domingo, 27 de setembro de 2020

Merval Pereira - A direita no Supremo

- O Globo

A conformação do Supremo Tribunal Federal (STF) e da Corte Suprema dos Estados Unidos está sendo alterada no mesmo momento histórico de viés direitista nos dois países. Nos Estados Unidos, a morte da juíza Ruth Bader Ginsburg, um ícone dos progressistas americanos, pode dar lugar a um plenário majoritariamente conservador, marcando por décadas o entendimento da Suprema Corte.

No Brasil, a aposentadoria antecipada do ministro Celso de Mello, um exemplo de coerência e defesa da democracia, permitirá que o presidente Bolsonaro nomeie um ministro claramente conservador, embora não reverta a tendência progressista da Corte brasileira.  

A tentativa de controlar as decisões da última instância do Judiciário provoca crise política nos Estados Unidos, pois a nomeação da substituta de RBG deveria ficar para o próximo presidente a ser eleito dentro de 38 dias. Quando o ministro Antonin Scalia morreu, em fevereiro de 2016, o Senado americano, dominado pelos Republicanos como agora, não permitiu que o presidente Obama nomeasse o sucessor, sob alegação de que estava em seu último ano de mandato. Hoje, os mesmos Republicanos defendem a nomeação por Trump do novo ministro da Suprema Corte.  

O golpe parlamentar dos Republicanos, que fará com que a Suprema Corte fique com uma maioria de 6 conservadores contra 3 progressistas, está provocando grande discussão política, e surge a tese de que os Democratas, se ganharem a eleição para presidente com Joe Biden e o controle do Senado nas próximas eleições, aumentem o número de juízes da Corte Suprema.

Lourival Sant'Anna - O futuro da democracia


- O Estado de S.Paulo

Perspectiva de um presidente que não aceita entregar o cargo e de uma decisão para a Suprema Corte cuja legitimidade é contestada é um grande teste para os EUA

 A recusa de Donald Trump em garantir que aceitará eventual derrota nas eleições ganha nova dimensão com a morte da juíza Ruth Bader Ginsburg, e a corrida do presidente para substituí-la antes de 3 de novembro. O impacto dessa estratégia sobre a democracia americana depende das reais intenções do presidente, algo sempre difícil de decifrar.

Tenho três hipóteses. Ao enfatizar o risco de “fraude eleitoral” por causa do envio de cédulas, segundo ele, “não solicitadas” pelo correio, Trump procura mobilizar os eleitores por meio da raiva e do medo de serem roubados. A mobilização do eleitor é crucial em um país onde o voto não é obrigatório e ocorre em dia útil.

 Em razão da pandemia, metade da votação poderá ser feita pelo correio. Historicamente, os democratas votam mais pelo correio do que os republicanos, porque pessoas de baixa renda, que tendem mais para as propostas democratas, têm mais dificuldades de deixar o trabalho para votar. Por essa hipótese, a recusa de Trump seria só tática de campanha, e se dissiparia após a eleição, independentemente do resultado. É o cenário mais racional e benigno.

Minha segunda hipótese é dominada pela emoção. Trump acabaria não resistindo a entregar o cargo, mas manteria a narrativa de que a eleição foi roubada. Essa atitude atenderia às suas fantasias egóicas. Três livros recém-lançados por autores muito diferentes descrevem o quanto a autoestima ferida de Trump é determinante em seu comportamento: The Room Where It Happened, de John Bolton, ex-chefe do Conselho de Segurança Nacional; Too Much And Never Enough, de Mary Trump, sobrinha do presidente e psicóloga; e Rage, do jornalista Bob Woodward, que o entrevistou 17 vezes, assim como seus assessores.

Bernardo Mello Franco - Ódio aos bancos une família Bolsonaro ao PCO

- O Globo

Entre as 33 legendas registradas no Tribunal Superior Eleitoral, nenhuma está mais à esquerda que o PCO. Fundado em 1995, o Partido da Causa Operária defende um levante dos trabalhadores contra a burguesia. Seu programa prega a estatização do sistema financeiro. O objetivo é eliminar os bancos, identificados com a “agiotagem dos capitalistas”.

A sigla lançou um bom slogan (“Quem bate cartão não vota em patrão”), mas nunca conseguiu empolgar as massas. Seu eterno presidente, Rui Costa Pimenta, já se candidatou três vezes ao Planalto. Em todas as tentativas, terminou em último lugar, com menos de 0,1% dos votos.

Apesar da retórica anticomunista, a família Bolsonaro tem algo em comum com o PCO. A exemplo do partido nanico, o clã odeia os bancos. O sentimento se materializa no apego ao dinheiro vivo, que une filhos e ex-mulheres do presidente.

Aos 20 anos, o vereador Carlos Bolsonaro usou “moeda corrente do país, contada e achada certa” para comprar seu primeiro imóvel, na Tijuca. O negócio foi revelado na quarta-feira pelo jornal “O Estado de S.Paulo”. Candidato à reeleição, o Zero Dois não quis se manifestar. Ele concorre ao sexto mandato na Gaiola de Ouro, como é conhecida a Câmara Municipal do Rio.

Janio de Freitas – Também nos dão algum riso

- Folha de S. Paulo

O possível é apenas sondar os traços anedóticos que lhe dão forma e grotesco; e rir

Um riso mal contido, pode ser, talvez envergonhado. Como na extravagância de alguns tombos, sobretudo os vistos. E é disso mesmo que se trata: cenas patéticas de um tombo, o deste país.

O Brasil a ameaçar de represália os grandes países que sustem importações de produtos brasileiros, em reação à sanha destruidora na Amazônia. Cada grão de soja e grama de carne que deixem de importar é um rombo na economia bolsonara. E logo quem a propalar a ameaça, o general Heleno, não propriamente do alto de sua lucidez.

Fiel ao sentimento de que o cinismo não tem limite, nem para traição à memória de seus ídolos torturadores e matadores, Bolsonaro a dizer à ONU que “a liberdade é o bem maior da humanidade”. Depois de atribuir a interesses internacionais na riqueza da Amazônia uma campanha para “prejudicar o governo e o próprio Brasil”. No que foi corrigido pelo general Heleno, que, a partir do nível um tanto prejudicado da sua visão do mundo, identificou outra motivação etérea do mundo: é uma “campanha internacional para derrubar Bolsonaro”.

Tamanho nonsense sufoca todo resquício de gravidade que se queira atribuir-lhe, consideradas as responsabilidades funcionais dos emitentes. O possível é apenas sondar os traços anedóticos que lhe dão forma e grotesco. E rir.

Acima e abaixo dos delírios, o problema é que os militares influentes do Exército não compreenderam que a Amazônia é um amálgama de características de flora e de fauna, geológicas, climáticas, fluviais e pluviais, todas em mútua dependência. E que a entrega desse mundo de peculiaridades interligadas à exploração humana resultará, é inevitável, em que não será mais a Amazônia.

Bruno Boghossian - Golpismo pré-datado

- Folha de S. Paulo

Trump e Bolsonaro dinamitam credibilidade de eleições para tentar preservar poder

Há 203 dias, Jair Bolsonaro afirmou guardar provas de fraude na eleição de 2018. O presidente disse que tinha em suas mãos evidências de que deveria ter vencido a disputa no primeiro turno e anunciou que apresentaria esse material “brevemente”. É claro que nada apareceu, mas ele conseguiu o que queria.

Bolsonaro trabalha, no longo prazo, para dinamitar a credibilidade do sistema de votação no país. A ideia é cultivar dúvidas entre seus apoiadores, reforçar a imagem de um ambiente político manipulado e preparar terreno para contestar derrotas que sofre dentro das regras do jogo.

Ele deu uma pista desse caminho ainda na campanha presidencial. A dias do primeiro turno, Bolsonaro levantou suspeitas de fraude sem comprovação e disse que não aceitaria um resultado diferente de sua vitória nas urnas. “Isso é um ponto de vista fechado”, declarou.

Hélio Schwartsman - Como se livrar de um presidente

- Folha de S. Paulo

Crise econômica é a melhor chance de eleição produzir resposta sólida contra um dirigente

Agora que Jair Bolsonaro se pôs sob a guarda do centrão, nossa melhor esperança de nos livrarmos desse presidente disfuncional são as urnas. E a melhor chance de as urnas produzirem uma resposta sólida contra um dirigente de turno é serem acionadas sob crise econômica.

Já lancei essa ideia algumas vezes e, sempre que o faço, algum leitor me escreve, comentando que o governante já tem pronto um discurso que o isenta de responsabilidade pela economia. Dilma afirmava que a crise tinha origem externa. Bolsonaro já vai alardeando que o período complicado que teremos pela frente é culpa de governadores e prefeitos que exageraram no lockdown.

É claro que é melhor para o líder ter um discurso do que não ter, especialmente se houver gente crédula o bastante para aceitar desculpas esfarrapadas. Mas as decisões do eleitorado não precisam ocorrer de forma consciente. O que há de mais fascinante em pleitos são justamente os fatores que determinam o comportamento de grandes coortes sem que as pessoas se deem conta deles.

Vinicius Torres Freire – Guedes quer barbarizar nos impostos

- Folha de S. Paulo

Com CPMF, reforma do governo aumenta injustiça e ineficiência tributária no país

 “Poucas ideias são tão ruins que não podem ser pioradas. Infelizmente, o sistema tributário brasileiro não é exceção à regra... Uma prova disso é a constante ameaça do retorno da famosa ... CPMF”, escreveu Adolfo Sachsida em um livro de 2017. Sachsida é ora secretário de Política Econômica do Ministério da Economia de Paulo Guedes.

A esse respeito, muita gente está de acordo com o secretário, este jornalista inclusive. Guedes quer substituir um imposto ruim e decadente, a contribuição patronal para o INSS, por um ainda pior, a CPMF ou equivalente. Se conseguir, vai aumentar a confusão, as distorções e várias iniquidades da tributação no Brasil.

Um modo de acabar com o imposto sobre folha de salários é tributar mais a renda, de preferência a dos mais ricos (ou o consumo, alternativa pior). Tributar mais os rendimentos maiores é também um modo de pegar os lucros da “economia digital”, que têm escapado dos fiscos do mundo inteiro.

Guedes não quer bulir com o IR. Pretende comer a renda de modo insidioso, com uma CPMF, imposto menos visível e que trata ricos e pobres da mesma maneira.

A ideia do ministro é arrumar R$ 120 bilhões a fim de reduzir o que as empresas pagam para o INSS. Acabaria o imposto sobre remunerações de um salário mínimo ou menos; a contribuição sobre salários maiores diminuiria. Uma conta de guardanapo indica que, de fato, esse dinheiro seria bastante para reduzir a alíquota do INSS de 20% para uns 11% (para salários maiores que um mínimo), tudo mais constante.

Guedes acha que arrecadaria esses R$ 120 bilhões com uma alíquota de 0,4% para sua CPMF misteriosa. Quando a CPMF era de 0,38% (de 2002 a 2007), a receita era regularmente 1,35% do PIB, atualmente uns R$ 94 bilhões. Mas passemos, pois ninguém sabe o que é essa CPMF do ministro e a economia mudou em 13 anos.

Ricardo Noblat - Bolsonaro assiste indiferente ao tiro que Michelle deu no próprio pé

- Blog do Noblat | Veja

Ele tem medo de quê?

O vídeo com a música “Micheque”, da banda de rock Detonautas, não parecia destinado a virar um campeão de audiência no Youtube quando ali foi postado no último dia 4.

De autoria de Tico Santa Cruz, vocalista da banda, a letra da música foi inspirada pela descoberta de que Fabrício Queiroz depositou 89 mil reais na conta de Michelle Bolsonaro.

Mas aí, na quinta-feira dia 25, a primeira-dama prestou queixa na Delegacia de Crimes Eletrônicos do Departamento Estadual de Investigações Criminais (DEIC), em São Paulo.

Ela quer que sejam processados por calúnia, injúria e difamação todos os que passaram a chamá-la de “Micheque” nas redes sociais, inclusive os roqueiros da banda. Resultado?

Foi um tiro no pé. Até a quinta-feira, a sátira dos Detonautas somava quase 700 mil visualizações. No início desta madrugada, ultrapassou a marca de 1 milhão e 330 mil. Um sucesso!

Não foi a música que colou em Michelle o apelido de “Micheque”. O apelido foi replicado quase 9 milhões de vezes no Facebook, Twitter e Instagram entre 22 de agosto e 21 de setembro.

A banda apenas surfou na onda e se deu bem. O que espanta é que ninguém no governo, nem mesmo o presidente Jair Bolsonaro, tenha aconselhado Michelle a não fazer o que fez.

A ira da primeira-dama é justa. Ela nada teve a ver com o dinheiro depositado em sua conta. Foi usada. Ao que tudo indica, o dinheiro era um negócio particular entre Queiroz e seu marido.

Bolsonaro poderia ter poupado a mulher do constrangimento a que se vê exposta. Por que não se apressou em esclarecer o motivo pelo qual Queiroz depositou 89 mil reais na conta dela?

Que tipo de vantagem política imagina extrair da iniciativa que teve Michelle de procurar a polícia? Por que insiste em permanecer calado? Está com medo do quê?

Luiz Carlos Azedo - Todos os homens de Bolsonaro

 

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

O presidente só pensa na reeleição, que parece ao alcance das mãos. O que acontecerá com a democracia brasileira se controlar o Judiciário e passar o rodo no Congresso, em 2022?

Para quem leu Todos os Homens do Kremlin (Editora Vestígio), de Mikhail Zygar, ex-editor-chefe da única emissora de TV independente da Rússia, a TV Rain (Dozhd), o paralelo com o presidente Jair Bolsonaro e sua atuação no poder é inevitável, resguardadas, é óbvio, as diferenças de contexto histórico e nacional. Como Vladimir Putin, Bolsonaro tornou-se presidente porque soube aproveitar a oportunidade, bafejado pela sorte. Diferentemente do presidente russo, porém, não era um candidato do sistema: o homem certo na hora certa para o então presidente Boris Yeltsin, o político carismático, beberrão e imprevisível, que implodiu a antiga União Soviética, destronando Mikhail Gorbatchev, e liderou a transição selvagem para o capitalismo na Federação Russa. Bolsonaro foi um candidato antisistema, que surfou o tsunami eleitoral de 2018, na onda de insatisfação popular com os políticos gerada pela Operação Lava-Jato.

As semelhanças são maiores quando levamos em conta que Putin não tinha uma estratégia de poder –– foi administrando as circunstâncias para mantê-lo. Ex-chefe da FSB, usou a força do Estado para afastar aliados indesejáveis, proteger os amigos de São Petersburgo e da antiga KGB, seduzir os militares e liquidar os adversários. Os instrumentos de coerção do Estado –– os serviços de inteligência, a polícia, o Ministério Público e o Judiciário –– foram fundamentais para a consolidação de sua longa permanência no poder, depenando oligarcas que se apoderaram das estatais russas, favorecendo os empresários amigos e eliminando possíveis concorrentes eleitorais. Putin acreditou que seria bem recebido pelos líderes das grandes potências ocidentais, mas logo se viu frustrado por Angela Merkel, a primeira-ministra alemã; Nicolas Sarkozy, o presidente francês; e, principalmente, Barack Obama, o presidente negro dos Estados Unidos.

Arreganhou os dentes quando chegou à conclusão de que todos queriam enfraquecer a Federação Russa e afastá-la das antigas repúblicas soviéticas. E de que o menosprezavam, tratando-o como um personagem menor na cena internacional. Esse sentimento de rejeição somente aumentou ao longo dos anos, mas teve como resposta o endurecimento da política externa russa em relação às ex-repúblicas soviéticas da Geórgia e da Ucrânia, e ao Oriente Médio. A decisão estratégica de manter o ditador da Síria, Bashar al-Assad, no poder a qualquer preço, e assim preservar sua base naval no Mediterrâneo, foi uma demonstração de força. Da mesma forma, a divisão da Ucrânia, com a anexação da Criméia como uma república autônoma da Federação Russa, com o propósito de manter a grande base naval da frota do Mar Negro. Por último, o apoio econômico e militar a Nicolás Maduro, na Venezuela.

Elio Gaspari - A vanguarda da elite

- O Globo / Folha de S. Paulo

Documentário sobre Libelus, organização de estudantes contra a ditadura, ajuda a refletir sobre elite brasileira

Na quarta-feira, estará no ar o documentário “Liberdade e luta — Abaixo a ditadura”, do cineasta Diógenes Muniz. Trata da Libelu, organização política de estudantes surgida em 1976 e extinta em 1985. Os libelus podem ter sido 800, mas fizeram um barulho danado. Iam para a rua gritando “abaixo a ditadura” (coisa que raramente acontecia desde 1968). Afastavam-se do MDB e da velha esquerda. Eram radicais com senso de humor, gostavam mais de rock do que de samba, mais de Caetano Veloso do que de Chico Buarque. O Serviço Nacional de Informações dizia que eram uma “dissenção” do Partido Comunista e da “linha trotsquista”. Os libelus eram jovens, num tempo em que o filósofo francês André Glucksman dizia que “Brejnev é Pinochet”. Um governava a União Soviética; o outro, o Chile.

As coisas são assim desde 1786, quando o estudante José Joaquim Maia (codinome Vendek) procurou Thomas Jefferson, embaixador dos Estados Unidos na França, pedindo-lhe ajuda para uma conspiração que se armava em Minas Gerais. Os estudantes foram a vanguarda da elite brasileira. Mais tarde, eles se tornam a própria elite, e a vida segue.

No documentário de Diógenes Muniz há uma doce viagem à alma dos jovens dos anos 70, na voz de 20 sexagenários lembrando-se da aurora de suas vidas. Só eles falam, um de cada vez. Em todos os idiomas há o provérbio segundo o qual quem não é de esquerda aos 20 anos não tem coração, e quem continua de esquerda depois dos 50 não tem cérebro. Dos 20 libelus entrevistados, cada um tomou seu caminho e foram para todos os lados. Poucos ficaram mais ou menos no mesmo lugar. Aí está o valor dos depoimentos e do documentário.

As entrevistas com os libelus foram gravadas no cenário da Universidade de São Paulo. Só “Pablo”, um militante que estudava Medicina em Ribeirão Preto falou na sala de sua casa. Isso não ocorreu por deferência ao ex-ministro da Fazenda de Lula e ex-chefe da Casa Civil de Dilma Rousseff, mas porque Antonio Palocci está em prisão domiciliar. Seu depoimento fecha o ciclo de um pedaço da amostra. Quando foi perguntado se ainda se considerava um homem de esquerda, Palocci não vacilou: “Claro”.

Não se mostrou arrependido de ter dançado “conforme a música”, mas ponderou: “Os que não se meteram em caixa dois não se elegeram... Talvez eu fosse uma pessoa melhor...”

A estudantada é a vanguarda da elite brasileira. Vendo-se o documentário de Diógenes Muniz, pode-se refletir sobre os jovens, o que é fácil. Desde 1786, difícil é refletir sobre a elite. Até nisso os libelus ajudam.

Serviço: “Liberdade e luta” faz parte do festival “É tudo verdade” e para vê-lo bastará entrar no site às 21h. É grátis, mas é preciso fazer um cadastro.

Vera Magalhães - A nova política caducou

- O Estado de S.Paulo

Renovação política se faz com projetos claros, definição de políticas públicas e compreensão dos problemas do Brasil e dos Estados



A tira que ilustra esta coluna, do talentoso quadrinista brasileiro Pietro Soldi, é a mais perfeita tradução do que a autodenominada “nova política”, que nunca teve nada de novo e em menos de dois anos se encontra em avançado estado de necrose, legou ao País.

Brasileiros de Norte a Sul elegeram para o Executivo e o Legislativo vários espécimes de jumentos vendados, achando que revolucionariam a forma de fazer política. Mas o resultado é que estamos ensopados de café quente e sem muito sinal de que vamos conseguir reerguer a mesa que tombou e colar a louça que foi feita em cacos.

Olhemos a situação do Rio de Janeiro e de Santa Catarina. O primeiro vinha de uma sucessão de larápios que só não roubaram as pedras do calçadão de Copacabana. O segundo tinha alguns dos melhores indicadores econômicos do País e saúde fiscal relativamente boa.

Mas os eleitores dos dois Estados acharam por bem eleger completos desconhecidos, que entraram na política pela porta fácil do discurso anticorrupção, atrelados ao bolsonarismo e surfando na onda lavajatista.

Resultado: menos de dois anos depois, Wilson Witzel, cujo nome 90% dos fluminenses não sabiam nem pronunciar quando nele votaram, e Carlos Moisés, cuja foto até hoje eu não saberia reconhecer, estão a caminho do impeachment. 

De Bolsonaro não é preciso falar. Já mencionei seu discurso na ONU, mais uma exibição que não deixou nada a dever à tirinha do Pietro.

Eliane Cantanhêde - Outubro efervescente

- O Estado de S.Paulo

 Eleição, economia, pandemia e o novo ministro terrivelmente amigo no STF

Outubro será agitado, com as campanhas eleitorais aprendendo a contornar a pandemia (que ainda mata mais de “dois Boeings” por dia), o governo e o Congresso convergindo para desoneração da folha de pagamentos compensada por um novo imposto e o presidente Jair Bolsonaro se divertindo com a aflição dos muitos candidatos à vaga de Celso de Mello no Supremo, porque ele já tem dois nomes no colete: Jorge Oliveira e André Mendonça.

Bolsonaro está no centro de toda essa efervescência, mexendo as peças sem se queimar e entrando no jogo apenas em caso, e na hora, da vitória. Só apoiará candidato para ganhar, só apoiará o novo imposto depois de Paulo Guedes e o Centrão garantirem o resultado e só vai anunciar o novo ministro do STF depois de ter sugado o possível dos candidatos frustrados.

Até aqui, ninguém deu bola para a eleição municipal e o interesse do eleitor continua caindo a cada pleito, mas a tendência é esquentar, com foco óbvio em São Paulo, pelo seu peso político e econômico, no Rio, pela chocante situação de governador e prefeito, e nos neófitos, como o próprio Wilson Witzel, que caíram de paraquedas pelo sopro do bolsonarismo. Elegerão seus candidatos?

Em São Paulo, Celso Russomanno (Republicanos) conta com Bolsonaro para fugir da sina de sair na liderança e acabar fora até do segundo turno. O prefeito Bruno Covas (PSDB) precisa driblar a frustração pelo segundo lugar e evitar perda de votos para Márcio França (PSB). Jilmar Tatto empurra o PT para o balaio dos nanicos e para o apoio a Guilherme Boulos (PSOL), a novidade de 2020. No Rio, o prefeito Marcello Crivella (Republicanos) está inelegível. Conseguirá reverter a decisão no TSE e manter o apoio de Bolsonaro?

Roberto Romano* - As caretas da censura judicial

- O Estado de S.Paulo

Juiz despreza o cidadão comum. O costume de violar a Constituição perpassa o Judiciário

O Estado moderno firma-se desde os séculos 15 e 16. Contra o feudalismo o rei instaura novos modos de administração, das fronteiras aos impostos, da justiça à polícia, dos campi aos arquivos, das coleções incoerentes de livros às bibliotecas. A racionalidade, no entanto, é paga com preço alto. Nobres e clero devem ser comprados com favores, isenção de taxas, privilégios. Até a cor das roupas exibe a “superioridade” dos barões e cardeais. A “gente ordinária de veste” (expressão ainda usada na Corte carioca de João VI) usa o negro com colarinho branco. Quem não pertence à burguesia rica ostenta andrajos.

Analista do poder, o matemático e filósofo Blaise Pascal comenta as roupas e os acessórios para intimidar os “homens comuns”. Existe o costume de ver os reis seguidos de guardas, tambores, serviçais e tudo o que inclina a espinha humana pelo medo e terror. Daí a bajulação: “O caráter da divindade está impresso na face real”.

Os juízes, continua Pascal, “conhecem tal mistério. Suas vestes vermelhas, seus enfeites e arminhos, os palácios onde julgam, as flores-de-lis (nada que ver com o Brasil de hoje), todo um aparato augusto é para eles necessário. Se os médicos não tivessem sotainas e mulas e os doutores não tivessem bonés quadrados e vestes amplas (...) eles jamais teriam engambelado quem não pode resistir. Se tivessem a justiça verdadeira e os médicos a arte verdadeira de curar seriam inúteis os bonés quadrados. A majestade das ciências seria venerável o bastante. Mas eles só têm ciências imaginárias, sendo preciso que as usem tais instrumentos inúteis que ferem a imaginação, com a qual lidam e conseguem respeito”. Termina o pensador: “Os soldados não se fantasiam porque sua parte é mais essencial. Eles se impõem pela força, os demais pelas caretas”. 

Juízes, a exemplo do presidente Schreber – delirante interlocutor de Deus –, desprezam o cidadão comum. O termo usado para designar quem não é juiz é claro: “leigo”, a pessoa “ordinária de vestes” que não pode intimidar com caretas e palácios. Mas as togas se curvam – como nas ditaduras que atormentaram o Brasil – diante das fardas.

Rolf Kuntz - No desgoverno do Brasil só cabe a agenda eleitoral

- O Estado de S.Paulo

Até o risco eleitoral criado pela pandemia, emprego e pobres ficaram fora do radar

Deus fez chover em Mato Grosso um dia depois da visita do presidente Jair Bolsonaro, festejou o general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo. “Deus está com nosso presidente e continuará a abençoar o Brasil”, acrescentou. Os incêndios na Amazônia e no Pantanal são fenômenos naturais e nenhuma ação humana pode evitá-los, garantiu outro general, Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional. As críticas à política ambiental brasileira, segundo ele, são ligadas a um “evidente” movimento internacional para derrubar o governo. O chefe dos generais, presidente do país abençoado, também cuidou do fogo, pouco depois, em discurso na Assembleia-Geral da ONU. Na Amazônia só índios e caboclos fazem queimadas, mas na mata úmida nenhum incêndio se propaga, assegurou.

É isso mesmo o Executivo brasileiro? É mais que isso – e muito menos que um governo. É preciso acabar com a erotização das crianças e com a discussão de gênero nas escolas, disse o ministro da Educação, Milton Ribeiro, em entrevista ao Estado. Mais sociável que Abraham Weintraub, o novo ministro reafirma prioridades de seu antecessor e também os valores e o padrão – por assim dizer – cultural de seu líder comum, o presidente da República. Nenhuma surpresa, portanto, quando o novo ministro se refere a homossexuais como produtos de famílias desajustadas e descreve a desigualdade como “problema do Brasil”, fora da responsabilidade de sua pasta.

Educação, igualdade e liberdade são temas correlacionados há mais de dois séculos, como comprovam as Cinco Memórias sobre a Instrução Pública, de Condorcet. Um tratamento recente do assunto aparece no livro Capital et Idéologie, de Thomas Piketty, publicado em 2019. A difusão de conhecimentos e o acesso às qualificações são apontados por ele como fatores primordiais, em longo prazo, para a redução das desigualdades em cada país e em âmbito internacional (páginas 622-623). Condorcet abre seu livro, editado no fim do século 18, atribuindo à sociedade o dever de proporcionar instrução ao povo “como meio de tornar real a igualdade de direitos”.

Carlos Melo* - Antipolarização e novo centro para a disputa

- O Estado de S. Paulo

No Brasil, os polos políticos capazes de atrair e agregar várias forças partidárias foram redefinidos em 2018. A “clássica” polarização PT/PSDB — que no país e na cidade de São Paulo, em particular, deu o tom da disputa por tanto tempo – tende a desaparecer nas eleições deste ano. Ao que tudo indica, um ciclo se encerrou dando origem a outro — que, talvez, também já esteja passando por novo processo de transmutação. A vida e a política seguem, como numa noite veloz.

Na eleição presidencial, a crise econômica e a Lava Jato fizeram com que o antipetismo – que nasceu junto com o partido — se expandisse. Com maior afinco e desespero, buscou força capaz de derrotar a até então forte legenda de Lula. O PSDB deixava, porém, de ser a aposta: exposto aos próprios escândalos e diluído no Centrão, os tucanos sucumbiram como alternativa. O vazio, contudo, abriu espaço para a aventura.

Favorecido por esse quadro, o bolsonarismo tomou corpo. (Era também beneficiado pela onda mundial de ressentimento e rancor contra a política e a democracia, originada nos indivíduos abandonados pela revolução tecnológica – os esquecidos, somente agora percebidos por Paulo Guedes.  Como em vários cantos do planeta, aqui também o populismo se aproveitou das circunstâncias e se estabeleceu.

Nesses dois anos, o bolsonarismo vem se consolidando para parte da população, mas também se desgastando com outra. Com efeito, a demagogia populista radicaliza e fideliza seu público, mas não consegue dar resposta efetiva a problemas concretos. Por sua vez, o PT vem perdendo o viço, embora Lula mantenha forte lembrança no eleitorado.

O que pensa a mídia – Opiniões / Editoriais

 

O código da fome – Opinião | Revista Istoé

Dá para imaginar o que é isso? Ficar dias e dias com o estômago a ronco, aquela dor aguda, lancinante, enganada às vezes a caldo de folha ou na maisena insossa de farinha com água e nada mais? Nem aroma para consolo? Sentado no declive do chão de pedra, proximidade do teto de palha, parede de barro e pau, que ameaça todo dia cair, no castigo do sol e da chuva, com o odor incessante de esgoto a céu aberto, em um ambiente onde a miséria espreita como sina, dividir a parca ração do dia é quase um privilégio de poucos ali — cenário mais extenso e predominante Brasil afora do que imaginam os benfejados pela sorte.

Quem não está lá nem desconfia da sinopse de angústias desses humildes desvalidos, o contingente populacional classificado por institutos oficiais na condição de carência alimentar extrema, consumidos pela privação, cujas vidas são uma experiência de risco em alta cadência, rotineiramente. As crianças desnutridas, que mais sofrem, com seus corpos miúdos, pernas mirradas, braços de tão magros estendidos como asas sem serventia, remela nos olhos entre insetos, reclamam no choro instintivo (manhã, tarde e noite) por um prato de alimento sólido. Uma refeição honesta, quem sabe! No amplo universo dos desesperados sociais brasileiros, viver com fome é realidade constante.

Ao menos 10,3 milhões deles estão no momento sem nada para comer, segundo a mais recente Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE, divulgada semana passada. Uma barbaridade! Número que tende a piorar com a pandemia, depois de um incremento recente de mais de 3,1 milhões de necessitados na mesma condição, agravando um quadro que já é vergonhoso e inaceitável no País que se autoproclama “celeiro do mundo”, detentor do maior cinturão verde planetário, onde tudo que planta dá, com área cultivável de dimensões continentais.

A verdade do evento trágico é deveras pior. Atualmente, segundo o levantamento, 36,7% dos lares brasileiros — isso mesmo! — têm dificuldade para garantir qualidade e quantidade de alimentos a todos os integrantes da família. Atente para o drama: está se falando de mais de um terço, quase a metade das casas no País, onde falta comida suficiente para seus membros. É suportável aceitar tamanha indigência? Talvez até para não chocar em demasia uma sociedade acostumada ao descaso, os famintos são, eufemisticamente, enquadrados em três níveis de “insegurança alimentar” — todas elas abomináveis, mas que tendem a abrandar o choque de quem não compreende a dimensão do desastre social, de proporções épicas, agora em curso.

Poesia | Paulo Mendes Campos - A uma Bailarina

Quero escrever meu verso no momento
Em que o limite extremo da ribalta
Silencia teus pés, e um deus se exalta
Como se o corpo fosse um pensamento.

Além do palco, existe o pavimento
Que nunca imaginamos em voz alta,
Onde teu passo puro sobressalta
Os pássaros sutis do movimento.

Amo-te de um amor que tudo pede
No sensual momento em que se explica
O desejo infinito da tristeza,

Sem que jamais se explique ou desenrede,
Mariposa que pousa mas não fica,
A tentação alegre da pureza.