sábado, 17 de outubro de 2020

Merval Pereira - Falta de decoro

- O Globo

Mais uma vez estamos diante de uma disputa entre Poderes da República, e de membros de poderes entre si, que não dignifica o papel do Senado como instituição. Alegar que um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) não pode suspender o mandato de um senador eleito pelo povo é uma falácia, pois, se a lei manda consultar o Senado, será sempre dele a palavra final.  

Por isso, o que estará em votação é a permanência em atividade de um senador que foi apanhado em flagrante tentando esconder dinheiro ilegal da maneira mais baixa já registrada nos anais policiais envolvendo nossas excelências.  

Esse compadrio que começa a tomar conta dos senadores reflete apenas o temor de que seja um deles a próxima vítima de batidas policiais. A maioria está espantada com o despreparo de um “senador experiente” que não soube se desvencilhar da prova do crime, ou não teve sangue frio para assumir a posse desse dinheiro sem se auto denunciar no gesto extremo.   

Não pelo local em si em que o senador Chico Rodrigues, um septuagenário, pretendeu esconder a bufunfa que roubou, segundo a Polícia Federal, da verba extraordinária que conseguiu para ajudar os povos indígenas durante a pandemia. Maior prova de falta de decoro não poderia ter havido.  

Quando lembramos que o  deputado federal Barreto Pinto teve que renunciar apenas porque apareceu numa fotografia de O Cruzeiro de cueca e fraque, vítima de um truque do repórter David Nasser que garantiu ao senador que apenas a parte de cima apareceria na foto, vemos como regredimos. As cuecas de Barreto Pinto não guardavam nada além de suas partes íntimas, já as do senador Chico Rodrigues guardavam dinheiro roubado. Sair de cueca numa foto era um crime contra o decoro no tempo em que se tinha noção do que seja decoro parlamentar.  

Ascânio Seleme - Um político vulgar

- O Globo

Episódio do dinheiro “entre as nádegas” de Chico Rodrigues é mais um símbolo que servirá para balizar estes tempos

 Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja”. João Guimarães Rosa inicia assim “Grande sertão: veredas”, um dos mais extraordinários romances da língua portuguesa. “Não tem nada a ver (...) querer vincular o fato de ele ser vice-líder com a corrupção do governo”. Jair Bolsonaro encerra desta forma uma das últimas farsas do seu mandato. Referia-se ao senador Chico Rodrigues (DEM-RR), flagrado pela Polícia Federal com dinheiro na cueca, e que, segundo o presidente, “gozava de prestígio e carinho de quase todos”.

Na verdade, Bolsonaro enterrou muito antes a promessa de fazer um governo honesto, distante da banda podre do Congresso Nacional. O primeiro passo foi deixar embarcar no seu bonde a velha e conhecida turma do centrão. O senador de Roraima é um quase nada se comparado aos próceres daquele agrupamento. Gente como Arthur Lira, Ricardo Barros, Ciro Nogueira e Valdemar Costa Neto responde a todo tipo de ação na Justiça: fraude em licitações, formação de quadrilha e organização criminosa, lavagem de dinheiro, enriquecimento ilícito e até violência doméstica. O centrão foi criado pelo ex-deputado Eduardo Cunha, que se solto estivesse, certamente apoiaria o governo.

O episódio do dinheiro “entre as nádegas” de Chico Rodrigues é mais um símbolo que servirá para balizar estes tempos. Da mesma forma que um outro episódio de dinheiro escondido na cueca marcou o governo Lula em 2005, quando um assessor do líder do PT José Guimarães foi detido num aeroporto de São Paulo com R$ 100 mil escondido nos fundilhos. Símbolos não faltam nos dias de hoje. No caso da corrupção, houve dois, este do senador da cueca e o da demissão do ministro Sergio Moro. Ou mais, se você quiser incluir os casos das rachadinhas dos filhos que obrigou a aproximação do pai ao Supremo.

Míriam Leitão - O Brasil vai de Mello a Mello

- O Globo

Foi uma semana marcante. O ministro Celso de Mello encerrou seu tempo no Supremo Tribunal Federal (STF) deixando a sensação de que 31 anos podem ser poucos, que sai quando é ainda necessário ao país. O STF foi tragado por uma voragem conflituosa envolvendo o novo decano, Marco Aurélio Mello, e o presidente Luiz Fux. Os dois Mellos não têm qualquer parentesco em nenhum sentido da palavra, mas os eventos ajudam a refletir sobre o Supremo e o país.

Não poderiam ser mais distantes os estilos dos dois decanos, o que sai e o que entra. Celso de Mello era construtor de maiorias, era a pessoa para a qual os pares olhavam, Marco Aurélio é um lobo solitário e passa a impressão de que o debate no colegiado importa menos do que marcar sua singularidade. Sempre preferiu votos indiossincráticos, amparados em teorias por vezes incompreensíveis aos mortais. Com grande frequência terminava sozinho, como nesta semana com o placar de nove a um. Recebeu o conforto das reprimendas dos colegas ao ato de Fux de cassar sua liminar, mas o desagrado de ver que ninguém daria liberdade ao traficante André do Rap.

Marco Antonio Villa - Aprender com 1930

- Revista IstoÉ

O panorama atual é bem diverso. O País está amorfo, naquele, como diria Monteiro Lobato, mutismo de peixe

Tivemos, no Brasil, o momento mais complexo deste século. Há uma junção de crises: econômica, política, sanitária e de valores. Para piorar há também uma ausência de lideranças em todos os setores, mais precisamente uma crise das elites. Assim como no futebol, o vazio acabou sendo ocupado. E por indivíduos absolutamente sem preparo frente a desafios tão grandes. Os 21 meses do governo Bolsonaro demonstram de forma inequívoca que sem uma profunda renovação política o país tende à paralisação, sem condições de poder enfrentar os graves problemas nacionais.

O Brasil passou no século passado por uma turbulência tão ou mais grave que a atual. Se reportarmos a crise de 1929 podemos observar que ao desastre econômico foi somado uma grave crise política, a sucessão presidencial de Washington Luís, que acabou conduzindo à Revolução de outubro de 1930. As condições para a recuperação econômica eram muito mais difíceis que as atuais. O Brasil dependia na pauta das exportações fundamentalmente do café. Tínhamos uma tímida diversificação econômica. E sérios problemas estruturais. Mas, diversamente dos tempos atuais, havia lideranças e planos, muitos planos para sair da crise, entre as diversas correntes políticas.

Hélio Schwartsman – Ciência em ação

- Folha de S. Paulo

Jair Cloroquina Bolsonaro e Donald Lysol Trump não dão pelota a especialistas

Não me parece muito prudente a posição dos mais de 6.000 cientistas e médicos que assinaram uma carta aberta pedindo aos governos dos EUA e do Reino Unido que estimulem a circulação de jovens para atingir a imunidade de rebanho, mas acho importante que esse tipo de manifestação ocorra e gere discussões.

A polarização política fez com que dividíssemos os governantes no campo dos que seguem a ciência e no dos que a rejeitam. Não há a menor dúvida de que dirigentes como Jair Cloroquina Bolsonaro, Donald Lysol Trump e Alexander Sauna & Vodca Lukashenko agem sem dar pelota para o que os especialistas têm a dizer sobre a pandemia, mas daí não decorre que a ciência tenha respostas únicas e inequívocas para todas as nossas perguntas. Pelo contrário, se há algo que caracteriza a ciência (ainda que não os cientistas) é a dúvida metódica e o ceticismo em relação a suas próprias conclusões. Em ciência, até as certezas são necessariamente provisórias.

Cristina Serra - Generais e seus labirintos

- Folha de S. Paulo

Villas-Bôas não destoa da atuação histórica das Forças Armadas no Brasil


Passou quase em branco informação importante publicada nesta Folha para a reconstituição dos bastidores do golpe parlamentar que derrubou Dilma Rousseff (ou alguém aqui ainda acredita em pedaladas fiscais?). A colunista Camila Mattoso, no Painel, informou que, um ano antes do impeachment, o vice, Michel Temer, teve um encontro sigiloso com o então comandante do Exército, Eduardo Villas-Bôas, e o chefe do Estado Maior, Sérgio Etchegoyen.

A revelação foi feita pelo filósofo e amigo de Temer, Denis Rosenfield, que intermediou o encontro. Segundo ele, o comandante o procurou porque os militares estavam "preocupados com o país". Etchegoyen foi nomeado ministro da Segurança Institucional de Temer. Villas-Bôas é o general tuiteiro que se tornou uma espécie de tutor-geral da República, com desenvoltura suficiente para postar ameaças ao STF quando bem entende.

Alvaro Costa e Silva - O pós-turismo de Bolsonaro na 'Cancún brasileira'

- Folha de S. Paulo

Depois da destruição do Pantanal e da Amazônia, governo volta-se para o litoral de Angra dos Reis

Só comunistas, antipatriotas e maconheiros não admitem: em seu projeto de destruição ambiental, o governo é um sucesso. Bem encaminhados os desastres pantaneiro e amazônico, a sanha volta-se agora para o litoral de Angra dos Reis.

A repórter Ana Luiza Albuquerque revelou que Bolsonaro está de olho na ilha do Sandri, a maior entre as 29 que integram a Estação Ecológica de Tamoios, criada em 1990 como contrapartida à instalação de usinas nucleares na região e em cuja extensão é proibido ancorar barcos, desembarcar e fazer edificações.

A investida —que conta com a subserviência do prefeito Fernando Jordão (MDB)— é parte do plano para transformar Angra dos Reis na "Cancún brasileira". É um velho sonho do presidente: entupir a faixa litorânea de enormes hotéis e resorts com piscinas interligadas e réplicas do Hard Rock Cafe. A sensação do turista, com a cabeça entorpecida pelo reggaeton, é que está não no México, mas nos Estados Unidos. Dá até pena do lindo mar azul do Caribe.

Demétrio Magnoli* - A cadeira do juiz

- Folha de S. Paulo

Juízes que fazem política fracassan duas vezes, como políticos e como magistrados

Amy Coney Barrett, a juíza indicada à Suprema Corte dos EUA, é uma originalista. Os fundamentalistas religiosos querem que as sociedades se curvem aos textos sagrados “tal como foram escritos”.

Os juízes originalistas são fundamentalistas constitucionais: ignoram a dinâmica histórica em nome de um literalismo absoluto. Mas, paradoxalmente, a confirmação de Barrett descortina a possibilidade de um necessário reordenamento da democracia americana. Além disso, ajuda o Brasil a diagnosticar a moléstia que debilita o STF.

Na ponta oposta dos originalistas encontram-se os neoconstitucionalistas, representados no STF por Luís Roberto Barroso. A corrente jurídica acredita que a norma formal (o que está escrito) deve se subordinar à norma axiológica (os princípios morais genéricos inspiradores da Constituição).

O juiz converte-se, a partir daí, em intérprete livre do texto legal, com a prerrogativa de infundir-lhe significados que contrariam seus significados explícitos. Abre-se a autopista do ativismo judicial: o sopro purificador do juiz-ativista produz legislação, ocupando a cadeira dos parlamentares.

João Gabriel de Lima - O grid de largada e a ‘escuderia Bolsonaro’

 

- O Estado de S.Paulo

Eleições municipais definem o ‘grid de largada’ para o próximo pleito presidencial

Os dias anteriores às eleições municipais são úteis para que o eleitor compare os candidatos. O monitor do Estadão fez um excelente cotejo de propostas, e esta coluna iniciará na próxima semana uma série de podcasts sobre os principais temas do debate.

Existe, no entanto, outro aspecto nas eleições municipais brasileiras. Descasadas das federais e estaduais, elas definem uma espécie de “grid de largada” para o próximo pleito presidencial. Prefeitos de grandes capitais se credenciam automaticamente a disputar o Planalto – como ocorreu recentemente com Fernando Haddad. O xadrez das prefeituras também define, entre as candidaturas presidenciais já insinuadas, quem jogará com vantagem.

O tabuleiro deste ano apresenta um componente extra. O presidente da República não tem partido e é candidatíssimo à própria reeleição. Em que condições ele vai emergir dos pleitos municipais?

Bolívar Lamounier* - Nossa infindável fragilidade

- O Estado de S.Paulo

A chance de Brasília fazer uma reforma política e administrativa séria é remota

A pandemia e a certeza de que tão cedo não teremos um ajuste fiscal seguro trouxeram de volta a preocupação com a fala de “resiliência” do sistema político brasileiro. Esse termo significa que nosso Estado cambaleia toda vez que se depara com situações muito negativas.

Triste é constatar que essa joia do jargão politológico não diz nem metade do que precisa ser dito. A fragilidade da organização política brasileira não é ocasional. Não se manifesta somente quando batemos de frente com algum obstáculo poderoso. Trata-se de uma fragilidade mal compreendida, abissal, que deriva de várias causas e produz efeitos crudelíssimos sobre as parcelas mais vulneráveis da sociedade. Seu aspecto mais perceptível é o que Ricardo Noblat certa vez denominou “o céu dos favoritos”. A fauna brasiliense compõe-se de numerosas espécies que diferem em quase tudo, menos no apetite. E na volúpia. Habitam os três Poderes e se valem deles para se apropriarem de cifras estratosféricas, sob a forma de salários, de ajudas de custo, das cotas ministeriais que alimentam o famigerado “presidencialismo de coalizão” e de assessores-de-coisa-alguma, sem esquecer as proverbiais “rachadinhas”. Com as exceções de praxe, claro.

Adriana Fernandes - Ouvidos moucos

- O Estado de S.Paulo

A economia brasileira vive um dos momentos mais delicados dos últimos anos

Em entrevista ao Estadão, o ex-presidente do Banco Central Affonso Celso Pastore não poderia ter definido melhor o quadro da política em Brasília nos dias atuais. Para ele, o presidente Jair Bolsonaro e os congressistas teimam em não entender a situação da economia e da escalada acelerada de deterioração da percepção de risco do País. Fazem ouvidos moucos.

O resultado é que o Brasil poderia estar agora aproveitando uma onda mais positiva após as medidas de mitigação dos efeitos da pandemia da covid-19, que impediram um tombo maior da economia, e vêm sustentando o processo de recuperação neste segundo semestre.

Ao contrário, o Brasil vive um dos momentos mais delicados dos últimos anos e isso pode se agravar se governo e Congresso continuarem errando a mão. Qualquer que seja a solução, será preciso encontrá-la urgentemente. Até agora, porém, está todo mundo perdido em Brasília e atirando cada qual para um lado: não faltam propostas e sobra inação.

A mais recente ideia é a de criação de um fundo para receber receitas de renúncias tributárias e desonerações para deixar as despesas com o novo programa social fora do teto de gastos. Variações do mesmo tema.

Marcus Pestana* - Trump, Biden e o Brasil

Os americanos irão às urnas no próximo dia 3 de novembro. Será a 59ª. eleição presidencial da maior democracia das Américas. Os impactos irão muito além das fronteiras dos EUA. 

O ambiente que cerca as eleições é dramático. São quase 8 milhões de infectados pela Covid-19 e mais de 216 mil mortes, diante de um Trump negacionista, que desafiou permanentemente a ciência, deseducou e desmobilizou a população em relação à prevenção e ao distanciamento social e confrontou prefeitos e governadores. 

São mais de 16 milhões de desempregados e uma perspectiva de queda do PIB americano que deve superar 4%. Além disso, a questão racial explodiu nas ruas com uma radicalidade que há muito não se via, desde a morte de George Floyd.

Com seu estilo populista-autoritário, diante de tão grave situação econômica, sanitária, social e racial, Trump não refrescou, não buscou unir o país, ao contrário, jogou lenha na fogueira do dissenso, da discórdia e da polarização.

Desde a sua independência em 1783 e da Constituição americana de 1789, os EUA, ao lado da Inglaterra e França, são os grandes esteios da democracia moderna. Um abalo na dinâmica e nas instituições democráticas americanas em pleno século XXI seria um péssimo exemplo e estímulo para outros líderes populistas autoritários confrontarem os valores permanentes da liberdade e da democracia. 

O que a mídia pensa – Opiniões / Editoriais

O paradoxo brasileiro – Opinião | Revista Veja

Os acusados são soltos quando deveriam estar presos; e são presos, a depender do caso, quando melhor seria que estivessem soltos

No mundo da aviação, sabe-se que, por trás de todo acidente aéreo, há uma sequência de erros que explica o triste episódio. Quase sempre é uma sinistra combinação de falhas humanas com as de equipamentos. Se nem todos esses equívocos tivessem acontecido simultaneamente, a catástrofe seria evitada e as vidas que se perderam com a queda da aeronave poderiam ser preservadas. Guardadas todas as proporções, a libertação do traficante André do Rap tem semelhanças com a soma de imperfeições que leva um avião a se destroçar em solo. Membro graduado de uma das facções mais perigosas do Brasil, o criminoso se beneficiou de uma sucessão de desacertos, que inclui a perda de prazo para a prorrogação de sua prisão, passa pelo mau funcionamento dos sistemas do STF e culmina em uma tentativa inoportuna do ministro Marco Aurélio Mello de marcar posição. Uma diferença de apenas algumas horas e o delinquente ainda estaria na cadeia, lugar apropriado para quem desempenha sua atividade.

Mas além das falhas e brechas que permitiram a libertação de um malfeitor de alta periculosidade, a trajetória de André do Rap revela, numa perspectiva mais profunda, um outro mal que põe em risco a segurança dos cidadãos brasileiros: as engrenagens que abastecem as fileiras do PCC, a maior e mais ameaçadora facção criminosa do país. Aos 19 anos, ele foi preso pela primeira vez com trinta papelotes de cocaína, em Santos. Não portava armas nem tinha antecedentes criminais, mas, como estava acompanhado de um comparsa de 17 anos, recebeu um agravamento de pena por corrupção de menores, sendo levado para o Carandiru, o famoso presídio paulista extinto em 2002. Começava ali mais uma carreira no mundo do crime. Considerado inteligente e educado pelos colegas, André acabou sendo recrutado pelo PCC em troca de segurança na penitenciária. Fora dela, pagou sua dívida com a organização transformando-se em um de seus líderes.

Poesia | Fernando Pessoa - Azuis os Montes

Azuis os montes que estão longe param.

De eles a mim o vário campo ao vento, à brisa,

Ou verde ou amarelo ou variegado,

Ondula incertamente.

Débil como uma haste de papoila

Me suporta o momento.  Nada quero.

Que pesa o escrúpulo do pensamento

Na balança da vida?

Como os campos, e vário, e como eles,

Exterior a mim, me entrego, filho

Ignorado do Caos e da Noite

Às férias em que existo.