terça-feira, 20 de outubro de 2020

Opinião do dia – Fernando Gabeira*


“O que surgiu depois, para completar a semana, é chocante: um nobre senador, literalmente, enchendo o rabo de dinheiro.

Seria engraçado se o dinheiro não fosse destinado a atender às vítimas da Covid-19 e se este governo metido a sério não estivesse destruindo nossos recursos naturais num ritmo alucinante.

Isso só reforça o que escrevi há algum tempo: não há nada mais importante para todos do que combater Bolsonaro. Não estou propondo amar uns aos outros. Vamos sair dessa, depois conversamos, ou brigamos, se preferirem.”

*Fernando Gabeira, jornalista. “Dinheiro nas nádegas, a pátria no coração” , O Globo, 19/10/2020.

Merval Pereira - Senado exposto

- O Globo

A credibilidade pública do Senado enfrentará esta semana tarefas difíceis que as circunstâncias uniram em poucos dias. Caberá aos senadores aprovar a indicação do atual ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência Jorge Oliveira para uma vaga do Tribunal de Contas (TCU) que não existe ainda; sabatinar para a vaga no Supremo Tribunal Federal (STF) o desembargador Kássio Marques, acusado de adulterar seu currículo e de plágio; e tentar salvar o mandato do senador Chico Rodrigues, flagrado pela Polícia Federal com notas de R$ 200,00 escondidas em suas partes íntimas.

A falta de compostura do presidente Bolsonaro veio novamente à tona nas indicações apressadas de seus candidatos ao TCU e ao STF. Quando anunciou que Kassio Marques era o escolhido, a vaga do ministro Celso de Mello ainda não existia, o que havia era data anunciada por ele para se aposentar.

As boas maneiras republicanas, seguidas por todos os presidentes da República, mandam que o nome do sucessor só seja divulgado depois da abertura oficial da vaga, uma média de 150 dias. A mais rápida dos últimos governos foi a indicação do falecido ministro Carlos Alberto Direito seis dias depois da publicação da aposentadoria de Sepulveda Pertence.

Como estamos em tempos estranhos, a maioria dos senadores já fez sua sabatina particular com Kassio Marques em jantares presenciais e conversas digitais, e tudo indica que nem seu currículo fajuto, nem as circunstâncias em que seu nome surgiu do nada, serão levados em conta na hora de sabatiná-lo. O importante é ter entre os ministros do STF mais um “garantista” que vê exageros na Operação Lava Jato.

Também a sabatina de Jorge Oliveira para um cargo que não existe acontecerá no Senado. A melhor definição da situação está no despacho do ministro Dias Toffoli negando ação do senador Alessandro Vieira que queria impedir a sabatina sob a alegação de que a vaga só será aberta em dezembro, quando o ministro José Mucio anunciou que se afastará do TCU.

Andrea Jubé - A eleição da Mesa e a dança das cadeiras

- Valor Econômico

Fábio Faria, Guedes, Maia, Renan e Kátia: todos por um

Aos trancos e barrancos, com a democracia equilibrando-se na corda bamba por um período, o governo do presidente Jair Bolsonaro engrenou e está cada dia mais parecido com um governo convencional pós-retomada democrática, sustentado pelos partidos do Centrão.

É nesse cenário que soa natural a reforma ministerial que se avizinha. Cada vez mais pragmático, como todo político, Bolsonaro está sendo convencido por aliados a promover uma reforma ministerial após a eleição para as Mesas Diretoras da Câmara e do Senado em fevereiro.

O objetivo será recompor espaços e consolidar a base governista no Congresso, a fim de garantir a governabilidade e começar a alinhavar as alianças para a reeleição.

Bolsonaro já negou, e para não perder o costume, chamou de “fake news” as primeiras notícias sobre as iminentes mudanças no time de auxiliares.

Contudo, aliados de seu núcleo mais próximo confirmaram à coluna, reservadamente, o movimento nos bastidores, que dependerá dos resultados das eleições para a sucessão de Rodrigo Maia (DEM-RJ) na Câmara e Davi Alcolumbre (DEM-AP) no Senado.

Como já se sabe, a dança das cadeiras começa com a nomeação do ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira, para a vaga de José Múcio Monteiro no Tribunal de Contas da União (TCU). Múcio deixa a cadeira em dezembro.

Ricardo Noblat - A saída imoral para salvar o senador do dinheiro na cueca

- Blog do Noblat | Veja

E não atrapalhar a reeleição de Alcolumbre

O senador Jayme Campos (MT), presidente do Conselho de ética do Senado, sugeriu, ontem, que seu colega Chico Rodrigues (RR), flagrado com 33 mil reais escondidos na cueca, metade entre as nádegas, peça licença do mandato por 120 dias.

A sugestão tem duas razões de ser. A primeira: deixar que o caso esfrie para que Rodrigues salve o mandato. A segunda: tirar Rodrigues de circulação para evitar que seu caso atrapalhe a reeleição para presidente do Senado de Davi Alcolumbre (AP).

Campos, Rodrigues e Alcolumbre são do mesmo partido, o DEM. A eleição do próximo presidente do Senado será na primeira semana de fevereiro de 2021. Se Alcolumbre conseguir driblar a Constituição, se reelegerá com Rodrigues ainda de licença.

Eliane Cantanhêde - Por bem ou por mal

- O Estado de S.Paulo

Para o ‘senador da cueca’ só restou se licenciar por livre, mas não espontânea, vontade

Muito se falou da vice-liderança do governo e da “união estável” do senador Chico Rodrigues (RR) com o presidente Jair Bolsonaro, mas o agora famoso “senador da cueca” é do DEM e atinge a corrida do partido para polir sua imagem, aprofundar a transição geracional, disputar prefeituras importantes e se colocar o melhor possível para 2022. Daí porque a pressão pelo pedido de licença de Rodrigues. Ou saía por bem, ou saía por mal.

O DEM é o partido dos presidentes do Senado e da CâmaraDavi Alcolumbre e Rodrigo Maia, do prefeito de Salvador, ACM Neto, da ministra Tereza Cristina, do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta e do presidente do Conselho de Ética do Senado, Jayme Campos. Afora Campos, todos têm planos políticos ambiciosos e optaram por um silêncio estridente sobre o vexame do correligionário, a quem só restou pedir licença, “por livre, mas não espontânea, vontade”.

Luiz Carlos Azedo - Tudo é perigoso

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

Numa estatística macabra, desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, o número de homicídios no Brasil não para de subir. Estamos perdendo a batalha para a violência

A música Divino, Maravilhoso, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, veio à lembrança por causa da morte do jovem Caio Gomes Soares, atingido por uma bala perdida após levantar da cama para pegar um suco, por volta das 7h de ontem, no Catumbi, Rio de Janeiro. Faleceu nos braços da irmã, sem tempo de receber socorro. É uma canção de 1968, que faz parte do antológico disco-manifesto Tropicália ou Panis et Circenses, do qual participaram também os Mutantes, Tom Zé, Nara Leão e Gal Costa, que interpretou a canção da forma explosiva que viria a ser sua marca registrada.

“Atenção/ Tudo é perigoso/ Tudo é divino maravilhoso/ Atenção para o refrão/ É preciso estar atento e forte/ Não temos tempo de temer a morte”. Atenção para a estrofe e para o refrão: a música fala do perigo ao dobrar uma esquina, do que pode cair do alto de uma janela, do cuidado ao pisar no asfalto e do sangue no chão. Não havia naquela época o perigo de levar um tiro por ir até a geladeira, para tomar um refrigerante, em certas localidades do Rio de Janeiro.

Um tiroteio entre traficantes e policiais no Morro da Coroa teria sido a origem do disparo que matou o jovem Caio, num bairro tradicional do Rio de Janeiro, muito próximo do centro histórico da cidade, um dos cenários de Memórias Póstumas de Brás Cubas. A obra de Machado de Assis inaugurou o nosso realismo, ao retratar a escravidão, as classes sociais, o cientificismo e o positivismo de sua época. Entre o Rio Comprido, Santa Teresa e o Estácio, hoje, o Catumbi não é mais um bairro abastado. É um território em frequente disputa entre traficantes e milicianos, principalmente por causa da proximidade do Morro de São Carlos, onde existe uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Polícia Militar fluminense, e o túnel Catumbi-Laranjeiras, de acesso à Zona Sul carioca, que o transformou num bairro de passagem.

Numa estatística macabra, desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, o número de homicídios no Brasil não para de subir. Estamos perdendo novamente a batalha para a violência, resultado de uma política de segurança pública que facilita a venda de armas, estimula a justiça pelas próprias mãos e tolera a formação de milícias, fenômeno que está sendo exportado do Rio de Janeiro para os demais estados do país, sem que se tenha muita noção do perigo que isso representa.

Pesquisa divulgada neste fim de semana sobre a expansão de organizações criminosas no Rio revela que milícia e tráfico estão presentes em 96 dos 163 bairros da cidade, nos quais vivem 3,76 milhões de pessoas, do total de 6.747.815 habitantes da capital fluminense: 2,1 milhões de pessoas (33% da população) vivem em área sob o comando de milícias; 1,1 milhão de pessoas (18,2% da população) vivem em área dominada pelo Comando Vermelho; 337,2 mil pessoas (5,1% da população) vivem em área dominada pelo Terceiro Comando; 48,2 mil pessoas (0,7% da população) vivem em área dominada pelo Amigos dos Amigos.

Enquanto isso…

Míriam Leitão - Ministro para sete mandatos

- O Globo

A senadora Simone Tebet (MDB-MS) presidirá amanhã na CCJ a sessão de sabatina do indicado para ser ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Ela nega que vá ser apenas um rito pró-forma, mas admite que no Brasil o interrogatório do candidato é curto. Contudo, acha que não é esse o problema e defende uma mudança na Constituição para alterar a maneira como é escolhido o ministro do Supremo e seu tempo de permanência.

— O maior problema é constitucional, é preciso mudar a forma de indicar os ministros. É muito poder na mão de um presidente. E mudar a vitaliciedade. Melhor seria um período fixo, de 10 anos, com quarentena de cinco anos para se candidatar a qualquer cargo público — disse a senadora.

Essa é uma discussão que vem de algum tempo no Senado, mas a senadora reforça o ponto de que não é por ser o atual presidente. Ela explicou que, se for aprovada, a PEC só valerá no ano seguinte à aprovação. Como não seria votada este ano, mas apenas em 2021, valerá em 2022, quando Bolsonaro já terá feito as duas escolhas do seu mandato.

Carlos Andreazza - Colegialidade de ocasião

- O Globo

O problema — talvez o maior — do STF não é simplesmente o excesso de decisões monocráticas, mas o uso constante de liminares

A lei é boa. E era necessária. Refiro-me ao artigo 316, parágrafo único, do Código de Processo Penal: aquele — expressão do estado de direito — que estabelece a necessidade de a prisão preventiva ser revista a cada noventa dias. Lembremo-nos: prisão preventiva é medida cautelar de natureza provisória. Há requisitos para que alguém seja mantido em cárcere por essa razão. Por exemplo: representar risco à ordem pública. São dezenas de milhares os brasileiros — sobretudo pretos e pobres — esquecidos, presos provisoriamente, em cadeias do Brasil profundo; a grande maioria sem oferecer os riscos que justificam a preventiva.

Exigir que essa condição seja reexaminada a cada três meses é movimento da civilização. Aqui, uma obviedade: tivesse a lei sido aplicada corretamente, André do Rap estaria preso. Ele, ameaça à sociedade, encarna as razões para a privação cautelar de liberdade. Aqui, portanto, outra obviedade — para desmontar a falácia dos oportunistas que querem fazer do episódio escada para reabilitar a prisão após condenação em segundo grau: o criminoso não está foragido porque a jurisprudência corrente no Supremo impõe trânsito em julgado para o cumprimento de pena.

Debatamos a questão. Mas sem embustes.

Diga-se que o erro original de Marco Aurélio Mello não derivou de sua leitura do artigo 316 do CPP. Tivesse o ministro respeitado, antes, a súmula 691 do STF, sua análise do habeas corpus — que resultou na liberação do traficante — nem sequer existiria. Marco Aurélio não foi ingênuo, tampouco literalista. Foi negligente com o regramento da corte constitucional. Simples. O STJ já havia indeferido a liminar. Não cabia acolhimento pelo STF. Ponto final. O ministro, no entanto, atropelou a súmula; para então se lançar ao fetiche, com o qual sempre se defende, de que processo não tem capa — como se isso, o enfrentamento impessoal de um caso, eximisse-o de estudar o conteúdo e pedir informações a respeito.

Bernardo Mello Franco - Vitória de Evo, derrota de Bolsonaro

- O Globo

A vitória de Luis Arce na Bolívia sela mais uma derrota da diplomacia de Jair Bolsonaro e Ernesto Araújo. A dupla envolveu o Brasil na quartelada que derrubou o então presidente Evo Morales. Menos de um ano depois, os golpeados deram o troco nos golpistas e voltaram ao poder pelo voto.

Bolsonaro e Araújo festejaram a derrubada de Evo, que teve a casa invadida e foi obrigado a fugir do país. O chanceler trapalhão tuitou que não houve “nenhum golpe” na Bolívia. Horas antes, uma junta militar havia ocupado a TV para exigir a renúncia do presidente.

Evo ignorou um referendo na tentativa de se perpetuar no poder. No entanto, a alegação de que ele teria fraudado a última eleição nunca foi provada. O relatório da OEA que apontava “graves irregularidades” na apuração caiu em descrédito. Foi desmontado por especialistas de três universidades americanas.

Além de apoiar a virada de mesa, o Itamaraty ajudou a entronar Jeanine Áñez como presidente interina. Ela descumpriu a promessa de convocar eleições em janeiro e usou o cargo para perseguir opositores, segundo relatório da Human Rights Watch.

José Casado - Jogo de alto risco

- O Globo

Na sua diplomacia errática, Bolsonaro se arrisca a terminar o mandato sem acordos comerciais relevantes

Sob intensa pressão empresarial, governos do Brasil e dos Estados Unidos correram para concluir acordos relegados há anos ao remanso da diplomacia. Estão longe do pacto “ousado”, anunciado a cada semana dos últimos 22 meses por Jair Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes.

Notável foi a pressa para terminá-los a apenas duas semanas da eleição americana. É consequência de temores no setor privado com o duplo risco no horizonte: possível derrota de Trump combinada às dificuldades brasileiras com um eventual governo democrata, cujo potencial Bolsonaro insiste em multiplicar a cada avanço de Joe Biden.

Os papéis de ontem resumem expectativas de inversão no estado degradado das relações bilaterais. O fluxo de comércio e de investimentos caiu 25%, o mais baixo na década, atestando perdas com as ilusões bolsonaristas sobre o alinhamento a Donald Trump na guerra com a China.

Armando Castelar Pinheiro* - Xadrez tributário

- Valor Econômico

Há quem tema que os novos tributos irão abrir espaço para novos tipos de conflitos e processos na Justiça

Sexta-feira me pediram para ensinar a jogar xadrez. Tenho um tabuleiro e peças grandes, da época em que jogava regularmente, e fomos em frente. É um jogo complicado, com peças que se movimentam de formas variadas e que se joga pensando no agora e em vários lances à frente. Depois fiquei pensando como seria absorver e processar tanta informação.

Não muito diferente, conclui, do que ocorre comigo em relação à reforma tributária. Depois de seis reuniões que tivemos no Ibre sobre o tema, com alguns dos maiores especialistas no assunto, das áreas de direito, economia e ciência política, todos querendo o melhor para o Brasil, ainda não consegui formar uma opinião, ou entender tudo o que está em jogo.

Eis o que captei. Todo tributo incide sobre uma base: por exemplo, patrimônio, renda, movimentação financeira, folha salarial ou receita ou valor adicionado com a produção de um bem ou serviço. Esta última categoria, a tributação sobre bens e serviços, é o foco das propostas em discussão no Congresso: o PL 3887/2020, enviado pelo governo; a PEC 45/2019, de iniciativa da Câmara; e a PEC 110/2019, em tramitação no Senado. A proposta é cuidar desses tributos separadamente dos incidentes sobre as demais bases.

Tributos reduzem a eficiência econômica, alguns mais que outros. Quem defende a reforma argumenta que, na tributação de bens e serviços, aplicar alíquota única, uniforme em todo território nacional, incidente sobre o valor adicionado, cobrada no local de domicílio de quem compra, penalizaria menos a eficiência. Há, porém, dois problemas com isso.

Pedro Fernando Nery* - A pandemia vai começar

- O Estado de S.Paulo

Números de pobreza e desigualdade podem disparar em 2021

Quase 20 milhões de brasileiros foram salvos de cair na pobreza neste ano com o auxílio emergencial. Outros 10 milhões saíram temporariamente dela em 2020 por conta do benefício. São algo como 30 milhões de pessoas em risco com o seu fim em 31 de dezembro. O auxílio segurou os efeitos devastadores que a pandemia poderia ter no sustento das famílias mais pobres: com o seu fim abrupto, parte desses efeitos terão sido meramente adiados.

Os dados do parágrafo anterior foram calculados para o mês de julho pelo pesquisador Rogério Barbosa, do Centro de Estudos da Metrópole. Ele estimou também haver uma taxa de desemprego oculto de quase 40% entre os mais pobres. Esse número não é captado nas formulações tradicionais (taxa de desemprego aberta), porque inclui os trabalhadores que gostariam de um emprego, mas não procuraram um no isolamento. A partir de 1.º de janeiro, uma multidão sem renda deve passar a procurar ativamente emprego, o que pode provocar uma alta expressiva nos números oficiais de desocupação.

Em 2021, um terço dos brasileiros poderá estar vivendo com menos de meio salário mínimo – projeta Marcelo Neri, da FGV Social. Barbosa, Letícia Bartholo, Monica de Bolle e Pedro Souza estimaram proporção semelhante, mas para o número de cidadãos com renda inferior a um terço do mínimo.

Por isso, é extremamente preocupante a abordagem conformista externada pelo ministro da Economia em live da XP Investimentos, na sexta-feira. Diante das dificuldades de financiar um programa permanente para substituir o auxílio emergencial, afirmou que “é melhor voltar ao Bolsa Família do que fazer um movimento louco e insustentável”.

É preciso ficar claro: o Bolsa Família já estava em crise antes da crise. Apesar da retomada do PIB, havia 3 milhões de pessoas habilitadas para o programa em uma espécie de fila de espera por falta de orçamento. Se a fila fosse física, iria de Brasília a São Paulo. Para além disso, o programa convivia com valores muito modestos tanto no tocante aos valores pagos quanto aos dos critérios para receber o benefício.

Hélio Schwartsman - O teto e o gasto

- Folha de S. Paulo

Costumamos aumentar despesa pública para resolver dificuldades políticas

Minha aposta é que o teto de gastos cairá, não necessariamente porque seja o melhor para o país, mas porque nos acostumamos a resolver dificuldades políticas aumentando a despesa pública. A carga tributária, que era de 22,4% do PIB em 1988, ano em que entrou em vigor a nova Constituição, bateu nos 33,2% em 2019. E é difícil quebrar velhos hábitos, como bem sabem os viciados.

Não é obviamente uma fórmula sustentável, mesmo porque a quantidade de demandas sociais justas que seria possível incluir no Orçamento é infinita. E, apesar do aumento de quase 11 pontos nos tributos nas últimas três décadas, não avançamos tanto na criação de uma sociedade justa. Acho que precisaremos de traumas fiscais mais fortes do que os que já tivemos para convencer as pessoas de que o equivalente econômico do moto-perpétuo não foi descoberto.

Pablo Ortellado* - Vacinação contra a Covid deve ser compulsória

- Folha de S. Paulo

Congresso e STF precisarão garantir instrumentos de coerção para vencer sentimento anti-vacina

Como esperado, a politização da Covid ampliou as resistências à vacinação. Pesquisa da CNN Brasil, publicada na última sexta (16), mostrou que 46% dos brasileiros não tomariam a "vacina da China" (Coronavac) e 38% não tomariam a "vacina da Rússia" (Sputnik V). Os números são altos e podem inviabilizar a imunidade comunitária, já que a Coronovac pode ser aprovada em breve.

A resistência à vacina chinesa, testada pelo Instituto Butantã, é resultado da campanha anti-China do governo Bolsonaro e da disputa política do presidente com o governador João Doria. Esse antagonismo se agravou com a declaração do governador de que a vacinação será compulsória e com a réplica de Bolsonaro de que não será.

O grau de imposição da vacinação é um problema delicado de política pública.

Por um lado, uma democracia liberal deve permitir a expressão do sentimento antivacina, respeitando as liberdades de pensamento, de expressão e de objeção de consciência.

Joel Pinheiro da Fonseca - Devemos tolerar a blasfêmia?

- Folha de S. Paulo

Sociedade deve aceitar que provocações mordazes não podem ser respondidas com violência

Na sexta-feira passada, perto de Paris, um professor de história e geografia foi decapitado na rua. Seu crime? Ter mostrado charges do profeta Maomé durante uma aula sobre liberdade de expressão. O suposto assassino, um adolescente checheno, foi morto em confronto com a polícia. Com mais esse crime, reacende-se o debate sobre os limites da tolerância religiosa e a possibilidade da coexistência pacífica entre muçulmanos, cristãos e secularistas.

O presidente Macron rapidamente apontou o alvo: o "terrorismo islâmico". Há, sem dúvida, um problema ligado ao radicalismo islâmico e a grupos que aliciam jovens para se matarem numa suposta guerra santa. São casos de polícia, que devem resultar em prisão ou expulsão do país. Seria um erro, contudo, acreditar que haja algo na essência do islã (sua natureza imutável) que torne seus membros inimigos em potencial. As maiores autoridades islâmicas na França, aliás, condenaram o assassinato bárbaro.

Alguns séculos atrás, as nações islâmicas eram inclusive mais tolerantes do que as cristãs. A punição da blasfêmia com a morte por apedrejamento é diretamente comandada no Antigo Testamento bíblico.

O que a mídia pensa – Opiniões / Editoriais

Sem aprovação automática – Opinião | O Estado de S. Paulo

Séria, sabatina no Senado deve ser capaz de confirmar se Kassio Nunes Marques preenche requisitos para ser ministro do STF.

A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado deve sabatinar amanhã o desembargador Kassio Nunes Marques, indicado pelo presidente Jair Bolsonaro para a vaga aberta no Supremo Tribunal Federal (STF) com a aposentadoria do ministro Celso de Mello. Depois da análise pela CCJ, cabe ao plenário do Senado decidir sobre o nome indicado. A aprovação requer maioria absoluta dos senadores.

Em respeito à Constituição, todo o procedimento no Senado relativo à escolha de um novo ministro do STF deve ser cumprido de forma absolutamente rigorosa. Os acertos políticos devem dar espaço a uma análise serena e conscienciosa pelos membros da CCJ e, depois, pelo plenário do Senado. Em vez de conveniências político-partidárias, o que deve orientar a sabatina é a responsabilidade de atestar o cumprimento dos requisitos constitucionais para o Supremo.

As condições são claras: notável saber jurídico e reputação ilibada. Não são requisitos abstratos ou de difícil aferição. Por exemplo, o texto constitucional exige que o saber jurídico do indicado seja facilmente percebido por todos. Se há alguma dúvida a respeito do grau de conhecimento jurídico do indicado, o requisito constitucional não está preenchido.

O mesmo ocorre com a reputação ilibada. A Constituição exige que os cidadãos escolhidos para compor a mais alta Corte do País tenham reputação “límpida, intacta, sem mancha, sem sombra, sem nenhuma suspeita”, como se escreveu neste espaço. Vale lembrar que a sabatina no Senado não é o julgamento de uma ação penal, como se eventual dúvida relativa à sua reputação devesse favorecer a aprovação do nome indicado, numa espécie de in dubio pro reo.

A Constituição prevê uma lógica diferente. Havendo dúvida sobre o conhecimento jurídico ou a reputação da pessoa indicada, seu nome deve ser rejeitado – e isso não é nenhum demérito, pois a rigor não existe postulante à vaga. Como escreveu, em dezembro de 1992, o ministro do STF Paulo Brossard ao então presidente da República Itamar Franco, “é preciso não esquecer que ninguém, por mais eminente que seja, tem direito de postular o cargo (de ministro do Supremo), que não se pleiteia, e aquele que o fizer, a ele se descredencia”.

*Raimundo Santos, um homem e suas obsessões - Luiz Sérgio Henriques

Ao nos deixar no dia 19 de outubro deste infausto 2020, Raimundo Santos, intelectual discreto e operoso, extremamente fiel aos seus temas de eleição e às convicções de toda uma vida, deixa um legado precioso de coerência, generosidade e solidariedade. Ele era um daqueles intelectuais que se juntaram na revista Presença, nos anos 1980, aferrados ao patrimônio “eurocomunista” à brasileira. Homens e mulheres diferentes entre si, com variada inserção na vida política e acadêmica, mas reunidos pelo empenho de indagar como é que o seu peculiar comunismo podia servir ao País, como é que se poria a serviço da grande causa democrática, sem se perder em discussões doutrinárias tão ao gosto de muitas correntes do próprio marxismo.

 Tendo estudado Ciência Política na Flacso (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais) e se doutorado na Unam (Universidade Nacional Autônoma do México) ainda nos tempos do exílio, Raimundo por quase dez anos seria professor da Universidade Federal da Paraíba (em Campina Grande), transferindo-se depois para a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, especificamente para o CPDA (Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade).

No CPDA, a sala do Raimundo, atulhada de livros e papéis de todo tipo – ele que, entre outras coisas, se autointitulava um “revisteiro” e era um dos principais responsáveis pela revista Estudos Sociedade & Agricultura –, a sala do Raimundo, dizia, tinha na parede um retrato de Ivan Ribeiro, precocemente falecido com o ministro Marcos Freire em desastre de aviação. Ivan, outro professor do CPDA como ele, outro singular comunista como todos nós. Havia naquele retrato do Ivan, pendurado na salinha do Raimundo, um sentido altíssimo de continuidade e de fidelidade, que se impunha de modo forte, mas silencioso e sem afetação.

O velho Partidão havia passado e era preciso aceitar este fato. Organismos históricos nascem, vivem e num certo momento perdem a razão de ser. No entanto, para Raimundo o pecebismo sobrevivia ao partido e devia continuar de pé, inspirando a ideia da centralidade da política, a necessidade vital de fazer política; e o objetivo só poderia ser o de levar a esquerda, ou a nossa parte da esquerda, a sair de guetos minoritários e a participar plenamente da vida nacional, influenciando-a no sentido semelhante àquele apontado, décadas a fio, por Caio Prado Jr. – a nacionalização da economia e da sociedade, a internalização dos centros decisórios, o atendimento das carências da maioria da população. Tudo isso num contexto de reformas graduais e incessantes, a serem conduzidas dentro da legalidade e da ordem constitucional, fora das quais, para Raimundo, pode até haver salvadores da pátria, mas nunca salvação nem risorgimento nacional. (O lema gramsciano, aqui, não é casual.)

Caio Prado, uma obsessão de Raimundo. O agrarismo reformista do PCB, outra. Inúmeras vezes, em artigos e ensaios, Raimundo debruçou-se sobre o sindicalismo rural estimulado pelos comunistas do pré-1964, valorizando-o como o caminho real para mudanças profundas, mais até do que o choque frontal e muitas vezes violento em torno da propriedade da terra. E o pecebismo do querido amigo se revelava inteiramente na ênfase que atribuía à estratégia da resistência democrática no pós-1964, derivada do “Manifesto de Março” de 1958: uma estratégia avessa às armas e aos grandes gestos, nada épica nem grandiosa, enganosamente miúda, mas que conduziria à derrota do regime militar, à anistia ampla, geral e irrestrita, bem como à Constituição de 1988. Não duvido, aliás, que Raimundo soubesse de cor seções e parágrafos daquele “Manifesto”, uma verdadeira carta de alforria do stalinismo e um marco na transição de um “partido-igreja” para um partido da política, o que a seu ver era o feito memorável do Partidão.

Esta terceira e fundamental obsessão de Raimundo – a frente democrática contra a ditadura – o fazia homenagear, em conversas, palestras e livros, personalidades como Luiz Inácio Maranhão Filho, Marco Antônio Coelho e Armênio Guedes, este último seu companheiro no exílio chileno até que viesse o golpe de 1973. Em Luiz Maranhão, o “cardeal” do PCB, Raimundo exaltava a capacidade de diálogo com os católicos e até com as figuras mais altas da hierarquia, como D. Paulo e D. Eugênio; e nos outros dois dirigentes, a capacidade de entender a política e de elaborar, sempre e invariavelmente, “a tática das soluções positivas” mais adequada para as situações difíceis. Afinal de contas – era o que Raimundo dava a entender com deliberada ironia –, ideias e intelectuais, livros e professores é que haviam derrotado a ditadura, deixando-a esgotada num canto do ringue.

Nesta hora particularmente dura, o discreto Raimundo vai fazer muita falta. Já está fazendo. Lembro-me agora, ao pensar na sua figura e no seu modo de ser, do herói de Vianinha no Rasga, coração. O herói anti-herói: obstinado, constante, modesto. Vem ainda à memória um velho poema de Brecht segundo o qual era de lamentar que os comunistas, lutando por um mundo em que triunfasse a amizade, nem sempre tivessem tido tempo de serem amigos entre si, endurecidos como estavam pela luta de classes. Este não foi o caso do Raimundo: fez e deixou amigos que dele se envaidecem e se recordam com carinho. Eu tive, muitos tivemos a sorte de encontrar o Raimundo nos meandros “do Partido” – um homem honrado, um intelectual decente, uma personalidade democrática, profundamente democrática. Não o esqueceremos.

*Entre outros títulos, Raimundo Santos escreveu: A primeira renovação pecebista. Reflexos do XX Congresso do PCUS no PCB – 1956/1957 (Oficina de Livros, 1988); O pecebismo inconcluso. Escritos sobre ideias políticas (UFRRJ, 1992); Modernização e política (Forense Universitária, 1996); Caio Prado Jr. na cultura política brasileira (Faperj/Mauad, 2001); O marxismo político de Armênio Guedes (FAP/Contraponto, 2012).

Poesia | João Cabral de Melo Neto - Catar feijão

1.

Catar feijão se limita com escrever:
Jogam-se os grãos na água do alguidar
E as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo;
pois catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

2.

Ora, nesse catar feijão entra um risco,
o de que, entre os grãos pesados, entre
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com risco.