terça-feira, 18 de agosto de 2020

Opinião do dia - Jan-Werner Müeller*

• No Brasil, Bolsonaro também tem resultados ruins no enfrentamento à pandemia, mas mostrou resiliência política. Quão importante é a guerra cultural como ferramenta de luta política?

Os populistas dizem que eles, e somente eles, representam o “verdadeiro povo”. Para eles, no entanto, o “povo” não é formado por todos. Minorias consideradas indesejadas ou pessoas com ideias de esquerda são excluídas. O modelo político dos populistas é dividir as pessoas e marcar uma fronteira entre quem realmente pertence ao “povo” e quem não. A guerra cultural é realmente muito importante para eles, mas, por si só, não vence eleições.


*Jan-Werner Müeller, professor da Universidade Princeton e autor do livro, “O que é populismo”. Entrevista, O Estado de S. Paulo, 16/8/2020.

Alberto Aggio* - As modulações da guerra de Bolsonaro

- Política Democrática Online, nº 22, agosto, 2020

Não estamos em guerra, nem internacional, nem de libertação nacional, nem mesmo contra a pandemia que se abateu sobre nós. No entanto, a metáfora da guerra invadiu, com palavras e expressões do mesmo campo semântico, o espaço discursivo da política desde que Jair Bolsonaro assumiu o poder. Até a cultura foi atingida em nome de uma insana “guerra cultural” contra tudo o que os partidários do presidente definem como “esquerda”. A militarização de parcela da gestão pública federal é parte dessa aparentemente insólita situação, com um General à cabeça do Ministério da Saúde asseverando que lá está “para cumprir ordens”.

O que pauta o governo Bolsonaro, em autodeclararão contundente, é o programa de “destruição” dos atores, das instituições e da cultura política de convivência democrática que se erigiu nas últimas três décadas, sob a égide da Constituição de 1988. Em momentos nos quais a eloquência confrontacional do presidente buscou mobilizar seus partidários, Bolsonaro chegou a ser explícito: “Isso é uma guerra, pô”. Em outras situações, nas quais quis aparentar concórdia e distensão, seu discurso procurou operar com o antônimo, pedindo “paz, em nome do Brasil”.

A “guerra de Bolsonaro” não é “a continuação da política por outros meios” (Clausewitz). Não é uma guerra efetiva, embora ambicione impor uma “suspensão da política”, como se estivesse num contexto revolucionário, a la Lenin, para quem a guerra deveria ser vista como desdobramento da revolução. Não é sem propósito observar também que Mussolini venerava a guerra e se dizia um revolucionário.

Talvez por isso a sensação de crispação política nos remeta tanto à guerra quanto à revolução. Esta última um devaneio rupturista que os ideólogos do bolsonarismo curam em “fogo morno” contra a democracia em seus valores, instituições e direitos. Ruptura travestida como eliminação de “comunistas” e “corruptos” do solo pátrio. Como o bolsonarismo não lidera um partido fascista ou um movimento orgânico (embora tenha mobilizado massas) que combine a rua com redes sociais e instituições da sociedade política, pode-se dizer que ele e o “núcleo duro” do bolsonarismo guardam alguma similitude com a subsistência de experiências do tipo “45 cavaleiros húngaros”, mencionada por Gramsci, nas quais uma minoria, em meio à paralisia ou desorientação das massas, consegue alcançar um sucesso inesperado.

Merval Pereira - O teto não é o limite

- O Globo

Uma após outra, as pesquisas de opinião vão mostrando que a popularidade do presidente Jair Bolsonaro cresce à medida que os efeitos do auxílio emergencial para enfrentamento da pandemia da Covid-19 vão se fazendo sentir nas classes e regiões menos favorecidas. E a boca fechada do presidente, que agora age em silêncio, também ajuda na melhoria de sua avaliação, evitando aquela sensação de vergonha alheia em seus apoiadores em outros estratos da população.

Ao mesmo tempo em que essa é uma boa notícia para o governo, o coloca em uma sinuca de bico, pois a continuidade desse auxílio de R$ 600 é esperada pelos que o recebem, mas também pela maioria da sociedade, como demonstra a pesquisa XP/Ipespe divulgada ontem que mostra que 70% da população são favoráveis à continuidade do programa, inclusive entre os que não têm acesso a ele.

Assim como o Datafolha já havia constatado, também a pesquisa XP/Ipesp confirma uma melhoria na avaliação do presidente, tendência que já havia sido detectada na pesquisa de julho.

O Ipesp registra os maiores níveis de aprovação ao presidente desde março de 2019, com os que consideram o governo ótimo ou bom saltando sete pontos percentuais, de 30% para 37%, enquanto os que consideram o governo ruim ou péssimo caíram de 45% para 37%, o menor índice desde agosto de 2019.

O movimento positivo para Bolsonaro é seguido por outros indicadores, segundo o Ipespe, como o aumento expressivo dos que têm expectativa positiva para o restante do mandato, que eram 33% e ganharam mais quatro pontos percentuais, reforçados pela queda dos pessimistas de sete pontos percentuais.

A percepção do eleitorado de que a economia está no caminho certo também aumentou, de 33% para 38%, o que pode dar ao ministro Paulo Guedes argumentos para confrontar-se com os “fura-tetos”, como ele chama seus colegas de ministério que querem aumentar os gastos públicos. Mas, como no Brasil a maioria não leva em conta o binômio causa-efeito, os mesmos que consideram que a economia está certa querem manter o auxílio emergencial que quebra as contas públicas.

Ajudou também a melhorar a avaliação do presidente o alívio da maior parte da população em relação à pandemia, (52%) que considera que o pior já passou, caindo o número dos que dizem estar com muito medo do surto (38% para 33%).

Carlos Andreazza - O integralismo no poder

- O Globo

Movimento nunca deixou de estar entre nós

Culto à personalidade. Estímulo à compreensão messiânica da liderança. Forja de inimigos artificiais. Discurso autocrático, antiliberal e anticomunista, de fé nacionalista, embocadura cristã e musculatura miliciana para o confronto. Fetiche com a projeção fálica de uma intervenção militar. Constituição de uma máquina panfletária para difundir teorias conspiratórias. Críticas doutrinárias à democracia, propositalmente confundida com o (criminalizado) establishment e entendida mesmo como empecilho; sendo necessário — em nome de uma nova política — destruir os padrões viciados da atividade político-partidária.

A que me refiro? Estarei incorrendo em repetição, mais uma vez esmiuçando o caráter da revolução reacionária bolsonarista? Sim e não.

Sim; porque esses elementos compõem o sistema de crenças do bolsonarismo, com sua pulsão de morte e a incapacidade de lidar com a liberdade senão como condição para impor os próprios modos. E não; porque me dediquei a listar somente estandartes do “Estado integral” segundo a doutrina do integralismo — o maior movimento de extrema-direita da História do Brasil até hoje, cuja influência tem assento no governo Bolsonaro e integra o pensamento do dito grupo ideológico, que prefiro chamar de sectário, aquele, poderoso, olavista, que toca a tal guerra contra o tal marxismo cultural.

Integralismo em 1932: algo novo — atraente para a juventude — numa sociedade intolerante (pautada pelo autoritarismo de Vargas) e amedrontada; o clima de medo (o perigo vermelho) impulsionando a adesão e o financiamento ao movimento. O ideal “Deus, pátria e família” encarnado no chefe nacional Plínio Salgado; o líder para o exercício do que seria uma democracia orgânica — que prescindiria das intermediações da democracia representativa.

Luiz Carlos Azedo - Cheiro de queimado

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“Bolsonaro quer transformar o abono emergencial no Renda Brasil, uma espécie de Bolsa Família três vezes maior do que o programa que herdou do ex-presidente Lula”

Quem quiser que se iluda, o ministro da Economia, Paulo Guedes, arde numa frigideira em plena Esplanada dos Ministérios. Ontem, o subsecretário de Política Macroeconômica do Ministério da Economia, Vladimir Kuhl Teles, deixou o cargo. Era o número dois da Secretaria de Política Econômica do ministério, comandada por Adolfo Sachsida. Publicamente, alegou razões pessoais. Na semana passada, dois membros do primeiro time da equipe de Guedes haviam deixado a pasta: os secretários de Desestatização, Salim Mattar, e de Desburocratização, Paulo Uebel. Guedes tem sinalizado para o mercado que não pretende deixar o cargo, porém perde liderança sobre sua própria equipe.

A fritura de Guedes segue um rito que está se consolidando no Palácio do Planalto como um método de descarte dos ministros. O presidente Jair Bolsonaro prestigia o auxiliar publicamente, mas nos bastidores nada faz para evitar que seja desgastado por notícias de que o ministro já não está mais afinado com o presidente da República. Em termos de política econômica, Bolsonaro pretende “furar o teto de gastos” e só falta encontrar um meio para disfarçar a pedalada fiscal. Não à toa, todo o mercado já precifica a flexibilização da política fiscal, com a Bolsa em queda e o dólar em alta. Mas há duas leituras sobre o futuro de Guedes: uma de que acabará substituído no cargo por Bolsonaro; outra, de que está lutando para ficar, fazendo o que pode para aumentar os gastos do governo sem perder a narrativa da responsabilidade fiscal.

Os dados estão sendo lançados no tabuleiro. A situação da economia não é fácil. Bolsonaro sobrevoa o Nordeste em céu de brigadeiro, por causa do abono emergencial, mas Guedes navega num mar proceloso. Ontem, o relatório do Instituto Fiscal Independente, mantido pelo Senado, registrava queda de 8% do PIB no segundo trimestre (menos mal, a previsão era um tombo de 10,6%); recuperação de alguns setores da indústria e do comércio; recessão de 6,5% em 2020. Redução do número de pessoas ocupadas de 93,3 milhões em junho de 2019 para 83,3 milhões em junho deste ano. Perda de receita líquida de 2,5% do PIB no primeiro semestre; crescimento de 40,3% da despesa primária no semestre; aumento de 9,7% da dívida bruta do governo entre dezembro 2019 e junho de 2020.

Bernardo Mello Franco - Mais armas, menos livros

- O Globo

O governo quer gastar mais com militares do que com estudantes em 2021. O plano é coerente com a trajetória de Jair Bolsonaro. O capitão foi para a reserva há 32 anos, mas nunca tirou os pés do quartel. Na política, sempre atuou como um sindicalista da farda.

O Brasil não está em guerra e não tem motivos para se preocupar com as fronteiras. Mesmo assim, o Planalto pretende aumentar as verbas do Ministério da Defesa em 49% na comparação com o projeto de Orçamento enviado ao Congresso no ano passado.

Segundo o jornal “O Estado de S.Paulo”, a pasta deverá receber R$ 5,8 bilhões a mais do que o Ministério da Educação. Isso não ocorre há uma década, quando o investimento nas salas de aula ultrapassou as despesas com a caserna.

José Casado - A resiliência das mulheres

- O Globo

Bolsonaro tem um problema com elas, que o rejeitam

Jair Bolsonaro tem um problema com as mulheres. Elas o rejeitam, e reafirmam a aversão combinada à desconfiança nas pesquisas do Datafolha nos últimos 24 meses.

Em agosto de dois anos atrás, quatro de cada dez eleitoras se mostravam enfáticas na recusa ao candidato: 43% declaravam que nele não votariam “de jeito nenhum”.

Bolsonaro começava a despontar como favorito na disputa presidencial apoiado no voto masculino, na proporção de três homens para cada mulher. A repulsa feminina aumentou, para 50%, entre o primeiro e o segundo turno.

O repúdio atravessou o ciclo inaugural no Planalto. Em dezembro do ano passado, 41% das eleitoras qualificavam seu governo entre “ruim” e “péssimo”. Afirmavam (46%) “nunca confiar” no que dizia o presidente. A maioria (56%) o criticava por não se comportar no cargo como deveria.

Míriam Leitão - Os vários nós da crise Guedes

- O Globo

Há dinheiro sobrando no Orçamento. Essa é a ironia desta crise. Houve o chamado empoçamento. Até junho, o dinheiro não executado chegou a R$ 31 bilhões. Outro risco: em 2021, não há meta fiscal porque foi impossível estabelecer uma previsão quando foi feita a LDO. O ambiente parece perfeito para os gastadores. Só que existem dificuldades técnicas e uma trava para os gastos: o teto. Não é a primeira vez que o ministro Paulo Guedes entra em zona de turbulência, mas esta é a pior crise. No governo, dizem que ele não sai, mas a tensão está aumentando. O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, em conversa com interlocutores internos, já avisou que concorda em 99% com o ministro Paulo Guedes. Não poderia ser o substituto na eventualidade da queda.

A solução, segundo eu soube no governo, será conseguir algum dinheiro este ano para atender aos ministros Rogério Marinho e Tarcísio de Freitas. E essa foi toda a discussão das últimas horas. Marinho, que queria R$ 30 bi, se contentaria com R$ 5 bilhões, mas nem isso Paulo Guedes achou técnica e fiscalmente viável. A turma do deixa disso está querendo convencer Guedes a ceder um pouco, e Marinho a concordar com menos. No final do dia, estava estabelecido que haveria uma MP de R$ 5 bi, e que R$ 1,8 bi seria para o Ministério do Desenvolvimento Regional. E Paulo Guedes bateu pé: só o que fosse possível ser executado até 31 de dezembro, porque no ano que vem não haverá a PEC da guerra, portanto, voltam a valer todos os limites de despesas.

Eliane Cantanhêde - Sem dó nem piedade

- O Estado de S.Paulo

Faltaram tochas e máscaras brancas nos gritos de ‘assassina’ para a pobre menina pobre

É de chorar copiosamente de raiva, vergonha e desânimo quando um bando de enlouquecidos usa o nome de Deus para transformar uma pequena e sofrida vítima em vilã, aos gritos de “assassina”. É de uma crueldade sem limites, que faz recrudescer uma angústia que só aumenta: a audácia dessa gente que saiu das trevas não tem fim?

A pobre menina pobre tinha seis anos quando passou a ser abusada por um tio, na casa onde morava com os avós. O pai? Não se sabe. A mãe? Também não. Sem os pais e sem o olhar, o cuidado e a piedade dos adultos, responsáveis, amigos e vizinhos, que não viram nada ou não quiseram “se meter na vida dos outros”, o que e quem sobrou? Nada, ninguém. Só o medo, a solidão, a dor do corpo e da alma.

Histórias assim ocorrem o tempo todo, por toda parte, contra milhares de meninas e meninos pobres e desamparados neste nosso Brasil tão lindo, de gente tão alegre e sol o ano inteiro, invejado por natureza pujante. Um Brasil tão solar que abriga um Brasil tão obscuro, soturno, onde a Justiça não é igual para todos, juízas injustas se referem à “raça” do suspeito para condená-lo e crianças não têm o direito de serem crianças. Abandonadas pela família e pelo Estado.

Mario Vargas Llosa - Rumo à Estação Finlândia

- O Estado de S.Paulo

Em livro, Edmund Wilson resolve o difícil equilíbrio entre tipos humanos e líderes de massa

Edmund Wilson publicou dezenas de livros – artigos, ensaios críticos, polêmicas, um longo estudo sobre a literatura da guerra civil americana, Patriotic Gore, e seus diários pessoais, bastante libidinosos. Em toda essa extraordinária obra se destaca Rumo à Estação Finlândia (Companhia das Letras), que tem como subtítulo Um Estudo Sobre Escrever e Atuar na História, publicado em 1940. É um livro absolutamente atual, que pode ser lido e relido como os grandes romances e que, no passar dos anos desde sua publicação, ganhou encanto e vigor, a exemplo das obras-primas literárias.

Seu propósito é narrar, como o faria um romance, a ideia socialista, desde que o historiador francês Michelet descobriu Vico e sua tese de que a história das sociedades nada tinha de divino, era obra dos próprios seres humanos, até dois séculos depois, quando, numa noite chuvosa, Lenin desembarca na Estação Finlândia, em São Petersburgo, para liderar a Revolução Russa. É um livro de ideias, que parece ficção pela habilidade e imaginação com que foi escrito e pela originalidade e força compulsiva dos personagens que nele aparecem – Renan, Taine, Babeuf, Saint-Simon, Fourier, Owen, Marx, Engels, Bakunin, Lassalle, Lenin e Trotski – os quais, graças ao poder de síntese e à prosa de Wilson, ficam gravados na memória do leitor como os personagens de Os Miseráveis, Os Irmãos Karamazov ou Guerra e Paz. É uma obra-prima que, por motivos políticos, foi marginalizada, apesar de seu alto valor do ponto de vista literário.

A ideia socialista é a ideia de um paraíso na terra, de uma sociedade sem ricos e sem pobres, onde um estado justo e generoso distribuiria riqueza, cultura, saúde, lazer e trabalho para todos, de acordo com suas necessidades e capacidades, e onde, pelo mesmo motivo, não haveria injustiças nem desigualdades e o ser humano viveria desfrutando do bem da vida, a começar pela liberdade. Essa utopia nunca se materializou, mas mobilizou milhões de pessoas ao longo da história e produziu greves, motins e revoluções, violências e repressões indizíveis, além de um punhado de personagens fascinantes que trabalharam até a loucura para incorporá-la à realidade. O resultado dessa odisseia irrealizável – em grande medida, graças às lutas que motivou – foi corrigir boa parte das ferozes injustiças da velha sociedade, para que a classe trabalhadora e seus sindicatos renovassem profundamente a vida social, adquirissem direitos que antes lhes eram negados e fossem transformadas de forma radical a economia e as relações humanas.

Cristina Serra - A oposição e a 'esfinge'

- Folha de S. Paulo

Fragmentação é caminho suicida para oposição progressista

Aos 20 meses de governo, Bolsonaro já está em campanha pela reeleição e avança sobre o terreno adversário, o Nordeste, embalado pelo auxílio emergencial e a melhora expressiva de sua aprovação.

De olho em 2022, ele testa até onde pode furar o teto de gastos sem entrar na “zona sombria” do impeachment, como ameaçou Paulo Guedes. Bolsonaro tem se mostrado um especialista em esticar a corda e parar antes que ela arrebente. Poderá usar essa habilidade para administrar as pressões de seu ministro e do “mercado” enquanto sonha com obras, gastos e o segundo mandato.

É cedo para saber se isso dará certo. Seguro mesmo é que pesquisas anteriores ao último Datafolha já mostravam que Bolsonaro retém taxa de aprovação sólida como granito em torno de 30%. É um desafio entender tal patamar de aprovação, considerando o comando desastroso desde o começo da pandemia. Nem a demissão do popular ministro da Saúde abalou esse percentual, muito menos a do ministro da Justiça, decisivo na ascensão de Bolsonaro.

Hélio Schwartsman - Supervisão teológica

- Folha de S. Paulo

Pior do que igreja fazer campanha para político é o Estado decidir o que cada igreja pode defender

O abuso do poder religioso deve ser coibido em eleições? O TSE julga uma ação no curso da qual poderá ampliar o conceito de abuso de autoridade para abarcar igrejas. Se a tese proposta pelo ministro Edson Fachin sair vitoriosa, políticos eleitos com uma mãozinha de clérigos poderão ter seus mandatos cassados.

Não sou o melhor amigo das religiões, mas a inovação sugerida por Fachin me parece inoportuna e perigosa. Ela limitaria em demasia não só a liberdade de expressão mas também a de crença religiosa.

Já fui proprietário de uma igreja, a Igreja Heliocêntrica do Sagrado EvangÉlio (IHSE). Era um bom negócio. Criá-la não custou mais do que algumas centenas de reais e sua existência permitia-me fazer aplicações financeiras livres de impostos, entre outras vantagens. Como o propósito de minha aventura sacerdotal não era enriquecer nem usar drogas legalmente (outra das vantagens), mas demonstrar, numa reportagem, quão fácil é usar a religião para livrar-se de impostos, acabei fechando a IHSE.

Pablo Ortellado* - Ativismo antiaborto

- Folha de S. Paulo

Ativismo antiaborto não reverbera em público conservador que viu nuances em caso de estupro de menina de 10 anos

Muitos progressistas ficaram assustados e perturbados com a mobilização de ativistas cristãos que foram à porta do hospital da universidade de Pernambuco protestar contra o aborto da menina de dez anos que engravidou após ser estuprada por um tio.

A menina não conseguiu fazer em Vitória o procedimento, que é permitido pela lei brasileira em caso de estupro e risco de vida para a mãe, e precisou se deslocar até o Recife.

Ativistas cristãos descobriram onde o aborto iria ser realizado e foram à porta do hospital para protestar e orar. Em seguida, um grupo de feministas também se mobilizou para fazer uma contraofensiva em defesa do direito ao aborto. A menina, ao final, conseguiu interromper a gravidez.

Chama a atenção o quanto o caso chocou a esquerda, que reagiu indignada, e o quão pouco mobilizou a direita --pelo menos se usarmos como parâmetro os compartilhamentos no Facebook. Na plataforma, os posts indignados da esquerda geraram 205 mil compartilhamentos, enquanto os posts de mobilização da direita não alcançaram 7.000.

A desproporção entre ação e reação faz pensar o que incomodou os progressistas e o que desmotivou os conservadores.

Joel Pinheiro da Fonseca* - O aborto não foi criminoso; o estupro e os protestos, sim

- Folha de S. Paulo

Conservadores devem condenar espetáculo cruel na porta do hospital

Não é a primeira vez que uma criança é estuprada, engravida e procura um aborto no Brasil nem será a última.

Mas a cada nova ocorrência, a reação social fica mais nociva. A situação, que já é trágica por si só, ganha contornos ainda mais cruéis quando o moralismo seletivo e a falta de compaixão resolvem se intrometer.

Um desses algozes previsíveis é a Igreja Católica. Realizado o aborto, lá vem a notícia: todos os envolvidos —exceto a criança, por sua idade— estão automaticamente excomungados. Isso é uma regra do direito canônico da Igreja, algo que o papa poderia mudar facilmente com uma canetada.

A mudança não faria com que o aborto deixasse de ser pecado, apenas reduziria o sofrimento psicológico de casos como esse.

Ao escolher manter essa regra, a Igreja Católica parece considerar mais grave o aborto da menina de dez anos do que o estupro que a engravidou, que não acarreta excomunhão automática, assim como o assassinato "normal", de pessoas já nascidas.

Desta vez, contudo, a sordidez foi mais longe, unindo a imbecilização política crescente ao poder de mobilização das redes sociais.

Ricardo Noblat - A barbárie do extremismo religioso contra a criança estuprada

- Blog do Noblat | Veja

O Estado brasileiro é laico. O que significa: ele não permite a interferência de correntes religiosas em assuntos estatais, nem privilegia uma ou algumas religiões sobre as demais. Garante e protege a liberdade religiosa de cada cidadão, mas evita que grupos religiosos exerçam interferência em questões políticas.

“Os dogmas de fé não podem determinar o conteúdo dos atos estatais”, disse o ministro Marco Aurélio Mello em 2012 quando o Supremo Tribunal Federal, por oito votos contra dois, decidiu que grávidas de fetos sem cérebro podem interromper a gravidez com assistência médica prestada pelo Estado.

Em mais duas situações, o aborto é plenamente legal no Brasil: quando a continuação da gravidez importa em risco à vida da mãe e em caso de estupro. Foi o que aconteceu com a menina de 10 anos de idade, estuprada desde os seis anos por um tio no Espírito Santo, levada às pressas para abortar no Recife.

Em Vitória, um hospital negou-se a respeitar a ordem judicial de fazer a cirurgia na menina, conforme sua vontade reiteradamente manifestada em diversas ocasiões. A gravidez decorreu de um crime, tipificado em lei. Para a menina, suportá-la e dar a luz equivalia a um processo de tortura. Tortura é outro crime.

O que pretenderam os militantes cristãos, comandados por políticos da direita e da extrema direita, que na noite do último domingo cercaram o hospital no Recife onde a menina estava sendo esperada para submeter-se à cirurgia? Na prática, tornar a Constituição letra morta, ignorando o que ela prescreve.

Andrea Jubé - “A gente sabe que o povo precisa comer”

- Valor Econômico

Pesquisas mostram que Bolsonaro “levou a massa”

Era 1980, e o Brasil completava 16 anos de ditadura militar em um cenário de crise econômica progressiva, apatia política e um vazio de lideranças. Com esse pano de fundo, um jornalista de cabelos compridos, cigarro aceso entre os dedos e ar transgressor cobrou do ex-governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola que liderasse a oposição ao governo e resgatasse a credibilidade da população na política e nos políticos.

Brizola respondeu que era preciso “buscar uma alternativa” que polarizasse a opinião brasileira e ganhasse a confiança interna e no exterior. Um desafio que a oposição brasileira experimenta hoje em dia.

“O senhor está falando numa linguagem de político em que o povo não acredita mais”, retrucou o jornalista Plínio Marcos, autor do censurado “Navalha na Carne”, ressaltando que a “alternativa” citada por Brizola deveria vir dele próprio.

Prosseguiu o dramaturgo: “Porque a gente sabe que o povo precisa comer, precisa morar, precisa trabalhar, precisa de um mínimo para viver com dignidade. Mas se vem um carismático de direita e joga essas pequenas coisas, que são o mínimo que o ser humano quer, não leva essa massa? Não corremos esse perigo? Não é urgente aparecer uma opção?”

Plínio Marcos dividiu a bancada com outros expoentes do jornalismo, como Roberto D’Ávila, Samuel Wainer e Tarso de Castro, em uma edição histórica do programa Canal Livre, de uma atualidade espantosa.

Fabio Graner - Teto e gatilhos no país dos ruídos políticos

- Valor Econômico

Gatilhos podem ser insuficientes para sustentar mecanismo que limita crescimento das despesas da União

Imbuído da tarefa de defender o teto de gastos diante das crescentes pressões para sua flexibilização, o ministro da Economia, Paulo Guedes, demonstra segurança e otimismo com as chances de sustentar sua agenda.

Ao Valor, ele fez um balanço sobre a ruidosa última semana, que teve a “debandada” de dois importantes auxiliares e especulações sobre sua permanência, mas também gestos contundentes em defesa do limite de despesas por parte do presidente Jair Bolsonaro e dos chefes da Câmara e do Senado, o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) e o senador Davi Alcolumbre (DEM-AP).

“O resumo da semana passada, é que a Câmara, o Senado e o Presidente da República disseram: estamos todos sob o mesmo teto e vamos retomar as reformas”, disse Guedes, reforçando o aspecto simbólico daquele encontro. Bolsonaro, aliás, na sexta-feira e no sábado passados voltou a defender o teto, depois de ter admitido, na quinta-feira, que houve discussão no governo para flexibilizar o dispositivo.

O ministro reconhece que há méritos em algumas propostas que implicam mais gastos, como obras de saneamento no Nordeste ou projetos mais típicos de infraestrutura. Mas salienta a necessidade de que isso seja feito dentro dos limites, retirando-se, portanto, de outras rubricas de despesas. E diz que há compreensão sobre isso no governo, a despeito das discussões que vieram à tona. “A equipe está unida em torno disso, é natural que haja pleito de recursos para água no Nordeste e para obras críticas de infraestrutura e isso tem que vir de remanejamento de recursos”.

Armando Castelar Pinheiro* - Outra vez o teto de gastos

- Valor Econômico

O que se defende é uma reedição do PAC e da Nova Matriz Econômica, que jogaram o Brasil na recessão de 2014-16

Quando eu estudei fora e vinha visitar a família, o país parecia estar sempre à beira do precipício. Era o final dos anos 1980, período de hiperinflação, choques heterodoxos e um confuso processo de redemocratização. Voltava para Berkeley me perguntando como o país sobreviveria. Quando chegava aqui de volta, porém, nada tinha mudado: nem as coisas tinham explodido, nem nada fora resolvido. Era, como se dizia, uma hiperatividade paralisante.

Em várias dimensões, as coisas pouco mudaram desde então. Vemos isso na área fiscal, na questão tributária, na privatização, na abertura comercial etc. O custo disso é imenso: os investidores se retraem, a produtividade não aumenta e o crescimento é medíocre, gerando mais informalidade e pobreza do que seria preciso.

A aprovação da Emenda Constitucional 95 (EC 95), que instituiu o teto de gastos, foi um passo importante na luta contra essa hiperatividade que não leva a lugar nenhum. Como observei à época (glo.bo/3hgjLA1), a regra do teto permite um ajuste fiscal gradual, sem ter de necessariamente cortar gastos, em especial aqueles com educação e saúde, cujo mínimo foi garantido pela própria emenda. Além disso, ele reduz o custo de financiamento do setor público.

‘É assim que funciona no Brasil’ – Editorial | O Estado de S. Paulo

O presidencialismo de coalizão degenerou em corrupção e fisiologismo, com partidos exigindo verbas e cargos estratégicos em troca de seus votos

O novo líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (Progressistas-PR), disse que é “absolutamente justo” que os partidos que apoiam o governo tenham em troca disso acesso a cargos na administração. “A nossa Constituição tem o presidencialismo de coalizão”, disse o parlamentar à Rádio Eldorado, referindo-se ao fato de que, pelo atual modelo político-eleitoral, o presidente não consegue maioria no Congresso quando se elege, sendo obrigado a negociar a inclusão de outros partidos em sua base para ter governabilidade. Esses partidos “que vão permitir ao governo aprovar matérias que ele prometeu na campanha” devem ter “elementos” no governo, declarou Ricardo Barros, que completou: “É assim que funciona no Brasil”.

De fato, é assim que tem funcionado no Brasil, mas não da maneira aparentemente republicana como descreveu o líder do governo. O presidencialismo de coalizão degenerou em corrupção e fisiologismo, com partidos exigindo verbas e cargos estratégicos em troca de seus votos, relação que nada tem a ver com uma agenda política para o País. Sob os governos petistas, tornou-se presidencialismo de “cooptação”, cuja face mais notória foram os escândalos do mensalão e do petrolão. Foi em reação a isso, aliás, que o eleitorado escolheu em 2018 nomes que prometiam acabar com o toma lá dá cá. Jair Bolsonaro foi o principal deles, e assumiu a Presidência da República anunciando o fim do presidencialismo de coalizão.

O STF e os dados da Abin – Editorial | O Estado de S. Paulo

Decisão liminar reforça que não há nem deve haver atos ou autoridades acima da lei

Há lei no País e ela precisa ser cumprida. Parece um tanto óbvia essa afirmação, mas nos tempos atuais tem sido frequente que o Judiciário precise lembrar ao Executivo federal tal verdade. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) reafirmou que o compartilhamento de dados dos 42 órgãos que integram o Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) – o que inclui Polícia Federal, Receita Federal, Banco Central e Secretaria de Operações Integradas do Ministério da Justiça – com a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) deve respeitar a Constituição e os termos da Lei 9.883/1999, a Lei da Abin. A decisão define que todo e qualquer pedido de compartilhamento de informações da Abin a órgãos do Sisbin deve ser fundamentado, com as razões que explicitem o interesse público da medida.

“Qualquer fornecimento de informação, mesmo entre órgãos públicos, que não cumpra rigores formais do Direito e nem atenda ao interesse público configura abuso de direito e contraria a finalidade legítima posta na Lei da Abin. Mecanismos legais de compartilhamento de dados e informações são postos para abrigar o interesse público, não para abrigar interesses particulares. Solicitação de informações da Abin a órgãos devem ser acompanhados de motivação. Não é possível ter como automática a requisição sem que se saiba por que e para quê”, disse a relatora da ação, ministra Cármen Lúcia.

Segundo os autores da ação, Rede Sustentabilidade e Partido Socialista Brasileiro (PSB), a interpretação dada à Lei 9.883/1999 pelo Poder Executivo tem desrespeitado direitos fundamentais, com trocas indevidas de dados com a Abin. O tema ganhou especial relevância depois que o presidente Jair Bolsonaro editou o Decreto 10.445/2020, no mês passado. O decreto presidencial fez mudanças na estrutura da Abin; entre elas, a ampliação de cargos de confiança e a criação de uma nova entidade, o Centro de Inteligência Nacional.

Delação em xeque – Editorial | Folha de S. Paulo

Arquivamento de inquérito mostra fragilidade das acusações de Palocci

Passados mais de dois anos desde que o ex-ministro Antonio Palocci assinou acordo de colaboração premiada com a Polícia Federal, é possível constatar que o único beneficiado pelo trato foi ele próprio.

O ex-titular da Fazenda e da Casa Civil em administrações petistas saiu da cadeia, foi autorizado pela Justiça a cumprir pena em regime domiciliar e pôde conservar metade do patrimônio acumulado na política antes de sua prisão pela Operação Lava Jato, já descontada a multa que pagou.

Palocci acusou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de fazer acertos com banqueiros e empresários para financiar campanhas do partido e despesas pessoais —e se comprometeu a entregar às autoridades provas para sustentar suas afirmações.

Os depoimentos do ex-ministro fizeram barulho e deram origem a diversos inquéritos ainda em andamento, mas até agora nenhum de seus relatos foi comprovado.

Discurso e prática – Editorial | Folha de S. Paulo

Ministra da Agricultura defende lei florestal, mas governo age na direção oposta

O desmonte promovido nas políticas ambientais degrada a imagem do país e ameaça a economia. Diante da perspectiva de fuga de investimentos externos, de boicote a produtos do agronegócio e dificuldades para a aprovação do acordo entre Mercosul e União Europeia, o governo Jair Bolsonaro parece, enfim, ter ligado o sinal de alerta.

Exemplo disso é a entrevista concedida à Folha pela ministra da Agricultura, Tereza Cristina. A razoabilidade e a moderação por ela esgrimidas, todavia, contrastam com a prática governamental.

Tome-se a questão do desmatamento, que já havia saltado 29,5% em 2019, atingindo o maior índice em uma década, e que, segundo dados preliminares, deve crescer ainda mais neste ano.

Para a ministra, o problema poderia ser sanado por meio da implementação do Código Florestal e da regularização fundiária da Amazônia. É sem dúvida imperativo avançar em ambas as pautas.

Crise reforça a urgência da reforma administrativa – Editorial | Valor Econômico

O governo gasta o equivalente a 13,7% do PIB com pessoal, o dobro das despesas com educação

Enquanto 66 milhões de brasileiros se agoniam pensando em como vão sobreviver quando terminar o pagamento do auxílio emergencial de R$ 600 distribuído pelo governo, que evitou que mergulhassem na miséria no início da pandemia do novo coronavírus, 760 desembargadores de São Paulo pleiteiam ao governo estadual aumento de salários, que giram em média em torno de R$ 39 mil mensais líquidos. Não se discute que não devam ser bem remunerados os desembargadores, mas é falta de sensibilidade reivindicar reajuste de 50% nas despesas de pessoal da categoria, que já são elevadas, em momento de extremas dificuldades para a população e da necessidade de aperto fiscal.

O episódio só reforça os argumentos a favor da necessidade urgente da reforma administrativa. Logo após a aprovação das novas regras da Previdência, no ano passado, a promessa era de que essa reforma seria a próxima. O governo chegou a dizer, no início do ano, que a proposta estava pronta para ser enviada ao Congresso. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, é um de seus apoiadores, embora políticos experientes alertassem que as eleições municipais pudessem ser um empecilho. Os servidores públicos constituem uma categoria forte e bem articulada na defesa de seus interesses. No entanto, o presidente Jair Bolsonaro deu todos os sinais de que pretende empurrar essa tarefa para não se sabe exatamente quando.

Especialistas dizem, porém, que já passou da hora da mudança e que o momento é o ideal, dada a previsão de que mais de um terço dos servidores federais devem se aposentar até 2034. A renovação dos quadros poderia ser feita sob as novas regras, mais racionais e modernas. Apesar de o projeto do governo não ter sido divulgado, um dos detalhes que vazou é que as mudanças só valerão para os novos contratados. Outras alterações incluem o fim da estabilidade, provavelmente com algumas exceções, e a revisão dos métodos de avaliação.

Bolsonaro não tem interesse em privatizar – Editorial | O Globo

Mercado aumenta custo da dívida do país porque quer mais do que promessas de responsabilidade fiscal

Faz menos de uma semana, Jair Bolsonaro reuniu um grupo seleto no gramado à frente do Palácio da Alvorada, para, com Davi Alcolumbre e Rodrigo Maia — presidentes do Senado e da Câmara —, fazer uma profissão de fé conjunta na responsabilidade fiscal e na manutenção do teto dos gastos. Mas apenas discurso não basta. Além do descaso com as reformas, o governo Bolsonaro — coerente com a biografia estatista do presidente — tem manifestado uma incapacidade crônica para tirar do papel seu programa de privatizações.

No curtíssimo prazo, elas ajudariam a cumprir a promessa de respeitar o teto, ao aliviar o perfil de uma dívida em ascensão devido à pandemia. Mais importante que isso, tirariam o poder público de setores que, por mera questão de racionalidade econômica, deveriam ficar a cargo da iniciativa privada. Entre tantos exemplos, não faz sentido uma estatal para fabricar semicondutor, chamado de “chip do boi”, desenvolvido para gerenciar rebanhos. Não deu certo, mas a Ceitec, ligada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, em fase de dissolução, ainda emprega 183 pessoas, segundo revelou O GLOBO.

Caso de menina que sofreu abuso mostra dificuldade de cumprir a lei – Editorial | O Globo

Criança de 10 anos, estuprada desde os 6, teve de viajar de Vitória a Recife para interromper gravidez

A história cruel da menina de 10 anos que engravidou, abusada pelo próprio tio no Espírito Santo, é ainda mais perversa pela dificuldade atávica do Brasil para lidar com o tema e fazer cumprir a lei. O país parece ignorar uma realidade repulsiva, mais comum do que se pensa. Quase 90% dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes ocorrem no ambiente familiar, de acordo com dados apresentados ano passado ao Congresso pela Ouvidoria Nacional do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Se o Brasil falha em proteger crianças e adolescentes, fracassa também em agir nos casos de violência sexual. O episódio da menina é exemplar. Em contraste com outras democracias, a legislação brasileira é restritiva em relação ao aborto. Só o permite em três situações: estupro, quando há risco de vida para a gestante e em caso de feto anencéfalo. Uma gestação aos 10 anos de idade configura estupro incontestável e risco flagrante à vida da mãe. A lei deveria tão somente ser aplicada. Desnecessariamente, contudo, levou-se a questão à Justiça. O juiz que analisou o caso destacou em seu despacho, favorável à interrupção da gravidez, que o pedido era prescindível.

Poesia | Affonso Romano de Sant'Anna - Sobre a atual vergonha de ser brasileiro

Que vergonha, meu Deus! ser brasileiro
e estar crucificado num cruzeiro
erguido num monte de corrupção.
Antes nos matavam de porrada e choque
nas celas da subversão. Agora
nos matam de vergonha e fome
exibindo estatísticas na mão.
Estão zombando de mim. Não acredito.
Debocham a viva voz e por escrito
É abrir jornal, lá vem desgosto.
Cada notícia é um vídeo-tapa no rosto.
Cada vez é mais difícil ser brasileiro.
Cada vez é mais difícil ser cavalo
desse Exu perverso
nesse desgoverno terreiro.
Nunca vi tamanho abuso.
Estou confuso, obtuso,
com a razão em parafuso:
a honestidade saiu de moda
a honra caiu de uso.
De hora em hora a coisa piora:
arruinado o passado,
comprometido o presente,
vai-se o futuro à penhora.
Valei-me Santo Cabral
nessa avessa calmaria
em forma de recessão
e na tempestade da fome
ensinai-me a navegação.
Este é o país do diz e do desdiz,
onde o dito é desmentido
no mesmo instante em que é dito.
Não há lingüista e erudito
que apure o sentido inscrito
nesse discurso invertido.
Aqui o discurso se trunca:
o sim é não. O não, talvez.
O talvez, nunca.
Eis o sinal dos tempos
este o país produtor
que tanto mais produz
tanto mais é devedor.
Um país exportador
que quando mais exporta
mais importante se torna
como país mau pagador.
E, no entanto, há quem julgue
que somos um bloco alegre
do ‘‘Comigo Ninguém Pode’’
quando somos um país de cornos mansos
cuja história vai dar bode.
Dar bode, já que nunca deu bolo,
tão prometido pros pobres
em meio a festas e alarde
onde quem partiu, repartiu
ficou com a maior parte
deixando pobre o Brasil.
Eis uma situação
totalmente pervertida
-- uma nação que é rica
consegue ficar falida,
o ouro brota em nosso peito,
mas mendigamos com a mão,
uma nação encarcerada
que doa a chave ao carcereiro
para ficar na prisão.
Cada povo tem o governo que merece?
Ou cada povo
tem os ladrões a que enriquece?
Cada povo tem os ricos que o enobrecem?
Ou cada povo tem os pulhas
que o empobrecem?
O fato é que cada vez mais
mais se entristece esse povo num rosário
de contas e promessas num sobe e desce de prantos e preces.
C’est n’est pas um pays sérieux!
já dizia o general.
O que somos afinal?
Um país-pererê? folclórico? tropical?
misturando morte e carnaval?
Um povo de degradados?
Filhos de degredados
largados no litoral?
Um povo-macunaíma
sem caráter-nacional?
Por que só nos contos de fada
os pobres fracos vencem os ricos nobres?
Por que os ricos dos países pobres
são pobres perto dos ricos
dos países ricos? Por que
os pobres ricos dos países pobres
não se aliam aos pobres dos países pobres
para enfrentar os ricos dos países ricos,
cada vez mais ricos, mesmo
quando investem nos países pobres?
Espelho, espelho meu!
há um país mais perdido que o meu?
Espelho, espelho meu!
há um governo mais omisso que o meu?
Espelho, espelho meu!
há um povo mais passivo que o meu?
E o espelho respondeu
algo que se perdeu
entre o inferno que padeço
e o desencanto do céu.