segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Fernando Gabeira - Vai-se a segunda pomba

- O Globo

Existe uma vacina contra a raiva, mas não existe uma vacina combinada contra raiva e estupidez

Vai-se a primeira pomba despertada.../Vai-se outra mais.../ Mais outra.../ Enfim dezenas...

Quando menino, costumava declamar esse soneto de Raimundo Correia na escola. Éramos endiabrados e fazíamos piadas de duplo sentido quando a ingênua professora dizia para as meninas que liam os versos: mostrem a pomba.

Essa lembrança me veio à cabeça com a publicação do Anuário de Segurança Pública, revelando o fracasso da política de Bolsonaro para conter a violência no país. Vai-se a segunda pomba, pensei.

A primeira já se foi há algum tempo. Era a luta contra a corrupção. Bolsonaro demitiu Moro, Queiroz foi preso, surgiram inúmeros dados sobre rachadinhas e funcionários fantasmas na família do presidente. Rolou muito dinheiro vivo, compra de lojas, apartamentos , os Bolsonaros não confiam em banco. O dinheiro tanto rolou que terminou aparecendo na cueca do senador amigo, Chico Rodrigues.

Pobre lobo-guará. As notas com sua estampa estrearam nas nádegas de Chico. Conheço uma família de lobo-guará que come todas as noites no pátio do Colégio do Caraça. Os padres que alimentam os lobos precisam rezar por nós.

Apesar da pandemia, o número de mortes aumentou em 7% em 2020. Havia caído em 2019. Era resultado do governo Temer, que criou o Ministério da Segurança, o sistema integrado e fez a intervenção militar no Rio. Bolsonaro e Moro celebraram, faz parte do jogo. Mas o mérito estava lá atrás.

Um país que tem um estupro a cada oito minutos, com uma cidade como o Rio, que perdeu mais de 50% do território para as milícias, homenageadas no passado pelos Bolsonaros, é, no mínimo, inseguro, para não dizer falido.

Roberto Freire* - O Cidadania e a Primavera Negra

- Portal do Cidadania

O Cidadania entende a decisão sobre os critérios raciais para divisão de tempo de propaganda no rádio e na televisão e do fundo eleitoral no pleito municipal deste ano como uma medida justa e estruturante. Uma decisão que muda para melhor o país. Esse passo, que ocorre em meio a uma campanha nacional e internacional denominada “Primavera Negra”, merece e terá todo o respeito e aval da nossa legenda.

Contamos com o suporte do coletivo Igualdade 23 nos esforços para que essa decisão seja cumprida e valorizada em todas as instâncias do partido. Compreendo que essa não será uma missão árdua em razão do histórico que, iniciado na fase do PCB, o partido sempre teve sobre a importância de promover a igualdade racial e combater o racismo.

Um dos núcleos pioneiros do PCB se chamava Grupo Comunista Zumbi, liderado por Astrojildo Pereira, dirigente reconhecido como um pilar, uma “alma” da legenda. Ele foi um dos primeiros intelectuais a “apontar para a grandeza épica” dos Quilombos dos Palmares, chamando Zumbi de “o nosso Spartacus negro”, como resgata o historiador Ivan Alves Filho.

O PCB contou com expoentes como Edson Carneiro e Décio de Freitas, autor de uma das mais importantes obras sobre o Quilombo de Palmares. O primeiro deputado negro do Brasil, Claudino José da Silva, eleito constituinte em 1946, era do PCB.

Marcus André Melo* - Fraude e eleição

- Folha de S. Paulo

Há justificada perplexidade em relação à governança eleitoral na maior democracia do mundo.

A criação de barreiras à participação de determinados segmentos do eleitorado é inédita nas democracias. As formas que essa exclusão potencial assumem são variadas: exigências peculiares quanto ao voto pelo correio, problemas de acessibilidade às cabines de votação ou quanto à sua localização, além de exigências quanto à identificação do eleitor.

A situação é tão crítica que os estados com um histórico de práticas excludentes têm que submeter as alterações de procedimentos ao Departamento de Justiça. No passado, tais práticas consistiam de exigências como quitação de taxas individuais ou testes severos de alfabetização, o que acabava excluindo a população negra e/ou pobre.

Entre nós a exclusão dos setores pobres é muito mais complexa. A Lei Saraiva (1881) proibiu o voto dos analfabetos; a legislação posterior referendou-a, mas a implementação era pífia. As coisas só mudam na prática com a adoção, em 1955, da cédula oficial em substituição as fornecidas pelos próprios partidos, e que permitia a violação sutil do sigilo do voto.

Celso Rocha de Barros* - Foi mais acordão que moderação

- Folha de S. Paulo

Veto à vacina mostra que Bolsonaro cede aos radicais em tudo que só ferrar os pobres

Na semana passada, o presidente da República decidiu que o governo brasileiro não vai comprar a vacina Coronavac porque ela é fabricada na China. A vacina que o governo federal prefere, da Astrazeneca (a “vacina de Oxford”), também tem insumos chineses, mas Bolsonaro não se importa.

O que lhe pareceu importante foi atacar o governador de São Paulo, João Doria, que vai aplicar a vacina “chinesa” em São Paulo. De fato, nada demonstra melhor que as instituições brasileiras estão funcionando do que a condução de um debate científico por meio de crise federativa.

Em plena pandemia, vetar uma vacina para sabotar um adversário político é crime que deveria dar uma cadeia boa, mas, sinceramente, por que Bolsonaro teria medo disso?

O que aconteceu com ele nos primeiros 155 mil mortos? Ou dos dois primeiros ministros da Saúde que ele não deixou que fizessem seu trabalho? Não vejo por que Bolsonaro deveria respeitar limites que nunca lhe foram apresentados. Mas, além de ser crime, pode ter sido um erro.

Ruy Castro* - Um dia na vida do presidente

- Folha de S. Paulo

Ele não tomava medidas genocidas, não agredia as instituições, não mentia para a nação

"O Sr. Presidente da República acorda invariavelmente às 7 da manhã e, vestido de seu rôbe de chambre, tendo à cabeça uma touca de seda preta, dirige-se para o banheiro, onde toma banho morno. Depois do banho, S. Exa. bebe um copo de leite e, pouco depois, serve-se de café, que deve ser forte, rejeitando-o quando assim não acontece. Em seguida, faz sua toalete e passa a ler os jornais, dirigindo-se depois para a sala particular de sua Exma. esposa, onde conversa algum tempo, sempre com aquele modo frio, seco e pouco expansivo. Às 11 horas, almoça e desce para a sala de despachos no palácio, onde examina os papéis e as questões que tem de decidir.

Catarina Rochamonte* - Vacina e política

- Folha de S. Paulo

O que pode o Estado? Dar uma resposta a essa questão a partir da reflexão sobre a passagem de uma condição de natureza para uma condição civil é marca dos pensadores contratualistas. Citemos dois. Para Thomas Hobbes, é o medo da morte e a necessidade de proteção contra ela que fundamentam a referida passagem e a eficácia do Estado depende da submissão absoluta do indivíduo, que abandona os seus direitos e aliena a sua liberdade em troca de proteção. Já para John Locke, apenas o direito de fazer justiça com as próprias mãos é abandonado, conservando-se o direito à vida, à liberdade e à propriedade.

Locke é o pai do liberalismo; Hobbes foi o teórico do Leviatã. Pandemia, mortes, medos, máscaras, vacinação: tudo isso passa pelo debate sobre segurança e liberdade, sobre Estado e indivíduo. Mas o debate foi trocado pela briga de egos e pela pequenez de quem só se move visando o ganho de capital político.

As incompetências e os crimes que causaram o agravamento da pandemia no Brasil estão espalhados, mas a briga entre o presidente Jair Bolsonaro e o governador João Doria em torno da vacina contra a Covid-19 atingiu o auge da irresponsabilidade. Fazer alarde contra vacinação e desautorizar o ministro da Saúde em iniciativa correta em relação à compra de uma vacina que pode ser promissora não é a atitude que se espera de um presidente; alardear vacinação compulsória não é o que se espera de um governador.

Mathias Alencastro* - O último xerife do mundo

- Folha de S. Paulo

Confronto com China será maior legado do mandato de Donald Trump

Para um presidente que se define como ultranacionalista, Donald Trump se mostrou sempre muito investido, e por vezes até fascinado, pelas tramas de política externa.

A sua atitude de desprezo pelas instituições internacionais, tratadas como burocracias decadentes, contrasta com a forma apaixonada com que lidou com outras agendas diplomáticas.

Aos trancos e barrancos, ele redesenhou os jogos de poder em certas regiões do mundo e redefiniu o debate da política externa nos Estados Unidos.

A forma como estabeleceu os termos do confronto entre os Estados Unidos e a China será, sem dúvida, o maior legado do seu primeiro mandato. Pouco importa que a guerra comercial seja inócua ou até contraproducente.

Bruno Carazza* - Dando nome aos bois

- Valor Econômico

Processo sobre imposto sobre doações é exemplo de concentração de renda

No início dos anos 2000, uma notinha da coluna Radar, na revista Veja, contou que um ascendente empresário de São Paulo, mostrando-se interessado em comprar um jatinho Gulf Stream de última geração, perguntou a Abílio Diniz sobre os custos de manutenção da aeronave. O então dono do Grupo Pão de Açúcar teria respondido nos seguintes termos: “Se você se preocupa com esse tipo de questão, certamente ainda não está preparado para ter um avião como esse”.

De acordo com os registros da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), existem 46 jatinhos Gulf Stream voando pelos céus brasileiros. Quatro deles são modelos da sexta geração, cujo preço se situa acima de US$ 60 milhões, e foram comprados ou arrendados pelas famílias Diniz, Oliveira Andrade (Caoa) e Sanchez (farmacêutica EMS), além de uma empresa de táxi aéreo.

O que pouca gente sabe é que a propriedade de jatinhos de luxo não é tributada no Brasil graças a uma decisão do Supremo Tribunal Federal de 2007. Valendo-se de um malabarismo semântico e de uma frágil interpretação da evolução histórica da legislação, o ministro Gilmar Mendes convenceu a maioria de seus pares de que a determinação da Constituição de instituir impostos sobre a “propriedade de veículos automotores” (art. 155, III) só se aplica a veículos terrestres, não devendo ser estendida a aeronaves e embarcações (RE 379.572-4). A partir daí, ao contrário dos pobres mortais que pagam IPVA sobre seus carrinhos, os jatos, helicópteros, iates e lanchas dos multimilionários estão isentos.

Eric Posner* - Crise constitucional a caminho nos EUA?

- Valor Econômico

O direito capturou a Suprema Corte, mas perdeu a batalha para a opinião pública

Desde a eleição de Donald Trump em 2016, juristas como eu têm sido bombardeados por e-mails de jornalistas que querem saber se os Estados Unidos estão passando por uma “crise constitucional” ou caminham para ela. A maioria dos questionamentos tem sido motivada pelo desapreço do presidente às leis, incluindo sua interferência na investigação do promotor especial Robert Mueller sobre a interferência da Rússia nas eleições, seus ataques verbais a jornalistas e juízes e seus esforços para lançar investigações contra seus adversários políticos.

Uma crise constitucional, devidamente entendida como um ponto de inflexão que pode levar ao colapso ou transformação do sistema, não ocorreu. Mas tal crise parece agora cada vez mais provável. Não estou falando das eleições (embora elas possam produzir uma crise constitucional se o resultado for apertado, ou na improbabilidade de Trump de alguma forma se recusar a deixar o cargo). Na verdade, estou me referindo a uma crise que poderá ocorrer mesmo se Trump perder. Essa crise surgiria de uma tensão que existe ao longo de toda a história americana; isto é, entre os tribunais e um sistema de democracia que concede o poder máximo ao povo.

Até hoje houve duas crises constitucionais na história americana. Ambas envolveram um choque entre a Suprema Corte e autoridades eleitas apoiadas pela opinião pública. A primeira começou com o infame caso Dred Scott versus Sandford em 1857. Nesse caso, a Suprema Corte julgou que os afro-americanos não eram cidadãos dos EUA e que o Compromisso de Missouri de 1820 - que adiou a guerra civil ao fornecer uma fórmula para dividir o território entre Estados pró-escravatura e Estados pró-abolicionistas - era inconstitucional.

Chilenos votam por mudança da Constituição da era da ditadura

Com mais de 82% dos votos contados, 78% dos chilenos votaram para redigir uma nova Constituição, contra 22% que desejam manter a mesma carta

Por Dow Jones Newswires / Valor Econômico

SANTIAGO - Os chilenos votaram esmagadoramente para mudar sua Constituição da era da ditadura em um referendo neste domingo, iniciando um processo que pode mudar o cenário político em uma das nações mais ricas da América Latina em meio a uma reação social contra o status quo.

Com mais de 82% dos votos contados, 78% dos chilenos votaram para redigir uma nova Constituição, contra 22% que desejam manter a mesma carta, de acordo com a agência eleitoral nacional.

Na capital do país, Santiago, milhares de pessoas cantaram e agitaram bandeiras em uma praça emblemática para comemorar os resultados.

O Chile, um país de 18 milhões de habitantes, deve agora iniciar um processo de dois anos para redigir uma nova Constituição, um período que analistas políticos e economistas esperam que seja repleto de incertezas. Os eleitores devem eleger em abril uma assembleia de 155 membros para redigir a nova Carta, que precisará ser aprovada em um plebiscito em 2022. Metade dos delegados recém-eleitos serão mulheres. A redação da Constituição coincidirá com a eleição presidencial do próximo ano.

A nova Constituição substituirá a Carta de 1980, que foi elaborada durante a ditadura militar do general Augusto Pinochet. Ele assumiu o poder com um golpe que derrubou o então presidente Salvador Allende, um marxista cuja eleição de 1970 e as subsequentes nacionalizações de indústrias importantes transformaram o Chile em um campo de batalha da Guerra Fria.

Fareed Zakaria* - Uma reeleição improvável

-The Washington Post / O Estado de S. Paulo

Correrei novamente o risco de prever que Trump perderá a eleição. Ainda aposto no melhor dos EUA.

Em 2016, eu estava entre os que duvidavam da vitória de Donald Trump. Como muitos, estudei as pesquisas e acreditei que elas mostravam uma confortável margem contra ele. Pensei que o público enxergaria através de sua máscara. Era um candidato estranho demais, vulgar, ignorante a respeito da maioria das políticas públicas e patologicamente incapaz de dizer a verdade, mesmo em se tratando de assuntos triviais.

O que mais me convenceu da derrota de Trump foi o fato de eu acreditar em uma versão diferente dos EUA. Ele irrompeu no palco político questionando o local de nascimento de Barack Obama – um esforço desavergonhado para explorar o preconceito contra o primeiro presidente negro. Trump anunciou sua campanha pela Casa Branca com comentários racistas contra mexicanos. Prometeu “o fechamento total e completo" das fronteiras a todos os muçulmanos. Durante sua campanha, a retórica contra estrangeiros e minorias foi insultante.

Não acreditei que os americanos escolheriam isso. Cheguei aos EUA em 1982, em meio a uma profunda recessão, como estudante de pele escura e nome estranho cursando uma bolsa de estudos, sem nenhum dinheiro e sem conhecer ninguém. Encontrei um país que me recebeu de braços abertos. Ainda lembro de como fiquei impressionado com o quanto as pessoas eram amistosas, de um calor sincero. Na Índia, eu era mais consciente do fato de ser muçulmano do que nos EUA.

Talvez eu tenha vivido protegido nas cidades universitárias da Nova Inglaterra e em Nova York, mas raramente tinha entrado em contato com o tipo de racismo direto de Trump. É claro que eu sabia que isso existia, e já tinha lido a esse respeito em livros e jornais, e o visto retratado em filmes e programas de TV, mas não tinha me dado conta da magnitude do fenômeno. Assim, atribuí menos peso do que deveria aos fatores que indicavam uma vitória de Trump. Eu simplesmente não acreditava que alguém com uma visão tão racista fosse capaz de conquistar o país.

Denis Lerrer Rosenfield* - A ideologia bolsonarista

- O Estado de S.Paulo

Na luta contra a vacina anticovid-19, os atos do presidente mostram um traço arbitrário.

Um aspecto da extrema direita no poder, do ponto de vista ideológico, é o desprezo pela ciência e, em decorrência, no caso brasileiro, pela saúde dos cidadãos. O que se apresenta como uma das grandes conquistas civilizatórias é relegado a mero instrumento de luta política, desaparecendo a preocupação com o bem coletivo. 

É simplesmente assustador que, o País alcançando a astronômica cifra de mais de 155 mil mortos pela covid-19, o debate provocado pelo presidente e suas hostes digitais gire em torno de um combate contra a vacina. Não se discute a saúde, mas os meios de propagação da morte.

Os exemplos são inúmeros deste teatro da doença e de sua aceleração, o Brasil ostentando um dos maiores índices de mortandade por milhão de habitantes. Um campeonato mundial que deveria ser motivo de vergonha, não de júbilo. Tudo está invertido, como se a perversão dos valores devesse ser a regra. A cloroquina é talvez o mais aberrante, graças à propaganda utilizada, quando é um medicamento, para esses fins, comprovadamente inútil, ineficaz. Na escassez de recursos, no entanto, milhões foram gastos por simples ordem presidencial, com o apoio de Donald Trump, que fez uma “doação” ao Brasil. Signo de “amizade”, dizia-se, quando é, na verdade, exposição de falta de consideração. O que não serve lá foi enviado para cá. Desculpem a expressão, fomos tratados como uma república bananeira.

Cacá Diegues - O mistério do galo

- O Globo

Pelé era o que nós queríamos que o Brasil fosse

O brasileiro Edson Arantes do Nascimento acaba de completar 80 anos de idade, o que passaria despercebido se Edson não fosse o Pelé, como é conhecido no mundo inteiro. Nelson Rodrigues comparava o maior atleta do século XX a gênios como Homero e Leonardo. Mas, acima de tudo, Pelé era a representação de nossa alegria e graça; de nossa superioridade produzida pelo drible, o risonho engenho de dobrar o outro; pelo gol inevitável e fatal, nunca igual e nem mesmo semelhante; pela festa dos estádios celebrando o que ele fazia por nós. Pelé era o que nós queríamos que o Brasil fosse.

Como escreveu outro craque, Tostão, “a perfeição não é humana, Pelé é uma exceção”. Dessa perfeição, uma exceção, tirávamos nossa desforra de tudo o que nos maltratasse, da fome do povo à namorada que nos traía, do político mentiroso à nota baixa em filosofia, do subdesenvolvimento à praia sem sol. Pelé era o gol que nunca perdemos, mesmo que tomássemos de goleada no cotidiano. Direto de Vila Belmiro, ele nos trazia a esperança da chegada de um novo país igual a ele. Igual ou parecido, que parecido já estava muito bom.

Esse país nunca chegou e talvez nem chegue mais, pois Pelé já está fazendo 80 anos, e ninguém tem notícia de um Brasil igual ou parecido com ele: maneiro e correto, cordial e guerreiro, capaz de mudar sua própria história numa única, inventiva e solitária jogada, ou de se misturar com a equipe para reescrever a história da civilização. Não estou inventando nada, perguntem a quem jogou com ele, como Jairzinho e Tostão, como Coutinho ou Pepe. Era muito mais fácil fazer gol com Pelé no time, contando com sua íntegra solidariedade com os companheiros de valor.

Ana Maria Machado - Uma lição chocante

- O Globo

Lobby de malfeitores talvez venha se dando bem demais, ao impor à nação essa obrigação de ‘liberar geral’

A chocante decisão do ministro Marco Aurélio, de soltar o chefão do tráfico condenado em segunda instância, nos dá a chance didática de uma análise rigorosa sobre o país que estamos deixando para nossos filhos.

O juiz supremo explica que apenas cumpriu o que manda uma lei recente, criada e aprovada pelo Congresso. Sancionada pelo chefe do Executivo, que a fez entrar em vigor. Tudo nos conformes democráticos. Por gente que atirou no que viu e acertou no que não viu. Se é que foi isso mesmo.

Deixando de lado a evolução do caso específico, podemos até bancar os ingênuos e dar um crédito a quem criou essa aberração: o de fingir que engolimos a pílula de seu cuidado em evitar abusos na prisão preventiva e garantir a presunção de inocência até a ultima gota, mesmo de quem tem duas condenações em segunda instância. Mas podemos ao menos reconhecer que a turma está exagerando, não?

O que a mídia pensa – Opiniões / Editoriais

Brincando com fogo – Opinião | O Estado de S. Paulo

Num momento de fuga de capitais e ameaças de estrangeiros alarmados com o desmatamento, a chantagem de Ricardo Salles é grave sinal de instabilidade e insegurança.

Em meio ao maior volume de queimadas desde 2012, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) determinaram, na noite de quarta-feira, 21, que todos os agentes de combate em campo voltassem às suas bases. A alegação foi de que o Ministério da Economia se recusava a fazer repasses de verbas. Muitos dos 1.400 brigadistas já estavam a bordo de barcos e ônibus quando, após um acordo costurado às pressas com os Ministérios da Economia e do Desenvolvimento Regional, o Ibama determinou, na sexta-feira, que os agentes retomassem o combate aos incêndios. O episódio expõe dois aspectos da gestão ambiental do governo que vêm à tona dia sim e outro também: a inépcia e a perversidade.

Não é a primeira vez que Salles ameaça um apagão no combate ao desmatamento e às queimadas. Neste ano, o orçamento previsto para sua pasta foi de R$ 563 milhões. Ante as incertezas provocadas pela pandemia, o Ministério da Economia, dentro de sua competência, determinou uma reserva de caixa de R$ 230 milhões. No fim de agosto, ante a ameaça de Salles de paralisar as operações, o governo liberou R$ 96 milhões para o Ministério do Meio Ambiente (MMA). Agora, o ministro voltou à carga para exigir os R$ 134 milhões restantes.

Das duas uma: ou a pasta, conforme suas dotações orçamentárias, acredita ter algo como um direito líquido e certo aos recursos, o que lhe daria o direito de acionar as devidas instâncias administrativas, ou, como é obviamente o caso, se trata de uma margem discricionária, e sendo assim precisa negociar a liberação com o Ministério da Economia e, em última instância, com o presidente da República. Se julgar que o resultado dessas negociações inviabiliza a execução de suas atribuições, o ministro pode sempre pedir as contas.

Poesia | Ascenso Ferreira - História Pátria

Plantando mandioca, plantando feijão,

colhendo café, borracha, cacau,

comendo pamonha, canjica, mingau,

rezando de tarde nossa ave-maria,

           Negramente…

                  Caboclamente…

                         Portuguesamente…

A gente vivia.

 

De festas no ano só quatro é que havia:

Entrudo e Natal, Quaresma e Sanjoão!

Mas tudo emendava num só carrilhão!

E a gente vadiava, dançava e comia…

          Negramente…

                 Caboclamente…

                           Portuguesamente…

Todo santo dia!

 

O Rei, entretanto, não era da terra!

E gente pra Europa mandou-se estudar…

Gentinha idiota que trouxe a mania

de nos transformar

da noite pro dia…

 

A gente que tão

           Negramente…

                  Caboclamente…

                         Portuguesamente…

Vivia!

 

(E foi um dia a nossa civilização

tão fácil de criar!)

 

Passou-se a pensar,

passou-se a cantar,

passou-se a dançar,

passou-se a comer,

passou-se a vestir,

passou-se a viver,

passou-se a sentir,

tal como Paris

pensava,

cantava,

comia,

sentia…

A gente que tão

                      Negramente…

                              Caboclamente…

                                     Portuguesamente…

Vivia!