sábado, 10 de outubro de 2020

Merval Pereira - Crise à vista

- O Globo

A insistência com que o vice-presidente Mourão e o presidente Bolsonaro elogiam o coronel Brilhante Ustra pode provocar uma crise diplomática

À medida que fica cada vez mais claro que Joe Biden provavelmente será eleito o próximo presidente dos Estados Unidos, mais problemática fica a prospecção do relacionamento com o Brasil. No momento, a questão ambiental é o principal obstáculo a uma relação equilibrada com os americanos, e o comentário de Biden sobre as queimadas da Amazônia é exemplar dessa dificuldade.  

Mas outro ponto de divergência pode ser a questão das torturas durante a ditadura militar no Brasil. Ontem, o vice-presidente Hamilton Mourão insistiu em elogiar o Coronel Brilhante Ustra, único militar condenado por tortura.  

Biden, quando era vice-presidente de Obama, revelou a BBC News, esteve no Brasil para entregar pessoalmente à presidente Dilma documentos sobre torturas e ilegalidades cometidas durante a ditadura militar no Brasil, entre os quais alguns que identificam Ustra como torturador contumaz.  

Segundo a reportagem da BBC News Brasil, um HD com 43 documentos produzidos por autoridades americanas entre os anos de 1967 e 1977, a partir de informações passadas não só por vítimas, mas por informantes dentro das Forças Armadas e dos serviços de repressão.  Para Bolsonaro, no entanto, Ustra é “um herói brasileiro” e para Mourão “um homem de honra”.  

Ascânio Seleme - A beleza da rotatividade

- O Globo

O novo time de Bolsonaro havia esquecido que o Supremo tinha um novo presidente

Nada como um dia depois do outro. Até o final de setembro, as articulações dos novos aliados de Bolsonaro contra a Lava-Jato andavam de vento em popa. A indicação de Kassio Marques para a vaga de Celso de Mello era o ponto alto do entendimento entre o centrão, o Planalto e alguns ministros do Supremo Tribunal Federal. O presidente afastava, pelo menos provisoriamente, a ideia de nomear um nome terrivelmente evangélico ou um advogado despreparado para o posto, o tribunal seguia na sua solene altivez, e o centrão ganhava um ministro que ajudaria a torpedear a saga punitivista, engordando a ala garantista da Segunda Turma do STF. Aí chegou o Fux.

O novo time de Bolsonaro havia esquecido que o Supremo tinha um novo presidente. Acostumado com a simpatia e a amizade de Dias Toffoli, batia bola como se nada houvera. Foi um erro. O mundo estava diferente. E esta é a beleza da rotatividade no comando do STF. Se Toffoli fosse presidente vitalício, como funciona na Suprema Corte dos Estados Unidos, Bolsonaro nadaria de braçada. Mas, não, por aqui o sabiá muda de cantiga a cada dois anos. E o canto da vez é o de Luiz Fux, que reagiu à manobra do capitão com outra manobra, e tirou poder da Segunda Turma sobre a Lava-Jato.

Míriam Leitão - Inflação em alta na pior hora

- O Globo

Por Alvaro Gribel (interino)

A inflação subiu em má hora e voltou a preocupar. O país ainda vive o pior da recessão no mercado de trabalho, mesmo que tenha atenuado parte de seus efeitos com as políticas de governo e o auxílio emergencial. Os preços sobem nos produtos que os pobres mais consomem. Os índices do atacado dispararam, criando um problema no mercado de imóveis alugados que só será superado com muita negociação. A inflação acelera num momento de dúvida sobre os juros futuros. De um lado, a economia precisa de estímulos, de outro, os sinais confusos do governo na área fiscal pressionam o custo da dívida. O IPCA está baixo, mas a natureza desta inflação, a hora em que ocorre, o peso sobre os alimentos, tudo isso se tornou um complicador.

A inflação de setembro foi a mais alta para o mês desde 2003. Se a análise sobre os índices de preços não pode se concentrar no dado de um único mês, também não dá para ignorar o que diz a trajetória. E a taxa acumulada em 12 meses também voltou a acelerar. Saiu de 1,88% em maio para 3,14% em setembro. É verdade que está bem abaixo da meta do ano, de 4%, mas esse movimento surpreendeu os economistas e deve aumentar a cautela do Banco Central. A possibilidade de um novo corte da Selic já era baixa e agora ficou praticamente descartada. Ontem foi dia de revisões para cima nas projeções de inflação em bancos e consultorias.

Hélio Schwartsman - E os R$ 89 mil?

- Folha de S. Paulo

Será total desmoralização se apurações sobre Flávio não virarem um processo

O Celso Rocha de Barros talvez não concorde, mas acho que dá para afirmar que Bolsonaro foi finalmente moderado. Não o foi pelo cargo, nem pelos militares, nem pela Covid-19, mas pelo duplo temor de sofrer um processo de impeachment e de ver familiares na cadeia por "rachadinhas" e sabe-se lá mais o quê.

Não penso que o presidente tenha se convertido à institucionalidade nem deixado de acalentar a esperança de um autogolpe, mas, independentemente do que se passe no recôndito de sua mente, o fato é que o Bolsonaro de hoje tem pouco a ver com o que assumiu a Presidência em janeiro de 2019 ou com o que, poucos meses atrás, fazia ameaças não tão veladas ao STF. Ele mordeu a língua e sentou gostosamente no colo do centrão.

Cristina Serra - A (in)segurança das barragens

- Folha de S. Paulo

Nova lei não alterou brecha crucial na fiscalização

O Congresso aprovou, e o presidente sancionou, a nova política nacional de segurança de barragens de mineração. Perdeu-se uma excelente oportunidade de aperfeiçoar a fiscalização para tentar evitar a repetição de tragédias como a de Mariana (2015) e a de Brumadinho (2019).

A nova lei não alterou uma brecha crucial na fiscalização. Investigações revelaram graves suspeitas de irregularidades na elaboração dos laudos de estabilidade das barragens das mineradoras Samarco e Vale.

Por que o laudo é essencial? Porque é o documento que as empresas apresentam aos órgãos fiscalizadores atestando que sua barragem está segura.

Oscar Vilhena Vieira* -A arte do encontro

- Folha de S. Paulo

Em carta, papa Francisco propõe o retorno à política como diálogo

Vinicius de Moraes, como dizia Tom Jobim, foi uma figura múltipla, ubíqua, "fosse apenas um, seria Viníciu de Moral". Mesmo assim, causou uma certa surpresa vê-lo citado numa encíclica papal, com direito a aspas e nota de rodapé, ainda mais pelo seu "Samba da Bênção", em parceria com Baden Powell, em que o poetinha se apresenta como herdeiro de Xangô.

Tá certo que não se trata de um papa qualquer, mas de Francisco, que veio do fim do mundo, é torcedor do San Lorenzo e dançarino de tango; ou de uma encíclica propriamente religiosa, como me explicaram alguns entendidos. O documento condensa, em 287 parágrafos, os diálogos e a visão pessoal construída por Francisco sobre a fraternidade e a amizade social, no decorrer de seu pontificado.

Em face dessas peculiaridades, tomo a liberdade de partilhar com os generosos leitores algumas impressões laicas sobre a encíclica, especialmente sobre o conceito de política defendido pelo documento.

Demétrio Magnoli* - Em defesa da Liberdade e Luta

- Folha de S. Paulo

Movimento não se distinguia pelas festas mais divertidas, mas porque seu 'Abaixo a ditadura' tinha validade universal

 Libelu – Abaixo a Ditadura”, de Diógenes Muniz, venceu o festival É Tudo Verdade. Eduardo Escorel, numa crítica aguda, disse que o documentário não é sobre Liberdade e Luta ou sobre a ditadura militar, mas sobre um grupo de sexagenários que revisitam, melancolicamente, sua juventude. Meia verdade: são dois filmes em um.

Há, no filme explícito, uma história dos anos quentes de 1975-79, cujo apogeu foi 1977, quando o movimento estudantil golpeou duramente o regime militar, preparando o tiro fatal desferido pelas greves do ABC lideradas por Lula. Esse documentário ficará, como narrativa envolvente de um período tão decisivo quanto pouco estudado.

Já o filme oculto, cujo argumento foi desvendado por Escorel, perecerá logo, vitimado pelo vírus da irrelevância. Contudo, circunstancialmente, ele ensina algo sobre a atual esquerda brasileira.

 “A minha é uma geração derrotada, pois não conseguimos mudar o Brasil”, lamenta Eugênio Bucci, um dos “libelus” entrevistados. A réplica lúcida aparece na sequência, pela voz de Josimar Melo: “Conquistamos a democracia”. O tom geral melancólico deriva da pouca importância atribuída a essa conquista por vários dos ex-militantes.

João Gabriel de Lima - A falta de prevenção e a tragédia do Pantanal

- O Estado de S.Paulo

A tragédia do Pantanal aponta para o desleixo – ou a negligência – dos governantes

O planeta arde e as matas queimam. Os incêndios florestais se tornaram mais destrutivos com a mudança climática – ambientes mais quentes e mais secos são propícios à propagação do fogo. Colocar a tragédia que assola o Pantanal apenas na conta do aquecimento global, no entanto, seria desonesto. Como explicou o cientista Carlos Nobre no programa Conversa com Bial de segunda-feira, a culpa é nossa: “Trata-se, em grande parte, da prática tradicionalíssima de provocar incêndios para limpar pastos e áreas agrícolas”. Há também, claro, as queimadas criminosas ligadas ao esquema de grilagem de terras.

Fiquemos, no entanto, no âmbito das “práticas tradicionalíssimas”. Existe solução. Com a mudança climática, os protocolos de manejo da terra foram redesenhados. “Práticas comuns no passado não podem mais ser empregadas hoje. Por causa da mudança climática, prevenir incêndios florestais é, atualmente, muito mais importante do que combatê-los”, diz Tiago Oliveira, presidente da Agif, o organismo do governo português responsável por combater incêndios florestais. Ele é o personagem do minipodcast da semana. 

Adriana Fernandes - Renda Cidadã x Renda Brasil

- O Estado de S.Paulo

Quem acredita que vai dar tempo para erguer um novo programa social até o fim de novembro?

Para tudo! O presidente Jair Bolsonaro decretou que até as eleições “não se fala mais nisso daí”. O isso daí são as medidas que precisarão ser tomadas para solucionar um problema que está estampado numa reportagem do Estadão desta semana: o fim do auxílio emergencial deve devolver 15 milhões de brasileiros à pobreza no próximo ano. A previsão foi feita pela FGV Social em levantamento coordenado pelo economista Marcelo Neri, que constata: é cristalino que isso vai acontecer.

Para “varrer o PT do Nordeste”, na expressão de um auxiliar do governo, o presidente e aliados promoveram a prorrogação do auxílio emergencial até dezembro. Mas agora é hora dos aliados ganharem a eleição.

Todos contam com a falta de tempo para a solução do problema para empurrá-lo para 2021 quando o cenário político poderá ser outro com um rearranjo de forças. Quando a eleição acabar (o segundo turno está marcado para o dia 29 de novembro), quem acredita que até lá vai dar tempo para erguer o novo programa social? No Palácio do Planalto, espertamente, já se fala em mudanças por meio de dois programas: Renda Cidadã e Renda Brasil.

Dom Odilo P. Scherer* - Papa Francisco, a aposta na fraternidade

- O Estado de S.Paulo

Na encíclica ‘Fratelli Tutti’ pontífice convida a repensar o mundo de forma mais aberta

Fratelli Tutti, ou, em português, Todos Sois Irmãos, é o título da nova encíclica do papa Francisco, publicada no último dia 4 de outubro. Trata-se de um documento de ensino social da Igreja Católica, mediante o qual o papa reflete sobre algumas questões sociais atuais, que afligem a humanidade. E o faz partindo do coração do Evangelho, onde o amor a Deus e o amor ao próximo se encontram inseparavelmente vinculados.

É convicção cristã que a humanidade, apesar de suas diferenças, é uma grande família de irmãos, que tem Deus por pai e Jesus Cristo como irmão e mestre de todos. Essa é, por assim dizer, uma cláusula pétrea do ensinamento cristão, que também fundamenta todo discurso social, econômico e político da Igreja.

Francisco parte das situações dramáticas atuais vividas pela humanidade, destacando a fragmentação da consciência solidária e a afirmação sempre maior de uma cultura e de um estilo de vida individualistas. Aponta para a falta de projetos consistentes para alcançar o bem comum local e universal; refere-se à exclusão de amplos grupos de indesejados e descartados; lamenta que os direitos humanos sejam cada vez menos universais e voltados, mais e mais, para a afirmação de interesses particularistas; fala do desvirtuamento dos sonhos da globalização, do progresso e do desenvolvimento, bem como da dignidade negada a tantos seres humanos, da comunicação “sem sabedoria, agressiva e despudorada” e da perda da esperança. E não deixa de se referir à crise ecológica e ambiental, que ameaça a destruição de nossa casa comum e o futuro da vida.

Almir Pazzianotto Pinto* - Breve história do STF

- O Estado de S.Paulo

Supremo deve aplicar a Constituição quando provocado e defendê-la quando exigido

O Supremo Tribunal Federal (STF) tem raízes profundas na Casa da Suplicação do Brasil, criada por dom João VI após a chegada da Casa Real portuguesa, em 1808. Proclamada a Independência, a Constituição Imperial de 1824, outorgada por dom Pedro I, instituiu o Supremo Tribunal de Justiça, “composto de Juízes letrados, tirados das relações por suas antiguidades”, os quais eram “condecorados com o título de Conselheiros” (artigo 163). Relações era o nome dado a tribunais existentes nas províncias, destinados ao julgamento em segunda e última instância, “para a comodidade dos povos” (artigo 158).

A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 1891, criou o Supremo Tribunal Federal (artigo 55). Na Constituição de 1934 a denominação passou a ser Corte Suprema (artigo 73). O nome Supremo Tribunal Federal foi restabelecido pela Carta Constitucional de 1937 e preservado nas Constituições de 1946, 1967, 1969 e 1988.

Na frase ácida e definitiva de João Mangabeira, encontrada no livro Rui o Estadista da República, “o órgão que, desde 92 até 937, mais falhou à República não foi o Congresso; foi o Supremo Tribunal (...). O órgão que a Constituição criara para seu guarda supremo, e destinado a conter, ao mesmo tempo, os excessos do Congresso e as violências do Governo, a deixava desamparada...” (Ed. Livraria Martins, SP, 3.ª ed., páginas 69/70).

A vaga aberta com a aposentadoria do ministro Celso de Mello, anunciada para 13 deste mês, não é de fácil preenchimento, diante das qualidades intelectuais e morais do ilustre magistrado. Concede, porém, ao presidente Jair Bolsonaro o direito de lhe indicar o sucessor. Quais os requisitos impostos pela Constituição para a indicação de magistrado dos tribunais superiores e do Supremo? São quatro. Dois de natureza objetiva: ser cidadão, ter mais de 35 e menos de 60 anos de idade. E dois de caráter subjetivo: notável saber jurídico e reputação ilibada. Os primeiros se provam com mera exibição de documentos, os segundos dependem da interpretação do presidente da República. A Lei Fundamental não cobra amizade com o chefe do Poder Executivo ou crença religiosa.

Cristovam Buarque* - Todas as florestas

- O Globo

Governo federal comete uma loucura irresponsável na Amazônia

Faz 20 anos, O GLOBO publicou o artigo “Um mundo para todos”. Nele, transcrevi a resposta à pergunta de um estudante durante palestra na cidade de Nova York, em setembro de 2000. O jovem perguntou: “O que pensa de internacionalizar a Amazônia?”. Antes que eu começasse a dizer “sou contra”, ele completou: “Quero opinião de humanista, não de brasileiro”.

Respondi que defenderia a internacionalização da Amazônia se antes fossem internacionalizados os museus, as armas, o petróleo, os patrimônios históricos, rios e florestas do mundo inteiro. Depois de uma longa lista do que julgava que deveria ser internacionalizado, concluí: “Quando a humanidade internacionalizar tudo isso, aceito debater a ideia de internacionalizar a Amazônia. Até lá, a Amazônia é nossa. Só nossa!”.

Graças ao artigo, a resposta foi traduzida em diversos idiomas e entrou na coletânea de “Cem discursos históricos brasileiros”, elaborada por Carlos Figueiredo. Anos depois, o fotógrafo Sebastião Salgado me disse que não gostava da última frase.

Ele estava certo. O discurso deveria concluir com uma frase adicional: “Mas, se não soubermos proteger a Amazônia, não merecemos, nem conseguiremos tê-la para sempre”.

Raul Jungmann* - A armadilha de Tucídides

- Capital Político

“O medo de ser superada por Atenas, levou Esparta à guerra”, afirmou o general e historiador ateniense Tucídides, que viveu entre os anos 460 e 400 a.c. Sua principal obra, “História da Guerra do Peloponeso”, tornou-se um clássico por sua preocupação com o exame cuidadoso dos fatos, o que não era costume à época.

Ele ainda foi precursor da imunização ao notar que os atenienses que caiam doentes numa pandemia, numa segunda rodada ficavam imunes. A armadilha de Tucídides pode ser usada na interpretação das causas das guerras, a exemplo da I Guerra Mundial, que opôs Inglaterra e França à ascensão vertiginosa da Alemanha, a Guerra do Paraguai ou, ainda, ao longo conflito entre os Estados Unidos e a União Soviética, que só não desandou numa guerra, devido ao risco de destruição mútua, via confronto nuclear.

No presente, estamos assistindo a algo similar no confronto entre a China e os Estados Unidos, líder global crescentemente desafiado pelos chineses, nos campos bélico, econômico e tecnológico. Em “Destinados à Guerra”, Graham Wilson afirma que o que definirá a ordem mundial futura é se os EUA e China conseguirão evitar cair na armadilha de Tucídides.

Já Henry Kissinger, no último capítulo do seu livro “Ordem Global”, espera que as duas nações ainda possam cooperar entre si. No passado, nações conseguiram escapar de serem tragadas pelo confronto em situação semelhante, ao custo de ajustes compulsórios que exigiram extraordinária energia e liderança política, internamente e entre o desafiante e o desafiado.

Murillo de Aragão - O poder e a gastronomia

- Revista Veja

O caminho do entendimento a partir de uma refeição

Brasília tem sido agitada por uma sucessão de jantares. São encontros recorrentes que ganharam relevância por causa dos desafios impostos pela pandemia e pela política fiscal. Sobre esse assunto, dois aspectos devem ser considerados.

O primeiro é que a sequência de eventos é um bom sinal. Revela que há a vontade de se expor ao diálogo e o reconhecimento de que não existe monopólio de poder. O segundo aspecto é que se trata do processo de construção de consensos. Em torno da mesa se confrontam divergências e se buscam soluções. Não é um fenômeno novo.

Pelo menos desde os anos 80, quando os ventos da democracia voltaram a soprar no Brasil, almoços e jantares sempre foram espaços de entendimento, conspiração, lobby e agendas de poder. Restaurantes de Brasília foram templos de negociação. Ulysses Guimarães, no Piantella, tinha a sua turma do poire, que articulou a derrubada do regime militar nas eleições indiretas de 1985.

Na Constituinte, entre 1986 e 1988, Luís Eduardo Magalhães, filho de ACM e deputado constituinte pelo PFL, e José Genoíno, deputado e líder do PT, dois políticos de campos opostos, atravessaram noites conversando e se entendendo. Ou, pelo menos, reduzindo as diferenças.

Marcus Pestana* - O dilema das redes e o futuro de todos nós

Ninguém ousa negar a centralidade das plataformas digitais e das redes sociais na vida contemporânea. Mas, cada vez mais se ascende a polêmica sobre a crescente capacidade de manipulação das gigantes da comunicação digital. Os efeitos positivos das redes sociais são inegáveis. Mas a polêmica que ganha corpo é: a que custo? Quais são os efeitos colaterais? As disfunções estariam superando os benefícios?

Já recomendei aqui dois filmes da NETFLIX, o documentário “Privacidade hackeada” sobre a manipulação de dados do Facebook na eleição de Trump em 2016, e o drama polonês “Rede do Ódio”, sobre consequências dramáticas da manipulação política das plataformas. Agora em setembro foi lançado o documentário de Jeff Orlowsky, “O dilema das redes”, que vem despertando enorme polêmica. Para alguns, exagerado e sensacionalista. Para outros, um grave alerta sobre o futuro que estamos construindo.

Depois dos gritos de guerra, o acordo de paz entre os poderes

A distensão entre o governo, o Congresso e o STF começou quando Bolsonaro entendeu os riscos da sua postura anterior

Thiago BronzattoLaryssa BorgesMarcela Mattos | Revista Veja

Não bastasse a crise econômica e sanitária decorrente da pandemia de Covid-19, o Brasil enfrentou recentemente um sério risco de ruptura institucional. Contrariado com decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) que usurpariam competências do presidente da República e teriam o objetivo de desestabilizar o seu governo, Jair Bolsonaro radicalizou o discurso, redobrou a aposta no confronto e — com base numa interpretação capenga da Constituição — cogitou usar as Forças Armadas para intervir no Poder Judiciário. As ameaças eram feitas à luz do dia. Em abril, Bolsonaro participou de uma manifestação em frente ao Quartel-General do Exército que pedia, entre outras coisas, o fechamento do Supremo e do Congresso. Em maio, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, divulgou nota a fim de alertar sobre “consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional” caso a Justiça determinasse o confisco do celular do presidente, o que não ocorreu. Sob a alegação de ser vítima de uma conspirata destinada a derrubá-lo do cargo, Bolsonaro, apoiado pelos ministros militares, revidava com a insinuação de um golpe.

“Foi um momento em que estivemos muito perto da ruptura institucional”, admitiu a VEJA um dos principais auxiliares do presidente. Para sorte do país, o momento, agora, é outro. Premido pelas circunstâncias, Bolsonaro deixou de lado o radicalismo e substituiu a estratégia do confronto pela negociação política, aquela que ele, como candidato, dizia repudiar. O resultado, por enquanto, é positivo: o cenário de instabilidade de meses atrás deu lugar à retomada do diálogo entre as autoridades dos três poderes, o que abre espaço para que elas possam finalmente concentrar energia nas demandas mais urgentes do país, da recuperação econômica ao combate da desigualdade social, passando pela modernização do Estado. “Sem a política, não há como fazer nada. Se fica um com birra para cá e o outro com birra para lá, sem conversar, o Brasil perde muito”, afirma o senador Renan Calheiros (MDB-AL), um dos mais experientes parlamentares do país, que até ontem se alinhava com a oposição. Desde o início de seu mandato, Bolsonaro nunca fez tanta política como agora. Nos últimos dias, ele escolheu um nome para o cargo de ministro do Supremo que agrada tanto a integrantes da Corte quanto a congressistas, inclusive do PT. Por meio de aliados, Bolsonaro também reuniu numa mesma mesa o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e o ministro da Economia, Paulo Guedes, que ficaram praticamente um ano inteiro trocando provocações e impropérios em público.

O que a mídia pensa – Opiniões / Editorias

Um avanço notável – Opinião | Revista Veja

Goste-se ou não das alianças no Congresso ou de sua indicação para o Supremo, o fato é que Bolsonaro se livrou de uma postura que causava instabilidade

Ao contrário dos Estados Unidos, que têm eleições presidenciais ininterruptas desde 1789, a democracia brasileira sofreu dois longos períodos de descontinuidade desde a proclamação da República, em 1889. Na última oportunidade, durante a ditadura militar, foram 29 anos sem que os eleitores pudessem escolher o presidente. A retomada aconteceu em 1989, com a vitória de Fernando Collor de Mello — de lá para cá, houve uma sequência de pleitos sem sobressaltos. Embora tenha demonstrado vigor, ancorado em instituições cada vez mais fortes, o sistema democrático brasileiro, convém lembrar, é jovem — e, portanto, sujeito a retrocessos. Daí a imensa preocupação desde a posse de Jair Bolsonaro. Dono de uma carreira singular, o presidente construiu sua trajetória política numa espécie de bolha, com pouca capacidade de negociação e um discurso voltado para nichos muito específicos, principalmente os militares. Nessa jornada, por diversas vezes, demonstrou desprezo pela democracia e pelas liberdades individuais.

Uma vez no Palácio do Planalto, o presidente infelizmente não surpreendeu positivamente. Por meio de postagens desastradas no Twitter e comentários pouco cautelosos, entrou em conflito com o Congresso e o Supremo Tribunal Federal com preocupante frequência. Até muito recentemente, fazia do confronto permanente a sua estratégia de negociação, um processo que poderia levar o país a um ponto de ruptura entre as instituições. Para piorar, incentivava uma claque de desajustados que organizavam manifestações pedindo a volta da ditadura e o fechamento do Parlamento e do STF. Numa dessas ocasiões, um desses desvairados soltou fogos de artifício em frente ao tribunal. Uma cena lamentável que, ao lado de outras aberrações, virava rotina em Brasília. Em todos esses momentos, VEJA foi rigorosa, ao registrar tais barbaridades e atropelos em capas, longas reportagens e críticas veementes na Carta ao Leitor. Afinal, a defesa intransigente da democracia e das instituições é parte inegociável da nossa missão e de nossos valores.

Poesia | Manuel Bandeira - No vosso e em meu coração

a Federico García Lorca

Espanha no coração
No coração de Neruda,
No vosso e em meu coração.
Espanha da liberdade,
Não a Espanha da opressão.

Espanha republicana:
A Espanha de Franco, não!
Velha Espanha de Pelaio,
Do Cid, do Grã-Capitão!
Espanha de honra e verdade,
Não a Espanha da traição!

Espanha republicana:
A Espanha de Franco, não!

Espanha dos grandes místicos,
Dos santos poetas, de João
Da Cruz, de Teresa de Ávila
E de Frei Luís de Leão!
Espanha da livre crença,
Jamais a da Inquisição!
Espanha de Lope e Góngora,
De Góia e Cervantes, não
A de Felipe II
Nem Fernando, o balandrão!
Espanha que se batia
Contra o corso Napoleão!

Espanha da liberdade:

A Espanha de Franco, não!
Espanha republicana,
Noiva da Revolução!
Espanha atual de Picasso,
De Casals, de Lorca, irmão
assassinado em Granada!
Espanha no coração
De Pablo Neruda, Espanha
No vosso e em meu coração!

Espanha de Dom Rodrigo,
Não a do Conde Julião!

* Manuel Bandeira, em “Poesia completa e prosa – Manuel Bandeira”. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 5ª ed., 2009.