chapa pelo Tribunal Superior Eleitoral é aquela que parece mais simples. Não carece de convencer o capitão a renunciar, nem de alargar o funil dos 343 votos necessários à chancela parlamentar para um processo de impeachment. Bastam quatro votos. O caminho para esta maioria pró-cassação, porém, é de um sinuoso labirinto.

São seis os processos que correm no TSE. Tem de tudo lá, mas nenhuma das acusações agrega maior apelo hoje do que o disparo de mensagens falsas. Andam com o vagar próprio dos processos da Justiça Eleitoral, mas podem ser pressionados por duas investigações em curso.

A primeira é aquela que apura a manipulação da investigação do desvio de verbas no gabinete do senador Flávio Bolsonaro na campanha de 2018. Não tem repercussão processual para o TSE mas joga água no moinho da percepção de que um gol de mão contribuiu para o resultado eleitoral. Foi esta, aliás, a tese que prevaleceu no processo de impeachment de Richard Nixon, abreviado por sua renúncia.

A segunda investigação é aquela conduzida, no Supremo Tribunal Federal, sobre a máquina de notícias falsas. Este inquérito pode vir a compartilhar provas com a Justiça Eleitoral, a exemplo do que aconteceu no processo que julgou a chapa Dilma Rousseff/Michel Temer.

Ribamar Oliveira - Programas precisam ser mais agressivos

- Valor Econômico

Ação do governo para ajudar micro e pequenas empresas é necessária antes que seja tarde demais

A trajetória de contaminação da população brasileira pelo novo coronavírus parece ser aquela traçada pelo ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, de que o pico da doença ocorrerá somente em julho, com um platô em agosto e uma queda a partir de setembro. Se esse é o cenário mais provável, o governo precisa adotar programas mais agressivos, que deem sustentação financeira às micro e pequenas empresas, antes que seja tarde demais.

O noticiário mostra que o crédito não está chegando a essas empresas, que são aquelas que mais empregam trabalhadores na economia. Milhares de pequenos e microempresários lutam para sobreviver e não encontram quem lhes dê suporte financeiro para enfrentar esta fase de hibernação da economia, que vai passar. Eles se viram diante de uma situação em que, de uma hora para outra, o dinheiro deixou de entrar no caixa de suas empresas, pois as vendas acabaram. E estão à beira da falência, se é que muitos já não sucumbiram.

Não se pode exigir que os bancos privados, que devem satisfação aos seus acionistas e precisam apresentar resultados, assumam esse papel. Ao analisar o pedido de empréstimo de um pequeno empresário em dificuldade, o gerente avalia a situação da empresa sem fluxo de caixa, as perspectivas da economia para os próximos meses e conclui que o crédito pedido não será pago.

Cora Ronai - Que papelão, Forças Armadas

- O Globo

A situação é tão desesperadora que, nesse momento, o coronavírus é o menor dos problemas do Brasil

É madrugada de quarta-feira, dia 20 de maio de 2020. O dia começou há pouco: digito essa frase às 00h37. Há oficialmente 271.885 casos confirmados de Covid-19 no Brasil e 17.983 mortes, mas o que o Ministério da Saúde diz não se escreve, até porque não temos ministro, não temos equipe no segundo escalão, não temos políticas federais minimamente confiáveis, não temos testes suficientes, não temos nada, nada, nada — além de alguns milicos brincando de médico e da certeza absoluta de ter o pior governo possível no pior momento imaginável.

A situação é tão desesperadora que, nesse momento, o coronavírus é o menor dos problemas do Brasil. Já se prevê uma vacina em futuro razoável, adivinham-se possíveis anticorpos aqui e ali, a Ciência funciona e, mais cedo ou mais tarde, estaremos livres disso, assim como ficamos livres de outras doenças — a peste bubônica, várias gripes, a paralisia infantil, a meningite, a Aids. Elas não desapareceram, mas já as conhecemos e as combatemos com eficiência suficiente para não temê-las mais (ou não temê-las tanto).

Mais difícil vai ser encontrar uma cura para a maldição que rege Brasília. E que não, não vem de 2018, embora nesse ano tenha chegado a um patamar nunca antes atingido na História desse país. Saímos cheios de esperança da ditadura — para cair em Sarney e Collor. Elegemos Fernando Henrique — mas ele nos legou a reeleição, essa sim a verdadeira Herança Maldita, que fez com que todos os que se sentassem depois naquela cadeira desgraçada sonhassem em se fincar no poder até o fim dos tempos (ou, pelo menos, até o fim das reeleições possíveis).

De desastre em desastre viemos dar aqui: um sociopata genocida apoiado por militares.

Cristovam Buarque* - Desigualdade endêmica

- Correio Braziliense (19/05/2020)

No mês em que o Brasil comemora 132 anos da Lei Áurea, a sociedade debate se o Enem deve ser adiado. É claro que fazer o exame logo depois da epidemia vai acirrar a brutal desigualdade de como a educação de base é oferecida, mesmo nos períodos normais.

Escolas privadas estão substituindo aulas presenciais por ensino a distância, com a mesma ou até melhor qualidade, desde que os alunos tenham os equipamentos necessários e contem com apoio de pais ou de professores particulares. Mas raríssimas escolas públicas conseguem se adaptar com a mesma rapidez ao uso dos métodos do ensino a distância e, dificilmente, seus alunos contam com celulares, tablets, notebooks ou com o apoio pedagógico familiar.

Por isso, é absurdo que o governo federal se recuse a adiar a realização do Enem para quando as escolas tiverem recuperado o tempo perdido. Felizmente, entidades estudantis e grupos preocupados com a educação estão lutando para forçar o adiamento do exame na tentativa de impedir o agravamento das consequências decorrentes da desigualdade de como a educação é oferecida às nossas crianças. Mas é lamentável que a sensibilidade à desigualdade só chame a atenção quando se trata do ingresso à universidade.

O que a mídia pensa - Editoriais

• Saúde militarizada – Editorial | Folha de S. Paulo

Assusta o excesso de fardados na pasta que deveria ser centro contra pandemia

Na terça-feira (19), o Brasil cruzou uma barreira macabra ao contabilizar mais de mil mortos pelo coronavírus num intervalo de 24 horas. Foram 1.179 vítimas do patógeno, segundo o Ministério da Saúde.

O número é certamente maior, dada a notória subnotificação verificada aqui, mais uma entre tantas mazelas locais que a Covid-19 veio apenas sublinhar —e também pelo colapso do sistema funerário do país, que mal consegue registrar os dados básicos de seus mortos (em muitos lugares o laudo omite a cor da vítima, por exemplo).

Tem-se morrido às centenas diariamente de genéricos “problemas respiratórios”, em número várias vezes superior à média histórica brasileira, para ficar apenas numa das rubricas lavradas em atestados de óbitos que devem mascarar novas vítimas da nova doença.

Poesia | João Cabral de Melo Neto - O Rio

Da lagoa da Estaca a Apolinário

Sempre pensara em ir
caminho do mar.
Para os bichos e rios
nascer já é caminhar.
Eu não sei o que os rios
têm de homem do mar;
sei que se sente o mesmo
e exigente chamar.
Eu já nasci descendo
a serra que se diz do Jacarará,
entre caraïbeiras
de que só sei por ouvir contar
(pois, também como gente,
não consigo me lembrar
desas primeiras léguas
de meu caminhar).

Deste tudo que me lembro,
lembro-me bem de que baixava
entre terras de sêde
que das margens me vigiavam.
Rio menino, eu temia
aquela grande sêde de palha,
grande sêde sem fundo
que águas meninas cobiçava.
Por isso é que ao descer
caminho de pedras eu buscava,
que não leito de areia
com suas bôcas multiplicadas.
Leito de pedra abaixo
rio menino eu saltava.
Saltei até encontrar
as terras fêmeas da Mata.

Notícia do Alto Sertão

Por trás do que lembro,
ouvi de uma terra desertada,
vaziada, não vazia,
mais que sêca, calcinada.
De onde tudo fugia,
onde só pedra é que ficava,
pedras e poucos homens
com raízes de pedra, ou de cabra.
Lá o céu perdia as nuvens,
derradeiras de suas aves;
as árvores, a sombra,
que nelas já não pousava.
Tudo o que não fugia,
gaviões, urubus, plantas bravas,
a terra devastada
ainda mais fundo devastava.

A estrada da Ribeira