domingo, 25 de outubro de 2020

Opinião do dia – Luiz Sérgio Henriques*


“A polarização sectária, praticada abusivamente por anos a fio, conduziu-nos a coisa muito pior. Desde a vitória do presidente Bolsonaro uma espécie de subversivismo elementar (de parte) das classes dominantes encontrou o consenso passivo de amplos setores da população, tornando viável a violação – ao menos retórica – de um dos requisitos mínimos da democracia. É que, segundo essa concepção, “eles”, todos os que se opõem, só podem ser “antipatriotas”, “vermelhos” e “comunistas”, explicitando-se assim a intenção de abolir a normal alternância e promover, quem sabe, novo e indefinido período autocrático.

Nos Estados Unidos, ora em condição análoga, Joe Biden vem encarnando a melhor estratégia: reativar a cidadania, reagrupar os democratas e, ainda, abrir-se para os republicanos que recusam os maus modos de Trump. A grande aposta é que a sociedade civil e a sociedade política, no estilo ocidental, nunca se deixam aprisionar por muito tempo e logo voltam a se impor aos demagogos.

Lá como aqui.”

* Luiz Sérgio Henriques, tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil. “O duplo ataque à democracia”, O Estado de S. Paulo, 18/10/2020.

Merval Pereira - Olho grande

- O Globo

A crise desencadeada pelo agressivo tuíte do ministro do Meio-Ambiente Ricardo Salles contra seu colega de ministério, Luiz Eduardo Ramos, não se encerrou com a tentativa de Bolsonaro de passar pano sobre o caso. O apelido de “Maria Fofoca” jogado nas redes sociais por Salles, além de desrespeitoso, serviu para excitar a ala ideológica do governo, que gosta dessas baixarias como instrumento de luta política. Incentivada pelos próprios filhos do presidente, que foram ao Twitter apoiá-lo.

A situação difícil em que foi colocado, como ele mesmo define, fez com que o ministro chefe da Secretaria de Governo da Presidência Luiz Eduardo Ramos se tornasse o centro de uma disputa política que não foi de sua escolha.

Desde que foi Comandante Militar do Sudeste, com sede em São Paulo, o General Ramos acostumou-se a lidar com políticos, fazendo questão de manter uma relação suprapartidária que incluía até mesmo o PT, quando isso era uma ousadia. Não foi por acaso, portanto, que foi escolhido para ser o interlocutor do governo com o Legislativo, tarefa que vinha exercendo com eficiência e correção até que grupos do Centrão esticaram o olho para seu cargo.

O interessante nesse caso é que coube a Ramos fazer a aproximação do presidente Bolsonaro com os políticos do Centrão, quando ficou claro que era necessário montar uma base parlamentar e entrar no jogo político tradicional para evitar crises, que poderiam levar ao impeachment.

Janio de Freitas – Breve ideia do Brasil

- Folha de S. Paulo

É humilhante que o país continue suportando a vergonheira nos seus Poderes

Bolsonaro teve uma ideia. Ofertou-a a você, eleitor talvez inseguro entre os possíveis destinos do seu voto. Bolsonaro criou a chave atualizada para o voto justo, consciente e consequente. “Você quer reeleger um cara ou não. Vê o que ele fez durante a pandemia. Vê se você concorda com as medidas que ele tomou, se fez o que você achava que tinha que fazer ou não. E você decide o seu voto.”

É uma chave suficiente para lançar a ambição reeleitoral e o próprio Bolsonaro, e antes alguns prefeitos, na famosa lixeira da história. É ainda a resposta do eleitor a quem o abandona aos piores riscos, se não já à vitimação perversa, à ausência inapagável de familiares. É a resposta necessária para compensar, ao menos no plano individual, o escapismo acovardado e vendilhão dos apelidados de autoridades institucionais. As figuras minúsculas incumbidas de resguardar a população, e seu país, da sanha louca que não os quer sob a proteção nem de incertas vacinas.

Surpreendo-me no dever de dar a João Doria o reconhecimento da única reação adequada ao desaforo feito ao país por Bolsonaro. “Não abrir mão” da sua “autoridade” para cancelar uma providência antipandemia, por politicagem obtusa, não é ato de autoridade. É o que disse Doria em seu momento até agora único: “O presidente da República negar o acesso a uma vacina aprovada pela Anvisa, em meio a uma pandemia que já vitimou 155 mil brasileiros e deixou 5,1 milhões infectados, é criminoso”.

Bernardo Mello Franco - Cheque em branco

- O Globo

O Senado assinou um cheque em branco para Kassio Nunes Marques, que substituirá Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal. Na quarta-feira, o desembargador passou dez horas na Comissão de Constituição e Justiça. Poderia ter passado dez minutos, e o resultado seria o mesmo. Culpa dos senadores, que abriram mão de escrutinar as credenciais e as ideias do futuro ministro.

Ao abrir a sessão, a emedebista Simone Tebet disse que a sabatina “não é, nunca será e não pode parecer ser mero ato protocolar”. Faltou combinar com os colegas. A maioria estava ali para gastar tempo e cortejar o indicado. Ele ouviu mais elogios do que perguntas de quem deveria inquiri-lo.

Apesar das inconsistências no currículo, Kassio foi chamado de “culto”, “ilustre” e “dedicado”. “O orgulho que nos enche hoje não é só do Piauí, é do Nordeste como um todo”, desmanchou-se Ciro Nogueira, o poderoso chefão do PP. “É uma grande e oportuna indicação, que elevará a nossa Corte Superior”, emendou o emedebista Renan Calheiros, também investigado na Lava-Jato.

Vera Magalhães* - Sem Ministério Público

- O Estado de S.Paulo

Sob Aras, procuradoria se omite da função de fiscalizar e cobrar o governo

As ameaças de Jair Bolsonaro de dificultar a aprovação de vacinas contra o novo coronavírus pela Anvisa e sua afirmação reiterada de que o governo federal não vai comprar para fornecer a Estados e municípios e ao SUS a Coronavac, caso ela venha a ser a primeira a concluir as fases de teste de segurança e eficácia, explicitaram a completa omissão do Ministério Público Federal, sob Augusto Aras, em sua função precípua de fiscalizar e cobrar o poder público e representar a sociedade. 

Essa omissão começou graças ao processo de escolha do procurador-geral da República: à revelia da própria instituição, apontado por Jair Bolsonaro justamente pelo fato de não ter se submetido à lista tríplice dos pares e depois de sucessivos encontros em palácios em que, depois, o presidente fazia questão de colocá-lo debaixo da asa e deixar claras as afinidades em defesa da “Pátria”, da “família” e sabe-se mais o quê. 

De propósito, Bolsonaro tratou de manter Aras na lista dos “supremáveis”, aqueles que poderia indicar à cadeira de Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal. Isso explica por que, por exemplo, ao pedir uma investigação a respeito das denúncias de Sérgio Moro contra o presidente, Aras tenha feito questão de incluir o ex-ministro como investigado por suposta denunciação caluniosa. Não vai dar em nada para nenhum dos dois, se depender dele, e a intenção sempre foi essa. 

Eliane Cantanhêde* - Bolsonaro em seu habitat

- O Estado de S.Paulo

Depois de abandonar o PSL e a 'nova política', Bolsonaro testa os generais

Com o fiasco da “nova política” nos governos estaduais e o escanteio do PSL em favor do Centrão no Congresso, o presidente Jair Bolsonaro volta ao seu habitat político e apoia o “velho” também nas eleições municipais. Mas, assim como o “novo” não funcionou nos governos e no Congresso, o “velho” não está dando para o gasto na disputa pelas prefeituras. Entre o “velho” e o “novo”, tem prevalecido a experiência e a confiança. 

Os “novos” e meteóricos Wilson Witzel, juiz de carreira eleito no Rio pelo PSC, e Carlos Moisés, bombeiro militar eleito em Santa Catarina pelo PSL, estão deixando a política pela porta dos fundos, afastados dos governos dos seus estados pelas vias política e jurídica. Não têm experiência e cancha para a complexidade da política e, aparentemente, não entraram nela apenas “por ideologia” e “pelo bem comum”... 

Talvez por isso, talvez não, Bolsonaro desistiu de um exército (atenção, em minúscula...) que só tem dado dor de cabeça e mergulhou de volta na sua velha turma de 28 anos de Congresso. Apoia o prefeito Marcelo Crivella no Rio e o sempre candidato Celso Russomanno em São Paulo, ambos do Republicanos. Mas suas candidaturas derretem ao ritmo de Amazônia e Pantanal. 

Ricardo Noblat - Bolsonaro mente enquanto a Amazônia pega fogo

- Blog do Noblat | Veja

O exercício permanente e obstinado do engodo

Por ignorância, estupidez ou conveniência, as declarações do presidente Jair Bolsonaro sobre a Amazônia foram de um extremo a outro nesses quase dois anos de (des)governo. Ainda no primeiro semestre do ano passado, ele disse que a Amazônia estava oquei e chamou de feia a mulher do presidente francês, preocupado com a destruição da maior floresta do planeta.

Em meados deste ano, ante o aumento do número de focos de incêndio por lá, Bolsonaro negou que a Amazônia pegasse fogo porque o clima, ali, é úmido. O que pegava fogo, segundo ele, era a periferia. Não disse que o fogo ateado na periferia deve-se à ação humana criminosa e ao desinteresse do Estado em detê-la. A omissão do Estado só fez crescer desde que ele tomou posse.

Na última quinta-feira, durante cerimônia de formatura de alunos do Instituto Rio Branco no Ministério das Relações Exteriores, Bolsonaro deu pelo não dito até então para afirmar que não há “nada queimado” na Amazônia, sequer “um hectare de selva devastada”. Sim, foi isso mesmo que você leu: nada queima na Amazônia e nenhum hectare de selva foi devastado.

Aproveitou a ocasião para anunciar que, em breve, vai convidar diplomas estrangeiros para um sobrevoo de uma hora e meia de parte da floresta entre Manaus e Boa Vista. Assim eles poderão constatar que a Amazônia não arde. Na verdade, o sucesso da viagem dependerá da rota traçada e da perícia do piloto para passar longe dos trechos em chama e desmatados.

Ainda faltam dois meses para 2020 acabar, mas na Amazônia o número de focos ativos de calor já ultrapassou o total registrado nos 12 meses de 2019, informa o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. O bioma Amazônia registrou este ano 89.734 focos. Em todo o ano passado, 89.176. Até anteontem, o número já era quase o dobro do visto no mês inteiro de outubro do ano passado.

O que Bolsonaro diz não se escreve ou não deveria ser escrito. Mas o pior é que se escreve, quando nada porque não é normal que um presidente da República minta tanto ao seu país e ao mundo.

Luiz Carlos Azedo - Eleições pandêmicas

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

Ao se engajar nas candidaturas de Russomanno e Crivella, em vez de manter distância regulamentar, Bolsonaro corre o risco de ser o grande perdedor das eleições municipais

Eleições municipais nunca foram uma amostra grátis do que virá depois, nas eleições gerais, mesmo na época do regime militar. Por exemplo, em 1974 a oposição (MDB) obteve uma espetacular vitória nas urnas; em 1972, fora massacrada. Em 1976, sofreu nova derrota para o governo (Arena), mas em 1978, o MDB virou o jogo: o resultado das urnas sinalizou o fim da ditadura, iniciando-se a transição que resultou na anistia (1979), nas eleições diretas de governadores (1982) e na eleição de Tancredo Neves no colégio leitoral (1985) . Tirando São Paulo e Rio de Janeiro, as capitais mais cosmopolitas — em Brasília não há eleição —, é muito difícil captar tendências no processo eleitoral que sinalizem o que virá depois nas eleições gerais. Além disso, estamos vivendo um cenário a típico, sem debates e grandes comícios, o que faz o processo eleitoral se desenvolver em “home office”, para usar a expressão que representa a forma predominante de trabalho durante a pandemia.

Sim, as fábricas estão voltando a funcionar, o comércio também, mas não há o burburinho das ruas, nas padarias, nos barbeiros, nas filas das lotéricas e dos caixas dos supermercados, os sintomas de engajamento da grande massa de eleitores na disputa eleitoral. O embate se desenvolve nas redes sociais e, principalmente, nas listas de WhatsApp, subterrâneos nos quais as pessoas se organizam como “tribos”. São as listas da família, dos colegas de escola, dos amigos do futebol, dos parceiros de baralho, dos colegas de trabalho etc. As pessoas se relacionam por afetos e interesses; é assim, de forma compartimentada, segmentada, confinada, em bolhas, que o processo eleitoral hoje ganha a escala da democracia de massas. Somente as urnas eletrônicas poderão nos revelar os mistérios do voto popular.

Elio Gaspari - Um surto de mediocridade

- Folha de S. Paulo / O Globo

Bolsonaro sabia que o Ministério da Saúde havia oficializado a sua intenção de comprar 46 milhões de doses da CoronaVac

Sabe-se que Jair Bolsonaro dorme mal. No ano passado, ele revelou que penava 89 episódios de apneia por hora: “Detenho o recorde brasileiro.” Sabe-se também que instalou uma escrivaninha no espaçoso guarda-roupas do Alvorada e passa o tempo ligado nas redes sociais de sua estima.

Às 5h45m da madrugada de quarta-feira, o presidente continuava diante de seu computador quando respondeu a uma mensagem com um grito de guerra: “O povo brasileiro não será cobaia de ninguém. (...) Diante do exposto, minha decisão é a de não adquirir a vacina.”

Estava aberta uma ridícula Guerra da Vacina.

Bolsonaro sabia que o Ministério da Saúde havia oficializado a sua intenção de comprar 46 milhões de doses da CoronaVac, que, nas suas palavras, transformou-se na “vacina chinesa do João Doria”. Desde que o vírus chegou ao Brasil, matando mais de 150 mil pessoas, Bolsonaro militou no exercício ilegal da Medicina com sua cloroquina.

Fritou dois ministros da Saúde e, com seu surto matutino, começou a refogar o terceiro. Nos seus gritos de guerra, anunciou que a “vacina não será comprada” porque “não abro mão de minha autoridade”. Parolagem. Horas depois, a Agência de Vigilância Sanitária (detentora da autoridade) informou que, como acontece com qualquer medicamento, autorizará a compra do fármaco que cumpra os requisitos científicos.

Bruno Boghossian – Bolsonaro entra na campanha

- Folha de S. Paulo

Presidente alimenta antipetismo e recomenda voto contra prefeitos que aplicaram isolamento

Depois de dizer que não se envolveria nas eleições deste ano, Jair Bolsonaro entrou nas campanhas dos 5.568 municípios que vão às urnas em novembro. Na portaria do Palácio do Alvorada, o presidente lançou sua plataforma: recomendou voto contra prefeitos que adotaram medidas de isolamento e reviveu fantasmas ultraconservadores.

“Vocês têm que ver o partido em que o cara está. Esses partidos que pregam a destruição de lares, a favor de ideologia de gênero, o pessoal que apoia o MST... Vocês estão votando nesses caras”, afirmou aos apoiadores do governo, na quinta (22).

As corridas municipais representam um risco para Bolsonaro. A falta de uma máquina partidária e a incerteza sobre as disputas de 2020 poderiam produzir uma derrota em massa de seus apadrinhados. Conhecendo o perigo, ele tenta aproveitar o momento de outra maneira.

Bruno Paes Manso* - Da Nova República à república das milícias

- Folha de S. Paulo / Ilustríssima

Para autor de livro recém-lançado, presidente mantém vivo discurso da linha dura e de grupos de extermínio

 [RESUMO] Ligação de militares da linha dura da ditadura com membros de esquadrões da morte forjou uma ideologia conspiratória, antidemocrática e de exaltação da força policial, não raro associada a práticas criminosas, que chegou ao centro do poder com a eleição de Bolsonaro, ameaçando as conquistas de três décadas de redemocratização.

Duas das principais referências morais e profissionais na formação do presidente Jair Bolsonaro foram o general do Exército Newton Cruz e o coronel Carlos Brilhante Ustra. Em comum, ambos eram contrários ao processo de abertura que levaria à Nova República e assumiam a necessidade de sujar as mãos na disputa política que viam como uma guerra.

Chefe da agência central do SNI (Serviço Nacional de Informações), cargo que exerceu até 1983, quando foi para Brasília assumir o Comando Militar do Planalto, Cruz foi um dos representantes da linha dura na Presidência de João Baptista Figueiredo, organizando a resistência contra a redemocratização em um período em que pelo menos 40 bombas explodiram no Brasil.

A série de atentados, cujo objetivo era provocar medo para justificar novas medidas de endurecimento, culminou com a bomba no Riocentro, em 1981, que devia explodir durante um show de MPB com cerca de 20 mil pessoas. O artefato, contudo, estourou antes, dentro de um carro com dois militares. Cruz assumiu, anos depois, que havia sido informado dos planos e nada fez por falta de tempo.

Ustra, por sua vez, foi chefe do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações) do 2º Exército em São Paulo entre 1970 e 1974. O então major era valorizado pelos militares da linha dura como o símbolo dos oficiais que sujaram a mão na guerra, em contraponto aos burocratas fardados que se articulavam na transição para entregar o poder aos inimigos civis.

Nos porões paulistas, liderados por Ustra, a tortura era prática comum. Dos 876 casos catalogados no livro “Brasil: Nunca Mais”, cerca de 400 ocorreriam no centro comandado por ele.

Ustra escreveria sua visão da história no livro “A Verdade Sufocada”, uma das bíblias bolsonaristas, no qual se queixou de que o Brasil sofria na democracia derrotas comprometedoras na batalha ideológica, que deveria ser vencida a qualquer custo.

As esquerdas, dizia ele, estavam na dianteira, ganhando a mente das massas, dominando postos estratégicos nas universidades, escolas, Redações dos jornais e no mundo das artes. A vitória cultural da esquerda também atrapalhava as polícias militares, cujo trabalho no combate ao crime sofria sabotagem dos defensores de direitos humanos.

O discurso antidemocrático e conspiratório, contra a Constituição de 1988 e o novo regime que surgia, marcaria a carreira de uma legião de militares, como Bolsonaro.

Míriam Leitão - Crimes no solo da Amazônia

- O Globo

Os grandes números impressionam, a descrição dos crimes encontrados no solo da Amazônia, também. A Operação Verde Brasil 2 aplicou de 11 maio até esta semana multas no valor total de R$ 1,696 bilhão. O Exército em solo e a Marinha nos rios apreenderam carregamentos de madeira suficientes para encher duas mil carretas. E isso foi até a última quarta-feira. Em apenas uma operação contra o garimpo ilegal foram encontrados 45 quilos de ouro. Ao todo nesses meses foram apreendidas oito mil toneladas de minerais ilegalmente extraídos, a maior parte manganês.

Os 45 quilos de ouro têm o valor de R$ 15 milhões. Foram encontrados dentro da Reserva Biológica de Maicuru, entre os municípios de Santarém e Itaituba, numa operação nos dias 9 e 13 de outubro. O local é definido pelos militares como “totalmente inóspito e de difícil acesso”. Foram por ar com a Força Aérea. Junto com os militares, a Polícia Federal e o Ibama. Lá, destruíram também 15 motores estacionários de garimpo.

Eles não saem assim às cegas. Em Brasília um grupo reúne todos os órgãos envolvidos com o tema. Um deles é o Inpe. Com imagens de satélite escolhe-se onde agir. Em videoconferências falam com os comandos militares na Amazônia. No resto é patrulha mesmo por terra, rio e ar.

Vinicius Torres Freire – Um país sem imunidade para dementes

- Folha de S. Paulo

Na guerra da vacina e do general Maria Fofoca, bomba econômica está armada

A diversão está garantida nessas próximas semanas em que o pavio da bomba econômica continuará queimando, sem que o país em geral se importe muito. A diversão maior, no sentido de desvio de atenção, virá da guerra da vacina que ainda nem existe, das decisões que o Supremo deve tomar sobre a obrigação de tomá-la e da aprovação da "vacina chinesa paulista" pela Anvisa e pelo governo.

Enquanto isso, o centrão e alas do governo se ocupam de disputar cadeiras ministeriais. Jair Bolsonaro trata de sua preocupação maior, livrar filhos da cadeia. Parlamentares articulam a eleição dos novos comandos do Congresso.

Até fins de novembro, as eleições nos EUA e nas cidades brasileiras vão dizer qual o valor de mercado eleitoral de extremistas e lunáticos em geral.

Eventual derrota de Donald Trump e de candidatos bolsonaristas nas cidades maiores pode aumentar o passivo político de Bolsonaro, embora esse débito talvez não seja cobrado tão cedo.

O risco maior para o presidente é a política econômica, ora em estado de animação suspensa.

Dorrit Harazim - Uma eternidade de nove dias

- O Globo

Não existe superlativo capaz de traduzir tudo o que está em jogo neste 3 de novembro de 2020

Os murmúrios se adensam, a respiração mundial acelera, mas ninguém ousa se fazer ouvir a plenos pulmões. Até porque ainda é cedo — falta uma eternidade de 9 dias até o 3 de novembro. A insensatez arrogante que levou o Partido Democrata e Hillary Clinton à implosão em 2016 ainda sangra. Melhor represar o otimismo e concluir o aprendizado de como não menosprezar o poder feroz de Donald Trump.

Após o debate de quinta-feira, é razoável achar que o presidente dos EUA perdeu uma grande chance de ressurgir competitivo. Em seu derradeiro confronto ao vivo e na veia com o adversário, Trump pode ter desperdiçado a última oportunidade para mudar a dinâmica eleitoral em curso. Como se sabe, os números têm sido francamente favoráveis a Joe Biden. Mas, como também se sabe, as pesquisas eleitorais que dão uma vantagem nacional de 8% a 12% ao candidato democrata valem pouco no labiríntico sistema eleitoral indireto do país. Se três ou quatro dos 50 estados americanos não votarem democrata (os “estados-pêndulos”), Donald Trump não arreda pé da Casa Branca.

Lourival Sant'Anna* - Comedimento de Trump

- O Estado de S.Paulo

É revelador que o jogo democrático tenha colocado um limite no debate público

O último debate entre Donald Trump e Joe Biden, na noite de quinta-feira, será lembrado pela civilidade, em contraste com o caos do primeiro, dia 29 de setembro. Não é só questão de forma. O esforço de Trump em se conter e se mostrar “presidenciável” para a audiência mais ampla revela algo sobre a democracia.

A agressividade é um componente de todo debate, e esteve presente nesse último também. Mas Trump foi muito além disso no primeiro debate. Como costuma fazer em seus comícios, entrevistas e tuítes, Trump agiu sem limites, tanto na forma quanto no conteúdo. Na forma, ele interrompeu Biden e o moderador Chris Wallace 128 vezes ao longo de 90 minutos. No conteúdo, procurou humilhar o oponente, afirmando que seu filho, Hunter Biden, foi “dispensado com desonra” por uso de cocaína.

Dessa vez, Trump atacou Biden e seu filho usando reportagens do tabloide sensacionalista New York Post, segundo as quais Hunter teria feito negociações na China, Rússia, Ucrânia e Iraque usando o nome de seu pai, para quem seria destinada parte da propina. A base das reportagens é frágil. Mas é uma linha de ataque dentro dos padrões do jogo pesado da política. 

O primeiro ataque, relacionado com o uso da cocaína, é aceitável para os seguidores de Trump, nos comícios, no Twitter e nas entrevistas a emissoras que o apoiam. Mas não para o público em geral. O debate é uma oportunidade de engajar a própria base, num país em que o voto é facultativo, mas também de ampliar o apoio, sobretudo para um candidato que está atrás em todas as pesquisas sérias.

Rolf Kuntz* - Depois da pandemia ainda restará a velha crise

-  O Estado de S.Paulo

 O País nunca saiu do buraco onde caiu em 2015. O PIB de 2014 continua longe

Brasil, Estados Unidos e muitas outras economias ainda levarão mais de um ano para sair da profundeza de 2020. Dezenas de países só voltarão em 2022 ao patamar de 2019, se as projeções estiverem razoavelmente corretas. Sem um segundo surto de covid-19, a maior parte da América Latina estará recuperada em 2023, segundo estimativa do Fundo Monetário Internacional (FMI). Mas o caso brasileiro, mais uma vez, é especial, tão especial quanto o de um senador – vice-líder de governo – flagrado com dinheiro na cueca. O País ainda levará uns dois anos, talvez três, para exibir um produto interno bruto (PIB) parecido com o de 2014, anterior ao do grande tombo. Mas a economia terá de funcionar num cenário global diferente daquele conhecido até há pouco tempo.

O Brasil tem sido um país diferente, no mau sentido, há uns dez anos, e o esforço de “normalização” iniciado em 2016-2017 foi em grande parte abandonado em 2019. Para começar, crescimento foi o padrão mundial depois da crise financeira de 2008-2009. Com maior ou menor vigor, a maior parte das economias voltou a avançar, até o desastre da pandemia. Na maior economia da América do Sul, no entanto, erros políticos, agravados com a pilhagem do Estado, minaram a prosperidade.

Mas isso foi pouco visível inicialmente. A primeira fase depois da crise financeira foi promissora. Depois da queda de 0,5% em 2009, o País logo se recuperou. Mas tropeçou em 2012 e três anos depois afundou numa recessão inteiramente made in Brazil, enquanto a vizinhança continuava em crescimento. A economia brasileira encolheu 3,5% em 2015 e 3,3% em 2016 – uma perda acumulada de 6,58% em dois anos.

Affonso Celso Pastore* - Riscos da inflação e de repressão financeira

- O Estado de S.Paulo

Ainda que em manifestações públicas empresários e economistas expressem confiança no cumprimento do teto de gastos, não é isso que indicam o comportamento do câmbio e da curva de juros, cuja inclinação positiva continua aumentando. Não precisam manifestar sua crítica. O mercado fala por eles. 

Para evitar que o risco de insolvência cresça devido ao aumento do custo da dívida, o Tesouro optou por financiar o déficit primário deste ano com títulos de prazos curtos, que têm prêmios de risco mais baixos. Na rolagem da dívida que vence, resgata os títulos de prazos longos com recursos da venda de títulos mais curtos.

Com isso o prazo médio da dívida pública já caiu para 35 meses, e deverá cair ainda mais em 2021, quando ocorrem resgates superiores a R$ 300 bilhões por trimestre. Nesta velocidade, o prazo médio de vencimento da dívida rapidamente cairá abaixo de 30 meses.

A dificuldade na administração da dívida é uma primeira manifestação da dominância fiscal, que leva à inflação e à repressão financeira (a obrigatoriedade imposta aos intermediários financeiros de comprarem títulos com vencimentos mais longos), que já existiu nos anos 70 e 80, quando muitos dos que atuam no mercado financeiro não haviam nascido e desconhecem a magnitude das distorções que provoca. 

O que a mídia pensa – Opiniões / Editoriais

A sociedade sabe o que quer – Opinião | O Estado de S. Paulo

É alentador verificar que 85,3% dos brasileiros pretendem se imunizar quando houver uma vacina contra a covid-19.

A revista científica Nature publicou um estudo que revela que 85,3% dos brasileiros pretendem se vacinar contra a covid-19 “se um imunizante comprovadamente seguro e eficaz estiver disponível”. O alto porcentual de aceitação da tão esperada vacina no Brasil só é menor do que o apurado na China (88,6%). O achado faz parte de um levantamento feito por especialistas dos Estados Unidos e da Europa com 13.400 pessoas nos 19 países mais afetados pela pandemia. Em média, 72% dos entrevistados disseram aceitar um imunizante contra o novo coronavírus sob aquela condição, e 28% o recusariam ou teriam algum receio de tomá-lo.

“O porcentual do Brasil não é uma surpresa, vários outros estudos já mostraram a mesma coisa”, disse ao Estado a médica Isabella Ballalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações. “Os brasileiros confiam em vacina, entendem que a vacinação é algo importante”, disse a médica.

De fato, o resultado da pesquisa com os brasileiros não surpreende. É o retrato da consciência da Nação. Neste penoso curso da pandemia, que já custou a vida de quase 160 mil de nossos concidadãos, a sociedade deu mostras de independência em relação às diatribes e mistificações do presidente da República em sua caótica condução da emergência sanitária. Tampouco se deixou levar acriticamente pela insanidade que grassa no esgoto das redes sociais. Nos corações e mentes da esmagadora maioria dos cidadãos, as vozes da ciência e o instinto de preservação calaram mais fundo do que a retórica política e a negação da realidade.

Poesia | Carlos Pena Filho - Guia prático da cidade do Recife

O início

No ponto onde o mar se extingue
e as areias se levantam
cavaram seus alicerces
na surda sombra da terra
e levantaram seus muros
do frio sono das pedras.
Depois armaram seus flancos:
trinta bandeiras azuis
plantadas no litoral.
Hoje, serena, flutua,
metade roubada ao mar,
metade à imaginação,
pois é do sonho dos homens
que uma cidade se inventa.

O navegador holandês

Outrora o tempo era intacto
em seus braços prolongados
e às suas línguas de areia,
virgens de pés e barcaças,
virgens de olhos e lunetas
(até de imaginação)
chegou, tranquilo e exato,
o argonauta do improviso,
trazendo o sol na cabeça
e o mar do fundo dos olhos,
um gosto de azul na boca
sob a audácia dos bigodes
flamengos e retorcidos.
Mas, depois de algumas bulhas
com o português cristão
e alguns segredos de amor
com as donzelas de então,
escorraçado voltou,
deixando-nos essas coisas
que a sua presença atestam:
algumas mulheres prenhas
destes Wanderleys que restam.

Esse tempo, há muito gasto,
resiste apenas, agora,
em feriados de escola
e em frias e sonolentas
ordens do dia, em quartéis
onde fofos capitães,
esverdeados por fora,
ganham a vida e as estrelas,
o dia, o mês e o ano
à custa do amarelinho
e alegre ‘porque me ufano’.

Manoel, João e Joaquim

Desse tempo, é o que resta
para um discreto dizer,
pois quem cantou esse tempo
já não é do meu saber.
Hoje a cidade possui
os seus cantores que podem
ser resumidos assim:
Manoel, João e Joaquim.

No jardim Treze de Maio,
Manoel vai ficar plantado,
para sempre e mais um dia,
sereno, bustificado,
pois quem da terra se ausenta
deve assim ser castigado.
Dali não poderá ver
a casa do seu avô
e nem a rua da Aurora,
nem o que o tempo acabou,
nem o mar nem a sereia
e nem boi morto na cheia
desse rio escuro e triste,
de lama podre no fundo
e baronesas na face,
que vem, modorra e preguiça,
parando pelas campinas
e escorregando nos montes,
até este sítio claro,
onde cobriram seu leito
de pedra, ferro e cimento
organizados em pontes.
Desde a Velha, carcomida,
paisagem para detentos,
que é por onde sempre passa
esse povo marginal,
escuro e anfíbio que habita
o cais dito do Areal,
até à ponte mais nova
que tem o nome mais velho:
a ponte de Duarte Coelho.
Mas tudo o que for do rio,
água, lama, caranguejos,
os peixes e as baronesas
e qualquer embarcação,
está sempre e a todo instante
lembrando o poeta João
que leva o rio consigo
como um cego leva um cão.
Mas vieram de longe as águas
que aqui no Recife estão,
já começaram areia e pedra
lá bem perto do sertão
e é por isso, talvez,
que escuras e tristes são.
Porém não foi só tristeza
sua peregrinação,
em seu trajeto tiveram
a farta satisfação
de dar de beber a secos
homens, cavalos e bois
e em seu incerto caminho
ainda viram depois
os sítios cheios de sombra,
onde dorme o sonho espesso
do poeta Joaquim que foi
fazer uma estação de águas
nos olhos do seu amor
e trouxe nos seus, acesos,
os cajueiros em flor.

A Praia

Mas não é só junto ao rio
que o Recife está plantado,
hoje a cidade se estende
por sítios nunca pensados,
dos subúrbios coloridos
aos horizontes molhados.
Horizontes onde habitam
homens de pouco falar,
noturnos como convém
à fúria grave do mar.
Que comem fel de crustáceos
e que vivem do precário
desequilíbrio dos peixes.
Nesse lugar, as mulheres
cultivam brancos silêncios
e nas ausências mais longas,
pousam os olhos no chão,
saem do fundo da noite,
tiram a angústia do bolso
e a contemplam na mão.
Só os velhos adormecem,
lembrando o tempo que foi,
vazios como o vazio
e fácil sono de um boi.

Subúrbios

Nos subúrbios coloridos
em que a cidade se estende,
em seus longos arredores,
onde, a cada instante nasce
uma rosa de papel,
caminham as tecelãs.
Restos de amor nos cabelos
que ocultam por ocultar,
levam a noite no ventre
e a madrugada no olhar
e em esqueletos da sombra,
onde a luz chega filtrada,
as tecelãs vão parar.
Adeus lembrança de amores,
adeus leve caminhar.
Agora resta somente
um desencanto sereno:
o gerente e as botinas,
magoando o silêncio pleno.

Mas, nos domingos mais claros,
as tecelãs se transformam
em puras rosas de sal
e oferecem os seus braços
à curva do litoral.
Nem se lembram mais do mangue,
podre, virgem, vegetal,
onde os homens são sem sonhos,
como qualquer mineral.

A Lua

Mas, enquanto tudo é fome,
por todo o reino animal,
existe ainda fartura
na "terceira capital",
pois os que forem passear
no cais da rua Aurora,
em certa noite do mês,
poderão sair dizendo,
todos juntos, de uma vez:
Era uma lua tão grande,
de tão vermelha amplidão
que mesmo Ascenso Ferreira,
comendo só a metade,
morria de indigestão.

Igrejas

Não é que somente em luas,
o Recife farto seja;
é farto, também de igrejas.
Tem a de São Francisco,
na rua do Imperador,
com rezas pra Santo Antônio
e promessas por amor;
tem a Igreja de São Pedro,
no pátio do mesmo nome
que se fosse gente, há muito
tinha morrido de fome,
mas, como é, firme, resiste,
sozinha, em seu abandono
e em seu destino bem triste
de igreja quase sem dono.
E como se fosse pouco
seu exílio obrigatório,
ainda está condenada
a ver o bar de Gregório,
onde os nossos literatos,
criados a uva e maçãs,
levam os amigos de fora
pra comer sarapatel,
depois transformado em obra
com tinta escura e papel.

Mas não é só; o Recife
ainda tem muitas igrejas
lavando os pecados seus.
Tem lá perto do mar,
plantada em meio do mal,
a sua concatedral
chamada Madre de Deus,
que é onde essas menininhas
de Maria Madalena
vão à missa e à novena.

O bairro do Recife

Ali é que é o Recife
mais propriamente chamado,
com seu pecado diurno
e o seu noturno pecado,
mas tudo muito tranquilo,
sereno e equilibrado.
No andar térreo, moram os bancos
(capitais da Capital)
no primeiro, a ex-austera
Associação Comercial,
no segundo, a sempre fútil
Câmara Municipal
e, no terceiro, afinal,
está a alegre pensão
da redonda Alzira, a viga
mestra da prostituição.
Mas como vivem tão bem,
em tão segura união,
qualquer dia, todos juntos,
vão fundar a Associação
dos Múltiplos Pecadores,
com banqueiros, comerciantes,
prostitutas, vereadores,
ingleses do British Club,
homens doentes e sãos,
pois o camelô já disse
que somos todos irmãos.
Esse é o bairro do Recife
que tem um cais debruçado
nas verdes águas do Atlântico
e ainda tem o cais do Apolo,
apodrecido e romântico,
beleza que ainda resiste
lá nos desvãos da memória
desse bairro que se escoa
pela Ponte Giratória,
que é uma estranha armação
que aguenta em seu férreo dorso
automóvel, caminhão
e trem de carga bem cheio,
mas não resiste às barcaças
que a fendem do meio a meio.

São José

É por ela que se chega
ao bairro de São José,
de ruas de casas juntas,
cariadas, mas de pé.
De classe média arruinada,
mas de gravata e até
missa ao domingo, pois sempre
é bom ter alguma fé.
Bairro português que outrora
foi de viver e poupar,
nascer, crescer e casar
naquela igreja chamada
São José de Ribamar.

Chope

Na avenida Guararapes,
o Recife vai marchando.
O bairro de Santo Antônio,
tanto se foi transformando
que, agora, às cinco da tarde
mais se assemelha a um festim.
Nas mesas do Bar Savoy,
o refrão tem sido assim:
são trinta copos de chope,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.
Ah, mas se a gente pudesse
fazer o que tem vontade:
espiar o banho de uma,
a outra, amar pela metade
e daquela que é mais linda
quebrar a rija vaidade.
Mas como a gente não pode
fazer o que tem vontade,
o jeito é mudar a vida
num diabólico festim.
Por isto no Bar Savoy,
o refrão é sempre assim:
são trinta copos de chope,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.

Oradores

Este ponto verde aqui,
feito de folhas e flores,
é o Jardim Treze de Maio,
onde os nossos oradores
vão um ao outro contar
como foi que conseguiram
a vida inteira passar
nas trevas da ignorância
sem nunca desconfiar.
Pois, cada qual sente um gênio
dentro de si borbulhar
e, coitadinhos, nem sabem,
que o que borbulha é a ameba
que não puderam tratar.

Secos e molhados

Ainda existe muita coisa
de bom e ruim pra contar,
mas como sou conhecido
por discreto no falar,
irei, agora, evitar.
Mas não sem antes passar
pelos armazéns de estiva,
mar dos nossos tubarões,
de brasileiros sabidos
e portugueses sabidões
que na vida leram menos
que o olho cego de Camões,
mas que em patacas possuem
muito mais que Ali Babá
e os seus quarenta ladrões.
É por isto que aos domingos,
cada qual na sua Igreja,
reza, assim, as orações:
Naquele mastro real,
vê se descobres um meio
de aumentar meu capital.
Vendendo carne de charque,
importando bacalhau,
dizendo que prata é ouro
e latão é bom metal.
É assim que vivemos desde
Pedro Álvares Cabral.
Pois o Papa já nos pôs,
no Trato das Tordesilhas,
além do bem e do mal.

O fim

Recife, cruel cidade,
águia sangrenta, leão.
Ingrata para os da terra,
boa para os que não são.
Amiga dos que a maltratam,
inimiga dos que não
este é o teu retrato feito
com tintas do teu verão
e desmaiadas lembranças
do tempo em que também eras
noiva da revolução