quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Opinião do dia - Gilmar Mendes*

O juiz ultrapassou o papel de mero homologador [do acordo de delação] e atuou como parceiro do órgão da acusação na produção de provas que seriam utilizadas como base para a sentença.

Não podemos afirmar que o precedente pelo plenário proíbe qualquer impugnação a provas ilícitas, pois, se o fizermos, inviabilizaremos qualquer tipo de controle de ilegalidades no processo penal. Aqui analisamos a ilicitude de provas produzidas em razão de acordo de colaboração premiada.

O que se discute é a produção de provas pelo colaborador nos processos que tramitam em face dos pacientes desta ação. O foco da impugnação diz respeito à utilização de provas contra os imputados e o modo que tais elementos foram produzidos, a partir de um cenário de acordos e colaborações temerários e claramente questionáveis.

*Gilmar Mendes, em decisão do STF que anulou sentença de Sérgio Moro que condenara um doleiro, O Estado de S. Paulo, 26/8/2020

Merval Pereira - Com qual roupa?

- O Globo

Discute-se no entorno do presidente se ele deve largar de lado a fantasia que usou nos meses recentes e reassumir seu verdadeiro eu, agressivo e desbocado, ou se deve continuar calado, sem se manifestar, como se fosse uma pessoa sensata que pensa antes de falar.

A cautela que manteve desde a prisão de Fabrício Queiroz, recomendada pela imprevisibilidade das consequências, trouxe dividendos para sua melhora de popularidade, ou ela deveu-se apenas ao auxílio emergencial para a Covid-19?

As bravatas pessoais são características dos populistas. Collor já disse que tinha “aquilo roxo”, Trump se vangloria de suas proezas sexuais, Bolsonaro diz que não toma “aditivo” para fazer sexo, Putin aparece a cavalo, com o torso nu, para mostrar o físico de atleta, do qual se orgulha também Bolsonaro - Maçaranduba, que promete “porrada” e chama os críticos de “bundões”.

Cada um lida ou lidou com suas circunstâncias, mas nenhum tentou ser outra pessoa. A personagem “Lulinha, Paz e Amor” foi criada pelo marqueteiro Duda Mendonça para permitir a entrada do candidato do PT nas classes média e alta, que ele não atingia.

Acabou virando verdade, na aparência. Lula confessou certa vez que nascera para vestir bons ternos, se sentia mais à vontade neles do que com o macacão de metalúrgico. Mas Lula estava em campanha desde 1989, e a imagem que vendeu nas disputas que perdeu era seu perfil real, o “sapo barbudo”.

Quando se reinventou, em 2002, ganhou a eleição, para só retornar ao “sapo barbudo” no segundo mandato. Bolsonaro ainda está no primeiro estágio, comendo pão com leite condensado, vestindo camisa de time de futebol, usando sandália Rider, falando uma língua parecida com o português, naquele tom militar que o define.

Rosângela Bittar - Agora um voto, depois o outro

- O Estado de S.Paulo

Nascerá, nas municipais, a temperatura da campanha federal de 2022

O País está a 80 dias das eleições municipais e a dois anos da eleição presidencial. E como eleição não é fetiche mas a única forma de acesso ao poder, não dá para resmungar dúvidas e dificuldades, a única saída é encará-las. Por mais que os eleitos na fornada de 2018 tenham decepcionado e deixado uma aura de desânimo no eleitorado, não se deve fugir do desafio. A excepcionalidade deste ano faz valer a pena, a realidade se impõe com seus agravantes. Entre eles, a evidência de que o pleito favorecerá reeleições, a começar pelos custos da campanha.

Quem está no cargo terá 45 dias a mais de exposição em propaganda oficial da sua administração, com dinheiro público. E um cardápio perfeito de proselitismo ilegal, incluindo as ações assistencialistas impostas pela pandemia. O financiamento próprio dos candidatos ricos é limitado, portanto seu trunfo será relativo. Outra peculiaridade:

menos de mil dos mais de cinco mil municípios têm campanha na televisão, os demais serão invadidos pelos sinais dos vizinhos. E a promessa de ampla campanha virtual exige verba considerável. Desvantagem para quem não está no cargo.

A abstenção eleitoral se acentuará pela pandemia. O adiamento da votação para 15 de novembro, porém, não teve o efeito esperado. Havia a previsão de que, em 45 dias para a frente, o País teria algum controle da doença. Expectativa frustrada. Não há sinais de que até lá será possível voltar às campanhas de rua, com aproximações, passeatas, abraços e apertos de mão. Nem se afastou, também, o risco de redução drástica do comparecimento às seções eleitorais.

Vera Magalhães - Perdemos o trem

- O Estado de S.Paulo

Documentário ‘O Fórum’ mostra Brasil deslocado do resto do mundo

O trem que conduz ativistas, chefes de Estado, jornalistas e empresários à idílica cidade de Davos, nos Alpes suíços, funciona como uma metáfora do caminho que o documentário O Fórum, recém-lançado nas plataformas de streaming, mostra, de um mundo em lenta, mas inexorável transformação. E o Brasil que aparece na tela perdeu o trem e ficou perdido na estação.

Não é só a cena da conversa que mais parece uma brincadeira de telefone sem fio entre Jair Bolsonaro e o ex-vice-presidente norte-americano Al Gore, que viralizou nas redes sociais como um teaser do documentário, que mostra o quão deslocado o País está. São todos os aspectos abordados, da quarta revolução industrial às emergências climáticas. Somos párias, motivo de piada e preocupação por parte dos atores mais relevantes.

O filme tem duas partes. Uma mais otimista mostra um fórum concorrido em 2018, com Donald Trump posando de dono do mundo, Theresa May ainda não derrotada e um sorridente e galante Emmanuel Macron exalando charme pelos corredores. A edição de 2019 é mais melancólica e cercada de ceticismo, após o Brexit, com a crise comercial entre Estados Unidos e China já deflagrada e com Macron cercado pelos coletes amarelos. Nesse cenário, a presença de Bolsonaro é um constrangimento para todos.

Luiz Carlos Azedo - Sai Friedman, entra Samuelson

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“Marinho convenceu Bolsonaro e ganhou a queda de braço com Guedes. Investimentos em habitação, ou seja, na construção civil, têm grande ‘efeito multiplicador’ na economia”

O principal guru do ministro da Economia, Paulo Guedes, é o grande patrono da Chicago School of Monetary Economics: o economista ultraliberal Milton Friedman, nascido e criado no Brooklyn, em Nova York, filho de um casal de judeus imigrantes da Ucrânia. Friedman queria estudar matemática, mas os professores Arthur F. Burns e Homer Jones o influenciaram a estudar economia. Burns, pela dedicação à pesquisa; Jones, porque conseguiu uma bolsa de US$ 300 para ele estudar na Universidade de Chicago, da qual se tornou professor em 1946, por 30 anos. Em 1962, no livro Capitalismo e Liberdade, no qual reuniu suas principais conferências, defendeu a abolição de subsídios agrícolas, tarifas/cotas de importação, controle de aluguéis, salário mínimo, moradia subsidiada, licenciamento profissional, seguridade social, monopólio estatal dos correios, agências regulatórias e alistamento militar obrigatório. Vendeu 500 mil exemplares.

Em 1976, Friedman ganhou o Nobel de Economia, para o qual foi fundamental sua atuação no Chile, como conselheiro dos economistas chilenos egressos da Universidade de Chicago que implantaram as reformas liberais do general Augusto Pinochet, o ditador chileno que havia deposto Salvador Allende, em 1973, equipe da qual o ministro Guedes fez parte. Vem daí a associação de Friedman ao autoritarismo — as reformas somente foram possíveis depois de um banho de sangue —; porém, ele teve uma única conversa com Pinochet. Entretanto, suas palestras fizeram grande sucesso e seus conselhos foram seguidos à risca: cortes rápidos e severos nos gastos do governo para conter a inflação, instituições mais abertas ao comércio internacional e políticas compensatórias para aliviar a vida das classes mais pobres.

Ricardo Noblat - A opção de Bolsonaro pelos mais pobres empareda a oposição

- Blog do Noblat | Veja

O que estará em jogo em 2022

Jair Bolsonaro se elegeu presidente com o voto dos mais ricos. Quer se reeleger com o voto dos mais pobres.

Os ricos o adotaram há dois anos para derrotar o PT. A classe média também, mas ela sempre foi pouco confiável.

Então Bolsonaro sente muito que sua repentina opção preferencial pelos pobres enfraqueça o ajuste fiscal, mas que assim seja.

Ora, Paulo Guedes, que graça haveria em arrumar o Estado para que outro, e não Bolsonaro, possa depois tirar vantagem disso?

No segundo turno da eleição de 2018, Bolsonaro venceu em 97% das cidades mais ricas, e Haddad em 98% das mais pobres.

Nas regiões mais ricas do agronegócio, Bolsonaro conquistou 61,54% dos votos válidos contra 38,46% de Haddad.

Haddad ganhou na maioria dos municípios – 2.810 a 2.760. Ainda assim, Bolsonaro teve 10,7 milhões de votos a mais do que ele.

Houve um tempo em que o voto dos grotões sustentou a Arena, partido da ditadura militar de 64.

E houve um tempo, mais recente, que sustentou quatro governos do PT. Ou melhor: três governos e meio.

O coração dos grotões sempre bateu mais forte pelos governos ou partidos que atenderam suas carências. Natural.

Graças ao auxílio emergencial por conta do Covid-19, a rejeição de Bolsonaro no Nordeste caiu de 52% em junho para 35% agora.

Guedes quis que o auxílio fosse de 200 reais por mês. O Congresso pediu 500. Bolsonaro deu 600.

Elio Gaspari - Por que Queiroz depositou R$ 89 mil?

- O Globo

O MP não tem pressa, só perguntas

Em 2018 Jair Bolsonaro era o presidente eleito quando teve que explicar um depósito de R$ 24 mil feito pelo faz-tudo Fabrício Queiroz na conta de sua mulher. À época ele disse que esse dinheiro se relacionava com uma dívida de R$ 40 mil que o ex-PM tinha com ele.

O senador Flávio Bolsonaro conversou com Queiroz e deu-se por satisfeito: “Ele me relatou uma história bastante plausível e me garantiu que não há nenhuma ilegalidade”.

O vice-presidente eleito Hamilton Mourão acrescentou o essencial elemento de dúvida: “O ex-motorista, que conheço como Queiroz, precisa dizer de onde saiu este dinheiro.(...) Algo tem, aí precisa explicar a transação.”

Passaram-se dois anos, e nada aconteceu de bom para os Bolsonaros. O depósito de R$ 24 mil podia até ser parte da quitação de uma dívida de R$ 40 mil. Mas o ervanário depositado pelos Queiroz foi de R$ 89 mil. Bolsonaro não gosta de ouvir essa pergunta, mas precisa se habituar a conviver com ela. A ideia de “meter a porrada” em quem a faz é inútil, porque ela virá muitas vezes do Ministério Público. Os procuradores não têm pressa, só perguntas, e até hoje os Bolsonaros não contribuíram para o esclarecimento do que seriam seus rolos com Queiroz.

Zeunir Ventura - A pergunta que não cala

- O Globo

Por que mesmo, presidente, Michelle recebeu depósitos de R$ 89 mil de Queiroz?

Nestes últimos dias, incluindo o fim de semana, Bolsonaro voltou a soltar a língua, principalmente contra a imprensa. A um repórter que fez o que ganha para fazer, pergunta, ele respondeu com um “seu safado” e a confissão de que estava com vontade de encher-lhe “a boca na porrada”. A questão tabu, que causou tanta irritação, devia esconder algo de grave: “Presidente, por que sua esposa, Michelle, recebeu depósitos de R$ 89 mil de Queiroz?” (Fabrício Queiroz, como se sabe, é aquele policial ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro, que é investigado pela prática de “rachadinha”, o esquema que consiste em repassar parte do salário ao parlamentar.)

Assim que souberam da reação agressiva do presidente, entidades, associações de classe, personalidades, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e a imprensa internacional criticaram o gesto, além de mais de um milhão de internautas, que compartilharam a pergunta sobre Michelle, ou melhor, Micheque, nas redes sociais.

Bernardo Mello Franco - O palavrão que salvou Deltan

- O Globo

Na fase áurea da Lava-Jato, Deltan Dallagnol enchia auditórios para pontificar contra a corrupção. O procurador virou tribuno e lançou uma campanha para endurecer as leis penais. Queria aumentar as penas e reduzir as hipóteses de prescrição.

“Uma das razões centrais da impunidade é aquilo que a gente chama de prescrição. Prescrição é um palavrão jurídico que significa o cancelamento do caso criminal porque ele demorou muito tempo na Justiça”, dissertou, em outubro de 2016. “Você dá um atestado de boa conduta para o criminoso, o corrupto, como se o crime não tivesse acontecido”, prosseguiu, em entrevista a uma rádio paulista.

Um mês antes, Deltan virou alvo de reclamação no Conselho Nacional do Ministério Público. O motivo foi o PowerPoint em que ele apontou o ex-presidente Lula como “comandante máximo” dos desvios na Petrobras.

Míriam Leitão - Insuportável ar das queimadas

- O Globo

As queimadas destroem a floresta. Além disso, a fumaça tóxica invade pulmões e afeta a vida humana. O estudo divulgado hoje procurou medir isso com a ajuda de especialistas em saúde e qualidade do ar. Em agosto de 2019, três milhões de brasileiros foram expostos ao material particulado fino, extremamente nocivo. Em setembro, foram 4,5 milhões. Este ano o problema está aumentando. Destruir a floresta é insensatez por ser a perda de patrimônio para o lucro de criminosos, mas ainda há o risco de intoxicação pelo ar.

A Human Rights Watch, o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia fizeram juntos o estudo para identificar internações e atendimentos na rede de saúde pública na Amazônia como efeito das queimadas do ano passado. Houve pelo menos 2.195 internações devido a doenças respiratórias que foram atribuídas às queimadas. Dessas, 467 (21%) foram de bebês de zero a 12 meses e 1.080 foram de pessoas com mais de 60 anos. Ao todo ficaram 6.698 dias hospitalizados para tratar os efeitos dessa exposição à poluição das queimadas.

O esforço das organizações para identificar, medir, mostrar o impacto na população é enorme, mas não consegue quantificar completamente. Seus autores lembram no documento que acabaram de divulgar que muita gente não tem sequer acesso à rede hospitalar.

É mais pesado para os indígenas, porque afeta a sua saúde e sobrevivência, já que eles dependem dos produtos da floresta para comer e viver. Ontem mesmo publiquei no blog a notícia de que líderes indígenas Awá Guajá e Ka’apor em áudios e fotos enviados para o antropólogo Uirá Garcia, professor da Universidade Federal de São Paulo, relatam a invasão das terras indígenas por fazendeiros, madeireiros, estaqueiros, traficantes. Nas fotos se vê o gado pastando em área que era floresta. O fogo faz parte do ciclo do crime. Os grileiros invadem, tiram as melhores madeiras, queimam o resto, e depois preparam o pasto.

Hélio Schwartsman - As regras do jogo

- Folha de S. Paulo

No país da gambiarra, nem o Legislativo tem apreço pela previsibilidade das regras

O forte da democracia não é assegurar a escolha de líderes competentes, do que dão testemunho Jair Bolsonaro e Donald Trump, para ficarmos em dois casos gritantes e recentes. É sempre possível comprar os eleitores com programas populistas ou iludi-los com promessas falsas. E isso não é uma falha circunstancial, mas uma característica do sistema. Não dá para livrar-se dela sem se livrar da própria democracia.

Ainda assim, ela é o melhor regime político de que se tem notícia. A aparente contradição se dissolve quando analisamos o pacote de instituições que costumam acompanhar as democracias. Falo de coisas como livre iniciativa, liberdade de expressão, Judiciário independente e previsibilidade das regras do jogo.

Ruy Castro* - Bolsonaro infecta pelo ouvido

- Folha de S. Paulo

Como será dizer 'bundão' e 'encher tua boca' com porrada em libras?

Jair Bolsonaro não se contenta em ser visto como desumano, mentiroso, sem compostura, incapaz de governar, conivente com a corrupção, destruidor do meio ambiente, defensor da tortura, amigo de milicianos, subornador de militares, golpista, genocida e cínico. Também é uma ameaça pessoal à saúde pública. Por seu passado de atleta —como ele define sua carreira de terrorista no Exército—, gaba-se de ser inexpugnável à Covid, chamando de bundões os 115 mil brasileiros que já morreram e quem não tem um serviço médico como o dele, pago com o nosso dinheiro.

Suspeita-se de que, ao circular infectado e sem máscara pelo país, Bolsonaro contaminou uma multidão. A prova é a de que as pessoas ao seu redor, constrangidas a não usar máscara, vivem pegando a doença —só os funcionários do Planalto a contraem à média de três por dia. O mais novo infectado é o seu filho Flávio “Queiroz” Bolsonaro. Mas isso não é causa de preocupação porque, por ser filho de quem é, ele está proibido de reagir como um bundão.

Vinicius Torres Freire – Bolsonaro bateu no teto e se debate

- Folha de S. Paulo

Falta dinheiro para plano verde-amarelo; ideia é mexer em servidores e vinculações

Jair Bolsonaro quer mais do que dobrar a despesa com o Bolsa Família, associar o programa a um plano de emprego e rebatizá-lo de “Renda Brasil” ou de “Alguma Coisa Verde Amarela”. Não há dinheiro.

Assim, o governo faz um psicodrama fiscal em público: “Bolsonaro quer”; “heroica equipe econômica se debate” para encontrar o tutu. Não vai achar a não ser que:

1) derrube o teto de gastos;

2) corte salários de servidores: vai ser a próxima ofensiva, que tem apoio de Rodrigo Maia e ganha ares de campanha;

3) acabe com vinculações e indexação de despesas previstas na Constituição (como o piso para saúde e educação ou o reajuste do salário mínimo pela inflação);

Dado o teto de gastos, apenas é possível aumentar a despesa com o Bolsa Família Amarelo arrumando dinheiro em outra parte do Orçamento (zerando o gasto em obras ou dando cabo de programas sociais como o abono salarial).

Mesmo assim, fica-se longe do Renda Brasil de Bolsonaro: R$ 300 mensais para 20 milhões de famílias daria um aumento de despesa de quase R$ 40 bilhões. Por ora, derrubando o abono e algo mais, haveria pouco mais de metade desse dinheiro.

Conrado Hübner Mendes* - #UsePalavraCerta pela Democracia

- Folha de S. Paulo

Quem chama silêncio de moderação reinventa significado de moderação na política

Quando um jornal se compromete a estar "a serviço da democracia" e promove a campanha #UseAmarelo pela Democracia, ele nos convida a lê-lo a partir do mais alto padrão de excelência jornalística. O sarrafo democrático é alto.

Quando título de editorial —"Jair Rousseff"— aglutina os nomes de mulher torturada e de apologista da tortura para comparar suas políticas fiscais, não comete simples falha retórica por trás de provocação marota. Opções retóricas não são moralmente neutras. Um jornal que rechaça o autoritarismo não as subestima nem confunde retórica com perfumaria.

Se palavras às vezes carregam violência, podem também trazer indolência descritiva. Recente surto de miopia tem suavizado Bolsonaro e contaminado atores da política institucional. Dias atrás o presidente traiu seus parceiros ao ameaçar "encher de porrada" a boca de um jornalista que perguntava sobre o intercurso financeiro de Queiroz e Michelle.

Chocado com o destempero, João Doria concluiu que "Bolsonaro voltou a ser Bolsonaro". Felipe Santa Cruz, presidente da OAB, ponderou que o presidente "vinha muito bem" e lamentou "volta do perfil autoritário". O PSDB de Mário Covas e Franco Montoro e a OAB de Raymundo Faoro e Thomaz Bastos ficaram num passado remoto. Sobrou a caricatura.

Pela contagem da jornalista Malu Gaspar, o Brasil passou 66 dias sem escatologia verbal presidencial. Da prisão de Queiroz se fez o silêncio, coincidência do destino. Do ponto de vista político, foi só isso mesmo: 66 dias sem escatologia verbal. Alguns fantasiaram que o presidente imergiu em processo de autoconhecimento e se enterneceu.

Fernando Exman - A fórmula bolsonarista em busca da reeleição

- Valor Econômico

Desafio é conseguir manter a bandeira anticorrupção

O governo vai avançando, no discurso e na prática, em seu plano de ampliar o eleitorado disposto a reeleger o presidente Jair Bolsonaro.

A operação se dá em duas frentes e a primeira é voltada a expandir a base, além dos redutos sob a influência de aliados do Palácio do Planalto e da população ao alcance das novas políticas públicas federais. Em segundo lugar, a tarefa é evitar que eventuais desilusões com a atual administração aproximem os chamados “bolsonaristas raiz” de uma candidatura alternativa no campo conservador nos costumes, liberal na economia e identificada com o combate à corrupção.

No círculo mais próximo do presidente está claro que a aversão à política e o desgaste dos partidos com seguidos escândalos de corrupção, principalmente os protagonizados pelo PT, ajudaram-no a subir a rampa do Planalto. O desafio, a partir de agora, é manter a imagem do governo preservada, ao mesmo tempo em que o Executivo tenta se beneficiar da ampliação de sua base no Parlamento por meio de alianças com algumas dessas mesmas siglas.

A aproximação dos partidos do Centrão também pode facilitar, na visão de integrantes do governo, o trânsito de Bolsonaro nos redutos eleitorais nordestinos. Isso tende a beneficiar ambas as partes, uma vez que em 2018 ele se saiu comparativamente bem em praticamente todos os segmentos do eleitorado, mas pode melhorar muito seu desempenho na região.

Cristiano Romero - Projeto de nação sem Estado para executá-lo

- Valor Econômico

Constituição de 1988 lançou um projeto de nação

A sociedade brasileira deu um passo enorme em seu processo civilizador ao incluir em sua Constituição direitos e garantias fundamentais que, até então, eram relevadas pelo Estado brasileiro.
Direitos e garantias fundamentais têm como objetivo proteger o cidadão da ação do Estado, além de assegurar o mínimo para que todas as pessoas que vivem neste imenso território, brasileiras e estrangeiras, tenham uma vida digna.

A Constituição de 1988 se inspirou claramente na Declaração dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), anunciada em 1948, fruto do trauma provocado pela Segunda Guerra Mundial. Aquele conflito decorreu da ascensão de movimentos e grupos políticos extremistas de direita, cujo ideário rejeitava os princípios da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, escrita durante a Revolução Francesa de 1789, a primeira tentativa de universalização dos direitos humanos.

O objetivo da Carta Magna brasileira foi conferir dignidade à vida humana e proteção dos indivíduos frente à atuação do Estado, que é obrigado a garantir e prezar por tais direitos e garantias.

Não é fácil a luta das sociedades contra o absolutismo de grupos políticos absolutistas e de Estados fundados em princípios autoritários.

Cristovam Buarque* - Última trincheira da escravidão

- Correio Brasiliense, 25/08/2020

A escravidão era aceita tão naturalmente, que nem os escravos lutavam pela Abolição; alguns reagiam, mas sem imaginar um mundo em que brancos e negros tivessem os mesmos direitos, fugiam do inferno em que viviam, mas sem imaginar o paraíso da liberdade. Por isso, alguns historiadores dizem que havia escravos até nos quilombos. Intelectuais, políticos, padres, empresários, trabalhadores, viam a escravidão dos negros com a mesma naturalidade como hoje vemos a desigualdade na qualidade da educação, conforme a renda e o endereço da criança.

Demorou para surgirem reações contra maus tratos que sofriam os escravos, tais como a proibição do tráfico, o ventre livre, a liberdade dos sexagenários, mas sem tocar na estrutura escravocrata. Da mesma maneira, nas últimas décadas implantamos medidas favoráveis à educação pública, mas sem a meta de assegurar que o filho do pobre tenha acesso à mesma escola do filho do rico.

A defesa da Abolição só surgiu depois de três séculos de escravidão inspirada desde o exterior, e sob a desconfiança geral da sociedade: por ser vista como uma utopia impossível, desnecessária, contra a natureza das coisas e ameaçadora do estabelecimento social. Os humanistas que eram contra os maus tratos não conseguiam ver a possibilidade, nem a razão, para o fim do sistema arraigado sob visão hegemônica de que a desigualdade entre raças era natural, como hoje é aceita a desigualdade educacional por renda.

Até o final da luta, a bandeira da Abolição foi carregada por poucos. A trincheira contra ela tentou adiar a data e indenizar os donos, mas perdeu. Mesmo assim, quando ela chegou, os não-escravos não aceitaram dar os mesmos direitos aos ex-escravos e seus filhos, negando-lhes terra e escola. Continua resistindo na última trincheira da escravidão: a escola como privilégio para poucos, ricos, na maior parte brancos. A luta atual pela igualdade na qualidade da educação tem este mesmo lento ritmo. As pessoas começam a ter sentimentos de vergonha pelo atraso educacional no país, a perceber que a evolução tecnológica está exigindo conhecimento, mas sem aceitar a ideia de que a escola deve ser a mesma para ricos ou pobres.

Falta oposição – Editorial | O Estado de S. Paulo

Não se vislumbra uma atuação política da oposição que alcance de fato o cidadão

A melhora da aprovação popular do presidente Jair Bolsonaro, registrada por pesquisa recente do Datafolha, evidenciou não apenas uma preocupante indiferença de parte da população com valores fundamentais – a vida, a democracia e a lei. Ela escancarou uma vez mais a ausência de oposição no País. Há um presidente da República que despreza a lei e os fatos, que debocha da civilidade e do bom senso, que contraria solenemente suas promessas de campanha e, mesmo com tudo isso, a oposição simplesmente não se apresenta.

Certamente, é possível observar, em várias esferas da sociedade, uma atividade de crítica e oposição ao governo de Jair Bolsonaro. Mas não se vislumbra – eis a grande carência – uma atuação política da oposição, em especial no Congresso e a partir do Congresso, que alcance de fato o cidadão. Com isso, o presidente da República desfruta de uma situação peculiar. São cada vez mais evidentes a inépcia e o desinteresse de Jair Bolsonaro pela arte de governar. No entanto, a despeito de tudo isso, cresce o apoio popular a ele.

A omissão da oposição se dá de diversos modos. Por exemplo, vários partidos têm se dedicado a contrapor-se ao governo federal por meio de demandas judiciais. Desde o início de 2019, cresceu significativamente o número de ações no Supremo Tribunal Federal (STF) contra políticas do Palácio do Planalto.

A reação do PT ao avanço de Bolsonaro –Editorial | O Globo

Bolsonarismo no Nordeste força partido a escolher se entra numa aliança ampla pela democracia

Bolsonaro está fazendo com êxito o que os tucanos jamais conseguiram — atacar o PT em sua fortaleza do Nordeste. É de lá que tem vindo o apoio responsável pela queda da rejeição ao presidente. Entre os nordestinos, pelo último Datafolha, ela caiu de 52%, em junho, para 35%, na primeira quinzena de agosto. Há indicativos de que Bolsonaro passou a atrair, mesmo fora do Nordeste, os pobres que têm sido eleitores cativos do PT ao longo de várias eleições.

Assim como Lula e PT se tornaram sinônimos de Bolsa Família e programas sociais, começa a acontecer a favor de Bolsonaro algo semelhante. Com o PT em descenso e Lula distante dos holofotes políticos, as famílias pobres nordestinas encontraram no capitão alguém para substituir seu protetor. E de maneira fortuita, pois foi a Covid-19 que ajudou Bolsonaro a descobrir o uso deletério do populismo de Estado para garimpar voto na pobreza.

O discurso da responsabilidade fiscal tende, em tal contexto, a ficar para trás. Só o gasto previsto para os primeiros três meses do necessário auxílio emergencial de R$ 600 beira R$ 152 bilhões. O benefício foi prorrogado para agosto e setembro, e ainda haverá extensão até dezembro, como quer Bolsonaro, por um valor mais alto que o defendido pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. O custo da demagogia recém-descoberta irá às nuvens nas asas do Renda Brasil, um Bolsa Família vitaminado, para Bolsonaro chamar de seu.

A volta do emprego – Editorial | Folha de S. Paulo

Criação de vagas em julho é bom começo, mas vigor da retomada segue incerto

A volta da criação de empregos com carteira assinada em julho foi uma rara boa notícia na pandemia. A abertura de 131 mil postos sinaliza que uma retomada econômica pode ganhar corpo ao longo do segundo semestre, conforme prossiga a volta gradual das atividades.

A levar em conta a experiência internacional, é razoável imaginar uma aceleração das contratações nos próximos meses, depois da perda de 1,1 milhão de vagas acumulada entre março e junho.

Embora não esteja clara a perspectiva de uma retração geral da Covid-19, é perceptível o retorno de setores menos afetados pelas restrições de contato social.

Conforme os dados parciais de junho, cerca de metade da queda da atividade já se encontra revertida. As projeções para o ano vêm melhorando e apontam para retração do Produto Interno Bruto próxima dos 5%, menos devastadora que a temida há algumas semanas.

Está em curso uma certa descompressão, que confere uma impressão de retomada rápida nos momentos iniciais. Tomar o início como tendência seria precipitado, contudo. Restam muitas incertezas, a começar pela provável redução do valor do auxílio emergencial a partir de outubro.

O programa foi bem-sucedido em defender a renda e o consumo de trabalhadores informais e famílias pobres em geral, e não se sabe se a economia terá vigor para compensar a progressiva retirada de transferências governamentais.

O capital em fuga – Editorial | O Estado de S. Paulo

A saída de capital pode ser sinal de sérios problemas, presentes ou prováveis. No Brasil ocorrem os dois casos, mas o governo olha para outro lado

A fuga de capitais é indisfarçável. Algo está assustando os investidores. O Brasil perdeu US$ 30,6 bilhões de janeiro a julho, tirados de aplicações em fundos de investimento, ações e títulos de dívida. O movimento se inverteu. Um ano antes tinha havido entrada líquida de US$ 14,1 bilhões - diferença entre ingressos e saídas. Em 12 meses a perda líquida chegou a US$ 52,3 bilhões. O resultado positivo de julho, de US$ 885 milhões, pouco pesou nessas contas. Os dados estão no relatório do setor externo recém-divulgado pelo Banco Central (BC). As fortes oscilações do dólar - cerca de 7,5% só nos últimos 30 dias - continuam refletindo a insegurança de quem participa do dia a dia do mercado de papéis.

“Que bom, que vá embora”, disse o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, comentando a fuga do capital especulativo. “Nos interessa o capital para investir em projetos de médio e de longo prazos, que gerem emprego, renda”, acrescentou. Mas o mundo é bem menos simples. A saída do capital especulativo pode ser um sinal de sérios problemas, presentes ou prováveis. No Brasil ocorrem os dois casos, mas o presidente e a maior parte de seus auxiliares continuam olhando para outro lado.

Os problemas apenas entrevistos já são bastante graves para estimular a fuga de dólares e enfraquecer o mercado de capitais. Há muita insegurança quanto ao futuro das contas oficiais e, de modo especial, da dívida pública. Ao reconhecer o estado de calamidade, o Congresso autorizou ações excepcionais até o fim do ano. Mas a retomada do ajuste a partir de janeiro continua incerta.

Coisas demais no plano de ‘big bang’ verde-amarelo – Editorial | Valor Econômico

A primeira CPMF foi embalada em nobre objetivo, custear a saúde, que continua até hoje subfinanciada

O presidente Jair Bolsonaro não tem programa social, nunca se preocupou com isso e agora terá um para aproveitar oportunidades. Não apresentou proposta de reforma tributária, e, fora das discussões avançadas no Congresso, sugere uma redentora contribuição sobre transações que, afinal, permitiria ir além do bem-sucedido Bolsa Família e desonerar a folha de pagamentos - um “Big Bang” para evitar a implosão do governo por performances ultrajantes de Bolsonaro, que se recusa a explicar por que Queiroz depositou R$ 89 mil na conta de Michelle.

Com a melhoria da perspectiva eleitoral do presidente, descoberta por acaso com o pagamento do auxílio emergencial - o triplo do valor considerado justo pelo ministro Paulo Guedes -, gesta-se desta vez mais um plano que poderia pavimentar o caminho para a reeleição de Bolsonaro. Como outros planos de ocasião, é um ajuntamento de propostas que ficaram pelo meio do caminho e nunca foram executadas.

Haverá um Pró-Brasil, um Renda Brasil, uma Carteira Verde e uma Casa Verde Amarela e essa prodigalidade patrioteira convive com a realidade singela da pindaíba fiscal - não há dinheiro para eles. É importante ampliar o Bolsa Família e rearrumar a rede de proteção social, de forma a torná-la mais eficaz e abrangente. Mas a motivação eleitoral não é boa conselheira. A improvisação e a pressa trazem o risco de que pouca coisa do que será anunciado será cumprido, ou até mesmo nada.

Guedes se acostumou a anunciar objetivos mirabolantes que não se consumam - como o trilhão de reais que viriam da privatização, ou outro trilhão de reais com a venda de imóveis da União. Seu estilo de “tudo ao mesmo tempo agora” se revelou infrutífero e empecilho às reformas, apesar de ele ser favorável a elas e o presidente, não.

Bolsonaro nunca teve preocupações sociais, mas seu pendor populista agora lhe diz que os R$ 247 do programa de renda mínima sugerido por Guedes é pouco dinheiro. O ministro da Economia tampouco gastou muito tempo no assunto até a pandemia. E não tem interesse em apresentar um plano social sem acoplá-lo a uma ampla desoneração da folha de pagamentos - nos empregos na Carteira Verde Amarela assim como nas vagas que serão a “porta de saída” imaginada para o Renda Brasil.

A desoneração também cumpre papel fundamental no Pró-Brasil para os empregos ofertados com até, provavelmente, 1,5 salário mínimo. Acima desta faixa, ainda não definida, a contribuição previdenciária patronal cairia de 20% para 15% ou 10%. No meio disso tudo, haveria mudança da faixa de isenção do Imposto de Renda, de R$ 1,9 mil para R$ 3 mil e o fim do IPI para a linha branca.

Poesia | João Cabral de Melo Neto - A lição de poesia

1. Toda a manhã consumida como um sol imóvel
diante da folha em branco:
princípio do mundo, lua nova.

Já não podias desenhar
sequer uma linha;
um nome, sequer uma flor
desabrochava no verão da mesa:

nem no meio-dia iluminado,
cada dia comprado,
do papel, que pode aceitar,
contudo, qualquer mundo.

2. A noite inteira o poeta
em sua mesa, tentando
salvar da morte os monstros
germinados em seu tinteiro.

Monstros, bichos, fantasmas
de palavras, circulando,
urinando sobre o papel,
sujando-o com seu carvão.

Carvão de lápis, carvão
da idéia fixa, carvão
da emoção extinta, carvão
consumido nos sonhos.

3. A luta branca sobre o papel
que o poeta evita,
luta branca onde corre o sangue
de suas veias de água salgada.

A física do susto percebida
entre os gestos diários;
susto das coisas jamais pousadas
porém imóveis - naturezas vivas.

E as vinte palavras recolhidas
as águas salgadas do poeta
e de que se servirá o poeta
em sua máquina útil.

Vinte palavras sempre as mesmas
de que conhece o funcionamento,
a evaporação, a densidade
menor que a do ar.


- João Cabral de Melo Neto, in “Melhores Poemas de João Cabral de Melo Neto". [Seleção Antônio Carlos Secchin], São Paulo: Global Editora, 8ª ed. pag. 22-23.