terça-feira, 15 de setembro de 2020

Merval Pereira - A política por trás

- O Globo

Foi o vice-presidente Hamilton Mourão quem candidamente definiu a situação: a decisão econômica é fácil, mas “tem política por trás disso”. Falava do debate sobre a posição do presidente Bolsonaro a respeito de uma lei aprovada pelo Congresso que anistiava multas e dívidas previdenciárias de igrejas evangélicas.

O presidente acabou vetando parcialmente o projeto, no que se refere às contribuições sobre lucros das igrejas, mas sancionou a isenção sobre os salários dos pastores, a chamada “prebenda”, que ganhou na linguagem popular o sentido de “sinecura”.

No Brasil, o catolicismo era a religião oficial do Estado, que a subvencionava, e as demais religiões eram proibidas pela Constituição de 1824. A separação entre a Igreja e o Estado foi efetivada por decreto em 7 de janeiro de 1890, e oficializada na Constituição de 1891.

A Constituição de 1988 proíbe aos entes federativos "estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento, ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público."

Por incrível que pareça, regredimos no debate político à época em que religião e política se misturavam, sem o necessário firewall. O mais vergonhoso é que os artigos sobre as dívidas das igrejas foram incluídos em um projeto que falava de precatórios para financiar recursos para o combate à Covid-19 pelo deputado federal David Soares, filho do missionário R.R. Soares, fundador da Igreja Internacional da Graça de Deus, uma dissidência da Igreja Universal do Reino de Deus, de seu cunhado Edir Macedo.

Esse tipo de manobra é chamado de “jabuti” e é largamente utilizada pelos mais diversos governos para resolver questões que nada têm a ver com o teor do projeto em si, a até de medidas provisórias. Como o Congresso não rejeita esse tipo de ilegalidade e, como agora, se aproveita dela em benefício próprio,seguimos adiante como se nada houvesse.

José Casado - Nova maioria bolsonarista

- O Globo

Sem caixa, o governo terá de escolher beneficiários

O relógio marcava 0h32m do 1º de abril quando Jair Bolsonaro escreveu um dos seus primeiros tuítes: “O Bolsa-farelo (família) vai manter esta turma no Poder”. Comentava a saída de Dilma Rousseff da Casa Civil para se candidatar à sucessão de Lula.

Nove anos depois, Bolsonaro está criando o próprio “Bolsa-farelo (família)”. Acredita ser a melhor cartada para viabilizar a reeleição em 2022. Numa trapaça da história, repete Lula, que, em 2005, driblou os efeitos do mensalão e abriu caminho ao novo mandato com o Bolsa Família.

Desde julho, o Planalto recebe pesquisas indicando a formação de nova maioria (um terço) na base eleitoral bolsonarista. É composta por pobres, beneficiários do “auxílio emergencial”, residentes em pequenas e médias cidades do Norte e do Nordeste. Substitui a fatia do eleitorado de classe média, perdido nas metrópoles.

É adesão com discernimento. Quase metade responsabiliza o presidente, mais do que governadores e prefeitos, pela fragilidade do país na pandemia. No rastro do seu negacionismo já se contam 132 mil mortos.

Há, porém, claro respaldo a Bolsonaro, ancorado na expectativa de continuidade da ajuda. Os pobres temem desemprego e fome na crise do pós-pandemia.

Carlos Andreazza - De mal (Toffoli) a pior (Fux)?

- O Globo

STF virou espécie de tribunal de pequenas causas políticas e fulanizadas

Poderá não ser ruim a presidência de um ministro ruim? Toffoli nunca foi um bom; jamais um guardião da Constituição. Nem jurista respeitável. Tampouco um garantista, categoria na qual vai incluído. Talvez seja a própria definição individual da biruta em que se transformou o Supremo, corte constitucional que tem orientado sua posição ao ritmo e ao norte dos ventos de ocasião — a própria definição dos dois anos de Toffoli à frente do STF.

Período que poderia ser ilustrado pelo modo como — defendendo, com ardor, o sigilo de dados fiscais — o então presidente do Supremo mandou suspender casos criminais baseados em informações de órgãos de controle e, pouco depois, de repente, afrouxando a convicção, voltou atrás. Também ele, Toffoli, “editor de um país inteiro”, entre os maiores responsáveis pelo recrudescimento da febre monocrática que converteu aquela corte em matriz da insegurança jurídica no Brasil e, pois, numa espécie de tribunal de pequenas causas políticas e fulanizadas.

Poucos constrangimentos públicos serão mais vergonhosos do que a maneira como as partes se acostumaram a usar os plantões judiciários no STF, sabedores de como se manifestaria cada uma das eminências a respeito dos temas de interesse — e aproveitando a janela para obter a canetada do plantonista da vez.

Esse recurso oportunista foi explorado ao estado da arte na gestão de Toffoli. Gestão que tem como marca maior aquele inquérito viciado, dito das fake news, de cujo bojo sairia, entre outras arbitrariedades, a censura à revista “Crusoé”. Toffoli foi o formulador de um inquérito em que o tribunal é vítima, investigador e julgador. Inquérito que deriva de o ministro ser um agente político com poderes de juiz.

Luiz Carlos Azedo - Base em desalinho

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

Com o congelamento dos reajustes das aposentadoria por dois anos, proposta da equipe econômica, todos os velhinhos pagariam a conta da reeleição de Bolsonaro antecipadamente

O Palácio do Planalto tenta ganhar tempo para reagrupar sua base parlamentar no Congresso e evitar a derrubada do veto do presidente Jair Bolsonaro à prorrogação da desoneração das folhas de pagamentos de empresas de 17 setores da economia, até o final de 2021. É mais ou menos como convidar os perus para a festa de Natal, porque não é somente o presidente da República que está de olho na própria reeleição, os parlamentares federais estão com um olho nas eleições municipais e outro na preservação dos respectivos mandatos em 2022. Por essa razão, a apreciação do veto foi adiada para a próxima semana, numa articulação do líder do governo no Congresso, senador Eduardo Gomes (MDB-TO).

Os setores beneficiados pelas desonerações são os mais atingidos pela pandemia, entre os quais os de call center, tecnologia da informação, transporte, construção civil, têxtil e comunicação, que empregam em torno de 6 milhões de trabalhadores com carteira assinada. O objetivo das desonerações foi preservar os empregos do setor. Desde a aprovação da prorrogação, o governo manobra para evitar a votação do veto, que é muito difícil de ser mantido. Mais do que, por exemplo, o perdão das dívidas das igrejas evangélicas, que Bolsonaro vetou no domingo, pedindo ao mesmo tempo que seus aliados derrubassem o veto. A ambiguidade do presidente da República nessa matéria vale também para as desonerações, porque Bolsonaro já não consegue esconder as dificuldades que tem para contrariar seus eleitores em matéria de responsabilidade fiscal.

O veto só não foi derrubado ainda porque o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), tem colaborado com o Palácio do Planalto, evitando pautar a matéria. Alcolumbre é candidato à reeleição no cargo, o que é vedado pela Constituição, mas trabalha para emendá-la. A reeleição não é permitida na mesma legislatura. Outros presidentes da Casa também tiveram a mesma ambição, sem sucesso, até mesmo o ex-presidente José Sarney, que foi o presidente do Senado o mais poderoso desde a redemocratização. No momento, o grande pretexto para o adiamento são as convenções eleitorais nos municípios, que de fato estão mobilizando senadores e deputados.

Ricardo Noblat - O que confere sentido às aparentes ações desconexas de Bolsonaro

- Blog do Noblat | Veja

Candidato a pai dos pobres, sem desprezo aos ricos

Algum sentido deve fazer o presidente da República vetar parte de uma lei aprovada pelo Congresso e recomendar a derrubada do seu veto, a Amazônia e o Pantanal arderem em chamas e o orçamento do Ministério do Meio Ambiente acabar reduzido, a pandemia ainda infectar e matar milhares de brasileiros e um general especialista em logística ser nomeado ministro da Saúde.

Qual sentido? É tentador concluir que o único sentido capaz de dar sentido a tantos passos em contrário é o desejo do presidente Jair Bolsonaro de se reeleger daqui a dois anos. Desejo supremo que orienta todas as suas ações. Não importa o mal que muitas delas causem ao país para sempre, desde que algum bem faça a Bolsonaro. Reeleição acima de tudo, só abaixo de Deus – e olhe lá!

O presidente vetou o trecho da lei que isentava as igrejas da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido e anulava as multas já aplicadas pelo não pagamento dessa contribuição. Se não o fizesse, se arriscaria a ser acusado por crime de responsabilidade ao desrespeitar regras do Orçamento para a concessão de benefício tributário. E o que ele fez em seguida?

Recomendou por escrito a deputados e senadores que derrubem o veto. Disse que se ainda fosse deputado era isso o que faria. Jogada esperta para livrar-se do desgaste de uma decisão que desagradou os líderes religiosos que o apoiam. Se sua recomendação não for atendida, a culpa será do Congresso. Se for atendida, ele lucrará à custa do rombo de 1 bilhão de reais a ser produzido no Orçamento.

Eliane Cantanhêde - E se Joe Biden vencer?

- O Estado de S.Paulo

Na ONU, Bolsonaro vai fazer dobradinha com Trump e listar os ‘sucessos’ do Brasil

O que pretende o presidente Jair Bolsonaro ao abrir, na próxima terça-feira, por videoconferência, a Assembleia-Geral da ONU? Defender os interesses nacionais, ou fazer o jogo dos Estados Unidos? Seguir a regra internacional de não ingerência em assuntos políticos de outros países, ou reforçar nas entrelinhas a campanha à reeleição de Donald Trump? Badalar o Brasil e seu enorme potencial, ou o seu governo e ele próprio?

Essas perguntas podem parecer sem sentido, pois os presidentes de todas as democracias usam os palcos internacionais para defender os interesses dos seus países. Mas tudo é peculiar com Bolsonaro, inclusive na política externa. Para piorar as coisas – e as expectativas – Trump falará logo depois do “amigo” brasileiro. Ora, ora, se não vai pintar uma dobradinha entre os dois, a um mês e meio da eleição americana...

O tema da assembleia-geral deste ano é multilateralismo, o que ajuda o pas-de-deux, com Trump e Bolsonaro metendo o sarrafo em organizações internacionais fundamentais para reduzir a desigualdade, ainda mais aguda na pandemia, entre regiões, entre países e nos próprios países. Ambos tendem a criticar a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização Mundial do Comércio (OMC) e, por que não?, a própria ONU e seus organismos de direitos humanos e meio ambiente.

Cristina Serra - Lula não pode ser 'cancelado'

- Folha de S. Paulo

O petista está de volta, e isso é uma boa notícia para a democracia

No vídeo que gravou para as redes sociais no dia da Independência, Lula deu a partida para 2022. O ex-presidente percebeu a movimentação do adversário no terreno que lhe é (ou era ?) favorável, o Nordeste. E está ciente das agruras do PT em ter candidatos competitivos e/ou estabelecer alianças para as eleições municipais que se aproximam.

É muito difícil saber, hoje, se o petista conseguirá candidatar-se a qualquer cargo que seja, considerando a corrida de obstáculos nos tribunais. Um dos maiores entraves é o julgamento do pedido de suspeição de Sergio Moro, o juiz-acusador que o tirou do jogo na eleição de 2018 e virou ministro da “justiça” da extrema direita violenta que nos governa.

O julgamento sobre a suspeição de Moro na Segunda Turma do STF começou em dezembro de 2018 e empacou no “perdido de vista” feito por Gilmar Mendes. O desfecho afigura-se imprevisível com a aposentadoria do ministro Celso de Mello daqui a mês e meio.

Joel Pinheiro da Fonseca* - Preconceito anacrônico

- Folha de S. Paulo

Tentativa de apagar pensadores por suas limitações nos empurra para tribalismo estreito

A Universidade de Edimburgo, na Escócia, decidiu mudar o nome da torre David Hume, que homenageia um dos maiores filósofos de todos os tempos (e também escocês). O crime de Hume, previsivelmente, é não ter sido um progressista do século 21. As passagens estão lá e não restam dúvidas: Hume era racista, acreditava que os brancos eram intelectualmente superiores.

Ocorre, contudo, que as diferenças entre raças não são um tema central de Hume. Pelo contrário, aparecem em notas laterais irrelevantes para sua contribuição ao pensamento e que jamais o ocuparam longamente. Eram, ademais, bastante comuns em sua época.

O racismo, diga-se de passagem, não foi privilégio apenas de brancos europeus. Exemplos de preconceito racial em outros povos são vários. Vejam o racismo do estudioso islâmico Ibne Caldune —século 14— que se referia dessa maneira a um povo supostamente inferior: “O país dos francos é situado na parte fria ao norte do mundo. O clima natural desta terra produziria, naturalmente, pessoas burras e ignorantes como animais, e muitos, como os eslavos, não têm religião e se vestem com peles”. Sua obra permanece como um esforço pioneiro e muito rico de pensamento sociológico.

“Podemos ler os escritos de Hume e aprender sobre eles no devido contexto, mas não há motivo para que o prédio mais alto do campus deva receber seu nome”, diz a estudante Elizabeth Lund no abaixo-assinado que motivou a mudança do nome. Não há motivo para homenagear um dos maiores filósofos da História e orgulho da Escócia? Assim como europeus atuais podem ignorar o preconceito de Ibne Caldune e honrá-lo por sua grandeza, qualquer pessoa pode admirar o pensamento de Hume.

Pablo Ortellado* - Stalin em Ipanema

- Folha de S. Paulo

Caetano Veloso trai biografia ao flertar com neostalinismo

Caetano Veloso esteve no centro de uma nova controvérsia, semana passada, quando, em entrevista ao programa do Bial, reviu sua posição crítica aos regimes socialistas registrada no belíssimo documentário “Narcísio em Férias”.

A força estética da obra de Caetano e do tropicalismo sempre esteve alicerçada na articulação de opostos, um procedimento que herdou do modernismo paulista.

Por meio da citação, da paródia e da colagem, sua obra combinou o arcaico e o moderno, o tradicional e a vanguarda, o nacional e o estrangeiro, o artístico e o comercial.

O resultado dessas combinações não foi apenas uma síntese, mas uma espécie de promoção, na qual o Brasil moderno, “fora do lugar”, se reencontrou, se reconciliou com o Brasil profundo e arcaico, levando-o adiante.

O mesmo se deu com a música comercial ou brega que quando mobilizadas por procedimentos que dialogavam com a arte erudita eram alçadas e erigidas.

Míriam Leitão - Política externa contra o Brasil

- O Globo

A subserviência aos Estados Unidos, marca maior da política externa do governo Bolsonaro, produz prejuízos concretos. Os americanos reduziram as cotas na exportação brasileira de aço. O Brasil não apenas aceitou, mas premiou o país, mantendo as cotas de importação de etanol americano sem tarifa. Cedeu também quando retirou o nome brasileiro e aderiu ao candidato americano, que foi eleito neste fim de semana para presidir o Banco Interamericano de Desenvolvimento. Um americano no BID é fato inédito na história da instituição. No caso do etanol, o governo quis beneficiar a campanha de Donald Trump à reeleição, só que em detrimento dos interesses dos produtores do Brasil.

Quando se fala que uma política externa independente é a que pensa nos interesses do Brasil em primeiro lugar, isso não é apenas retórica. Há efeitos concretos. A subserviência tem um preço. Quando um governo se deixa dominar por uma visão ideológica, o país como um todo perde. Nesses três casos o Brasil teve prejuízos, e os Estados Unidos, vantagens. O governo apresenta tudo como se fosse a expectativa de um ganho futuro que nunca vem, diz, por exemplo, que cedeu no álcool porque no futuro vai ganhar no açúcar.

O Brasil ficou contra o Brasil no BID. Foi exatamente isso que aconteceu. O governo já havia apresentado a proposta de um candidato brasileiro, mas a submissão foi tanta que assim que o governo americano apresentou o nome dele o Itamaraty e o Ministério da Economia aderiram imediatamente. Detalhe: desde a sua fundação, o banco é dirigido por um latino-americano. Faz parte das normas não escritas nas instituições multilaterais que o BID sempre é dirigido por um país da região.

Essa quebra de regras imposta por Trump foi tão acintosa que revoltou líderes europeus. O representante da União Europeia para a política externa Josep Borrell enviou a todos os países que têm capital na instituição uma proposta de adiamento da escolha para depois das eleições americanas. Vinte e dois ex-governantes da América Latina assinaram uma carta defendendo esse adiamento. Mas os Estados Unidos impuseram seu candidato e seu calendário. O governo brasileiro foi atrás, como um cachorrinho, com o rabinho entre as pernas.

Bernardo Mello Franco - Diplomacia da submissão

- O Globo

Na semana passada, Jair Bolsonaro aproveitou o feriado da Independência para fazer mais um pronunciamento na TV. “Naquele histórico 7 de setembro de 1822, às margens do Ipiranga, o Brasil dizia ao mundo que nunca mais aceitaria ser submisso a qualquer outra nação”, disse. Dom Pedro guardaria a espada se soubesse o que fariam com seu brado retumbante.

Desde a vitória do capitão, o Brasil diz ao mundo que aceita ser submisso à Casa Branca. Outros governos já haviam se ajoelhado diante dos EUA, mas nem a ditadura militar foi tão servil nas relações com o país.

Para agradar Donald Trump, Bolsonaro tem jogado no lixo décadas de política externa independente. Em vez de defender o interesse nacional, a diplomacia brasileira passou a defender o interesse de Washington. A vassalagem acaba de se repetir na disputa pelo comando do Banco Interamericano de Desenvolvimento.

Andrea Jubé - Dom Quixote contra a reforma tributária

- Valor Econômico

Há quase 500 anos, Cervantes opôs os livros às armas

Em movimentos paralelos, quem sabe, coordenados, governos estaduais e federal editaram recentemente leis, decretos e portarias para facilitar o acesso às armas. A despeito da crise econômica aguda, alguns Estados até zeraram impostos sobre a compra de escopetas, carabinas e afins.

Em impressionante sintonia, deputados e senadores preparam-se, em outra frente, para instituir a cobrança de impostos sobre os livros, o que dificultará o já tortuoso acesso à leitura no Brasil.

Essa perversa sincronicidade atualiza e transporta para a era Bolsonaro um debate levantado pelo escritor Miguel de Cervantes, no início do século XVII, sobre o valor das armas e dos livros em uma sociedade. Simultaneamente, coloca à prova os pilares sobre os quais essa sociedade se edifica, ou oscila.

No vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, o presidente Jair Bolsonaro disse que gostaria que todo “o povo se arme”. Em nenhum momento de sua gestão ele manifestou o desejo de representar uma população instruída, com amplo acesso à literatura e outras artes, embora um nível sofisticado de leitura seja atributo de países desenvolvidos.

Erra quem se reporta aos livros como inutilidades, ou “coisa da elite”. A leitura é um dos critérios do Pisa, exame internacional aplicado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), clube dos países ricos no qual o Brasil sonha ingressar.

No quesito leitura, o último relatório do Pisa, divulgado há nove meses, afirmou que a performance média dos brasileiros “parece flutuar em uma tendência horizontal”, ou seja, estagnou. Apenas 2% dos estudantes brasileiros alcançou nível alto de proficiência.

Os brasileiros pontuaram 413 em leitura, onde o número 500 é referência. Os chineses pontuaram 555, os canadenses, 520, e os americanos, 505. Os chilenos registraram 452 pontos, para citar um vizinho.

Bernard Appy* - Os municípios na reforma tributária

- O Estado de S. Paulo

Preocupação é compreensível, mas o Simplifica Já não é a solução adequada

as últimas semanas tem ganhado destaque no debate sobre a reforma tributária uma proposta desenvolvida pelos grandes municípios conhecida como Simplifica Já. Tal proposta, consolidada na Emenda 144 à PEC 110, mantém a separação entre o ICMS (estadual) e o ISS (municipal), divergindo das propostas da Câmara (PEC 45) e do Senado (PEC 110), que propõem unificar o ICMS, o ISS e tributos federais (PIS, Cofins e IPI) num único Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).

Pela proposta do Simplifica Já, o ICMS passaria a ter legislação nacional unificada e seria cobrado de forma centralizada, por meio de um comitê gestor. A alíquota incidente nas transações interestaduais seria reduzida progressivamente, em até cinco anos, de modo a que no final da transição o ICMS fosse cobrado no destino.

Já no caso do ISS, a proposta também sugere unificar nacionalmente a legislação, estabelecendo uma alíquota mínima e uma alíquota máxima do imposto. Cada município deveria definir uma única alíquota interna, que seria aplicável a todos os serviços sujeitos ao ISS. Nas operações intermunicipais, o ISS seria cobrado de forma centralizada por meio de um comitê gestor, sendo destinada parcela equivalente à alíquota mínima para o município de origem e a diferença entre a alíquota interna e a alíquota mínima para o município de destino, após uma transição de dez anos.

FHC e ex-presidentes latino-americanos advertem contra risco à democracia

Por César Felício | Valor Econômico

SÃO PAULO - O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e outros nove ex-presidentes latino-americanos assinam nesta terça-feira uma nota conjunta em que afirmam que a pandemia de covid-19 poderá provocar na região uma “grave deterioração democrática”.

Segundo os ex-chefes de Estado, entre eles o argentino Mauricio Macri, o uruguaio José Mujica, o mexicano Ernesto Zedillo e o chileno Ricardo Lagos, a pandemia aumentou as atribuições do Executivo. Há o temor de que o uso de medidas de exceção leve a violações de direitos humanos e restrições à liberdade.

“É fundamental não romper o equilíbrio entre os poderes. O Poder Legislativo - com representação efetiva das aspirações sociais- e o Poder Executivo- com capacidade de aplicar as leis com independência - devem continuar a exercer suas funções e garantir os equilíbrios dinâmicos institucionais de um estado democrático. A pandemia não deve ser vista como um cheque em branco para enfraquecer os controles e a prestação de contas, e nem solapar a luta contra a corrupção”, afirmam os ex-presidentes.

Também assinam o documento o colombiano Juan Manuel Santos, a costarriquenha Laura Chinchilla, os uruguaios Julio Maria Sanguinetti e Tabaré Vasquez, o boliviano Carlos Mesa e 160 personalidades, entre elas Ciro Gomes (PDT) e Marina Silva (Rede).

Líderes da América Latina alertam para riscos à democracia na região

Em carta, fundações ligadas a ex-presidentes pedem atenção com adiamento de eleições e medidas emergenciais

Paula Reverbel | O Estado de S.Paulo

Ex-presidentes e líderes políticos da América Latina lançam nesta terça-feira, 15, carta para alertar para os riscos que a crise do coronavírus traz às democracias da região.

O documento é assinado pela Fundação Fernando Henrique Cardoso, a Fundação para a Democracia e Desenvolvimento (Fundación Democracia y Desarrollo, instituição chilena criada, em 2006, no final do mandato presidencial do social-democrata Ricardo Lagos) e o Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral – organização intergovernamental com sede em Estocolmo, na Suécia, e que possui 33 países membros, incluindo Brasil.

Com o título “Cuidemos da democracia para que ela não seja vítima da pandemia”, o texto defende que é necessário garantir que as medidas emergências adotadas pelos governos para tentar diminuir o efeito da crise mundial não sirvam “como um cheque em branco” aos interessados em enfraquecer controles, prestação de contas e medidas anticorrupção. A carta ainda prega que organizações de Estado e da sociedade civil devem garantir mecanismos de controle nos países que se viram obrigados a adiar eleições. O texto, no entanto, não cita nações específicas.

No Brasil, a votação foi transferida de outubro para novembro, após aprovação do Congresso. Outros dez países da América Latina e do Caribe – Bolívia, Chile, República Dominicana, Colômbia, Guiana Francesa, Peru, México, Paraguai, Argentina e Uruguai – também adiaram eleições como medida de combate à disseminação do coronavírus. O monitoramento consta no site do próprio Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral.

“Se a pandemia obriga a postergar determinadas eleições – como vem ocorrendo em vários países – estas decisões deverão ser feitas por razões estritamente sanitárias e estar embasadas em um amplo consenso político-social. Nesse contexto, as organizações tanto do Estado como da sociedade civil devem propiciar os mecanismos de controle social das transferências e dos subsídios estatais para evitar que eles gerem pressões clientelísticas durante os futuros processos eleitorais”, afirma a carta.

Autoritarismo
A mensagem ainda alerta para a concentração de poder em governos federais, e prega que eventual uso excepcional das Forças Armadas seja feito com responsabilidade. “Os poderes executivos devem fazer uso responsável destas medidas de exceção para evitar violações dos direitos humanos e restrições arbitrárias à liberdade”, diz o texto.

As instituições ainda defenderam que a desigualdade, pobreza e informalidade, além de serem obstáculos ao desenvolvimento, são também “solo fértil” para a disseminação de ideias populistas e autoritárias. “Os tempos que estão por vir, com uma crise econômica maior do que todas já vividas desde o século passado, nos apresentam uma tarefa árdua: aproveitá-la como uma oportunidade para redefinir o horizonte do possível”.

O texto salienta que, antes mesmo da crise da covid-19, a democracia e os governos já enfrentavam outros desafios, como a disseminação de notícias falsas e as mudanças climáticas: “a cidadania exigindo melhor qualidade de vida e de serviços públicos; as mulheres demandando, com razão, igualdade e respeito; as mudanças climáticas clamando por real consciência ecológica; e a expansão da internet universalizando o debate político e social, mas também disseminando fake news e discursos de ódio”, afirmam as instituições.

Leia a íntegra da carta:

O evangelho bolsonarista – Editorial | O Estado de S. Paulo

A caridade com as igrejas só se presta a alimentar a base de apoio de Bolsonaro com vista à reeleição, seu único projeto claro

Em célebre passagem da Bíblia (Mateus 22:17-21), o próprio Cristo aconselha a pagar os impostos em dia: “Dai, pois, a César o que é de César, a Deus o que é de Deus”. Religioso como diz ser, o presidente Jair Bolsonaro deve conhecer essa prédica, mas aparentemente se esqueceu dela ao defender a criação de “instrumentos normativos” para permitir que entidades religiosas, já isentas do pagamento de impostos, deixem de pagar também contribuições, como a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e a previdenciária.

A defesa da isenção total para igrejas foi feita depois que Bolsonaro se viu na contingência de, muito a contragosto, vetar um “jabuti” incorporado ao Projeto de Lei 1.581/2020, que trata de acordos para pagamento de precatórios entre a União e seus credores. Se sancionado pelo presidente, o tal quelônio que a Câmara desavergonhadamente aprovou anistiaria R$ 1 bilhão em débitos tributários das igrejas, segundo cálculos da equipe econômica.

O Ministério da Economia, obviamente, recomendou a Bolsonaro que vetasse esse dispositivo, que já seria absurdo em condições normais, mas que se tornaria especialmente ofensivo diante do quadro de penúria fiscal e de despesas crescentes com a pandemia de covid-19. O presidente o fez, mas apenas parcialmente – manteve uma anistia a multas aplicadas pela Receita Federal pela não quitação de tributos sobre a chamada “prebenda”, nome que se dá ao pagamento que ministros de ordens religiosas recebem, entendido como remuneração direta ou indireta. Uma lei de junho de 2015 isentou os religiosos desse tributo, e o dispositivo sancionado por Bolsonaro perdoa todas as autuações feitas antes daquela data. Uma dádiva.

Frente de devastação – Editorial | Folha de S. Paulo

Diante de tragédias ambientais, Salles corta orçamento do Ibama e ICMBio em 2021

O Pantanal, maior planície alagável do planeta, está em chamas, como se vê diariamente na TV. O desmatamento avança na Amazônia, como se observa por satélites, e deve destruir mais floresta em 2020 do que no primeiro ano sob Jair Bolsonaro, quando já dera um salto.

O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e seu presidente colhem os frutos da frente ampla de devastação que lideram em Brasília. O primeiro flanco se fixou na desidratação dos institutos federais de preservação, Ibama (licenciamento ambiental e fiscalização) e ICMBio (conservação).

No último lance para manietar as autarquias, apertaram o torniquete financeiro. Em 2021, seus orçamentos terão cortes significativos, reduzindo ainda mais a capacidade para proteger os biomas nacionais mais ameaçados: floresta amazônica, cerrado e Pantanal.

No caso do Ibama, o talho é de 4%, encolhendo a dotação para R$ 1,65 bilhão. Quase um terço disso (R$ 513 milhões) depende de crédito extra que o Planalto precisa aprovar no Congresso. No ICMBio, o recuo é de 12,8%, para R$ 609 milhões --43% sob arbítrio dos parlamentares. Reina a incerteza.

Um degrau abaixo – Editorial | Folha de S. Paulo

Apoio a americano no BID e isenção para agradar Trump apequenam ainda mais o Itamaraty

Uma regra não escrita nos conclaves do Vaticano estabelece que um papa nunca deve ser norte-americano. O motivo, a concentração de musculatura para aquela que já é a mais poderosa nação do mundo.

De forma mais explícita, as Nações Unidas não podem ser lideradas por um cidadão dos Estados Unidos ou dos outros quatro membros do Conselho de Segurança, seu órgão decisório supremo.

O que dizer de um órgão com grande importância para a economia do quintal geopolítico dos EUA, o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento)?

Desde a sua fundação, em 1959, o órgão tem a presidência ocupada por um latino-americano. Mas no sábado (12), foi eleito para a função o norte-americano Mauricio Claver-Carone, indicado por Donald Trump. Um dos "falcões" da Casa Branca, assessor presidencial para o Hemisfério Ocidental e defensor de agressivas políticas contra regimes de esquerda na região, Claver-Carone foi uma imposição de um Trump cada vez mais acossado em busca de sua reeleição.

Em entrevista a esta Folha, Claver-Carone afirmou que gostaria de ver sobrepostas ações do BID às do programa De Volta às Américas, do governo em Washington.

Tal iniciativa visa tirar empresas americanas da China e trazê-las para países próximos dos EUA, por meio de incentivos diversos.

As relações perigosas de Crivella – Editorial | O Globo

Ainda que feitas em período eleitoral, são graves as denúncias de corrupção dentro da prefeitura

Não se pode ignorar a possibilidade de motivação política ao analisar a proliferação, em período eleitoral, de operações policiais contra candidatos ou pré-candidatos, como ocorreu nos últimos dias com o prefeito do Rio, Marcelo Crivella (Republicanos). Crivella não é o único a ter de enfrentar os tentáculos da Justiça às vésperas da eleição — Cristiane Brasil (PTB) e Eduardo Paes (DEM) também foram alvos de operações. Para além da eventual estranheza que a coincidência de calendário cause, é preciso avaliar cada ação pelo próprio mérito.

E, no mérito, são graves as denúncias do Ministério Público do Rio que apontam o empresário Rafael Alves como operador de um esquema que se estendia a mais de 20 órgãos da prefeitura carioca, atingindo setores essenciais como Saúde e Educação. De acordo com as investigações, o apoio financeiro a Crivella na eleição de 2016 transformou Alves em aliado influente nos bastidores. Embora não ocupasse cargo no município, mandava e desmandava no governo Crivella. Tinha até sala na Cidade das Artes, na Barra, onde, diz o MP, recebia malas de dinheiro.

Era ele, segundo a denúncia, quem decidia as dívidas prioritárias que a prefeitura deveria saldar, à base de propinas. De acordo com o MP, intermediava contratos, fazia nomeações para cargos importantes — como o irmão, Marcelo Alves, na presidência da Riotur —, exonerava funcionários e interferia em decisões técnicas — em 2018, mandou suspender a demolição de parte da casa do senador Romário, na Barra, determinada pela Secretaria de Urbanismo.

Bolsonaro avança no projeto de demolir a diplomacia brasileira – Editorial | O Globo

Apoio a americano no BID quebra tradição, desperta reação de parceiros e aumenta isolamento do Brasil

O governo Bolsonaro avança no projeto de demolição da política tradicional do Itamaraty: não subordinação aos Estados Unidos e equidistância diplomática. Foi decisivo o apoio brasileiro para que, pela primeira vez em 60 anos, um americano assuma a presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). É, na gestão Bolsonaro, o ápice da subserviência ao interesse americano.

Nascido na Flórida de pais cubanos, Mauricio Claver-Carone, linha-dura do trumpismo pinçado no mercado financeiro, teve 66,8% de apoio do capital votante da instituição financeira multilateral, numa eleição em que se abstiveram parceiros de peso como Argentina, Chile e México — recado claro de insatisfação com o alinhamento automático do Planalto à Casa Branca e prova de que a atitude do Brasil equivale a renunciar a qualquer liderança relevante no continente.

É como se Bolsonaro repetisse a intenção de Carlos Menem, revelada no final dos anos 1990 ( gestão Bill Clinton), de que a política externa argentina fosse uma “relação carnal” com os Estados Unidos. O presidente brasileiro pode aprender uma lição daquela diplomacia exótica: a economia argentina soçobrou, sem contar com qualquer ajuda especial do amigo do Norte.

Pautas espinhosas e divisão no Supremo desafiam Fux – Editorial | Valor Econômico

Discursos de posses são geralmente listas de desejos que servem de indicação das intenções do seu autor. Mas elas podem ou não se concretizar

A radicalização política e o choque entre Poderes tornou a sucessão em qualquer um deles um movimento de muita importância, a ser observado com atenção. A troca de guarda no Judiciário, que tem amparado os golpes do presidente Jair Bolsonaro, mais ainda. Luiz Fux, agora contaminado pela covid-19, assume o cargo de Dias Toffoli, e algumas mudanças de rumo tornaram-se possíveis, ainda que possam vir a se frustrar.

No discurso de posse de Fux chamou a atenção a promessa de ser “deferente” com o Executivo, embora tenha acrescentado que isso não significava subserviência. O compromisso com a deferência é coerente com o perfil de Fux, considerado em geral conciliador - foi o ministro aprovado com o maior número de votos (68) no Senado até agora. Mas não deve perseguir o diálogo a qualquer custo.

As ações de Fux criam expectativa após a gestão tortuosa de Dias Toffoli, criticado nos últimos meses por ter sido excessivamente compreensivo com o governo, mesmo após o episódio de maio, quando o presidente Jair Bolsonaro atravessou a Esplanada dos Ministérios com ministros e um grupo de empresários para pressionar o STF a favor da flexibilização das medidas de quarentena nos Estados. Toffoli desenhou um pacto entre Poderes que seria impossível sem a anulação do Judiciário como instância julgadora de ações dos outros Poderes, garantidora da democracia.

Poesia | Ariano Suassuna – Romance d’A Pedra do Reino

Ave Musa incandescente
do deserto do Sertão!
Forje, no Sol do meu Sangue,
o Trono do meu clarão:
cante as Pedras encantadas
e a Catedral Soterrada,
Castelo deste meu Chão!

Nobres Damas e Senhores
ouçam meu Canto espantoso:
a doida Desaventura
de Sinésio, O Alumioso,
o Cetro e sua centelha
na Bandeira aurivermelha
do meu Sonho perigoso!

– Ariano Suassuna, em “Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta”. 8ª ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.