domingo, 8 de novembro de 2020

Merval Pereira - Efeito Orloff

- O Globo

Certamente o fator decisivo para a vitória de Joe Biden sobre Donald Trump foi a capacidade do ex-vice-presidente de encarnar o que mais os Estados Unidos precisam hoje, um conciliador. O caminho para derrotar um extremista de direita não é um extremista de esquerda, e por isso Bernie Sanders se perdeu pelo caminho durante as primárias, e Biden recuperou sua vantagem moral com os votos dos negros na Carolina do Sul.

O mesmo pode acontecer entre nós. O famoso efeito Orloff, eu sou você amanhã. Se em 2018 o eleitorado queria sangue nos olhos, e por isso o PT ainda conseguiu levar seu candidato Haddad ao segundo turno, menos por ele, que é um moderado, mais pela história do partido, radicalizado pela prisão do ex-presidente Lula, talvez não seja esse o cenário em 2022.

Essa tensão permanente que Trump impunha aos Estados Unidos e ao mundo cobra seu preço, assim como aqui entre nós Bolsonaro já teve que dar uma meia trava em sua beligerância. Trump e Bolsonaro têm os mesmos arroubos autoritários que acabam sendo uma ameaça à democracia que lhes proporcionou chegarem onde chegaram.

Ambos se batem contra as instituições democráticas que limitam os poderes de um presidente da República, como sói acontecer na democracia ocidental. Ambos se colocam contra a imprensa livre e tentam constrangê-la com ataques e críticas. Agora, nos Estados Unidos, Trump viu-se na condição de censurado a bem da verdade pelas três redes de televisão aberta do país, uma atitude drástica que mostrou a que ponto de conflito as relações do presidente com os órgãos de imprensa chegaram.

Os conflitos estimulados, a violência tolerada, como Trump com os supremacistas brancos e Bolsonaro com os radicais que cercaram o prédio do Supremo Tribunal Federal (STF) e ameaçavam o fechamento do Congresso, acabam cansando os cidadãos comuns, que não estão em guerra com o mundo e buscam um ambiente pacífico para viver, especialmente empregos para trabalhar.

Míriam Leitão - Vitória da causa da humanidade

- O Globo

'A causa da América é, em grande medida, a causa de toda a humanidade.' A frase escrita por Thomas Paine em 1766 amanheceu ontem como nova. “O sol jamais brilhou sobre uma causa com maior importância”, escreveu Paine, o incandescente fundador da pátria, no “Senso Comum”. A vitória de Joe Biden e Kamala Harris tem múltiplos significados. O presidente eleito Joe Biden avisou no seu primeiro comunicado: “O trabalho adiante de nós vai ser duro.” E será. Ninguém expressou melhor o sentimento de deixar para trás um governo que pregou a intolerância e praticou a mentira do que o comentarista Van Jones. E o fez aos prantos. “É mais fácil ser pai esta manhã. Mais fácil falar aos filhos que ter caráter é importante.”

Quando Donald Trump, no primeiro debate, se negou a condenar um grupo que prega a supremacia branca, o negro Van Jones, comentarista da CNN, perguntou o que dizer às crianças, ao filho. Agora há muito a contar aos jovens sobre velhas lutas contra preconceitos. O homem mais velho a ocupar a Casa Branca vem junto com uma mulher negra, filha de imigrantes. “We did it, Joe”, disse ela, rindo no telefonema ao vencedor. Tudo é simbólico. Há 100 anos as mulheres americanas conquistaram o direito de voto. Kamala Harris é água desse rio que corre há um século e que abrigou em seu leito outros rios. Será lindo vê-la assumindo a vice-presidência do país escolhido por sua mãe indiana e pelo seu pai jamaicano. É o momento em que se pensa que não há impossíveis, não há “isso não é para você”.

Ricardo Noblat - Bolsonaro escolheu sair derrotado das eleições americanas

- Blog do Noblat | Veja

O risco do isolamento

Deu no The New York Times, o mais importante jornal do planeta: “Enquanto os líderes da América Latina e do Caribe se apressaram em parabenizar Biden por sua vitória e prometeram trabalhar em estreita colaboração com seu governo, os governos do México, Brasil e El Salvador permaneceram em silêncio”.

O presidente Jair Bolsonaro custou a acreditar que Donald Trump pudesse ser derrotado pelo democrata Joe Badin, “esse cara”. Ao perceber que isso seria possível, passou a acreditar que ao fim e ao cabo as ações movidas por Trump e pelo Partido Republicano acabariam sendo acolhidas pela Suprema Corte.

Ao dar-se conta nas últimas 48 horas de que não serão, decidiu ainda assim que tão cedo enviará a Biden uma mensagem de parabéns. O que ele pensa em ganhar com isso? Até Boris Johnson, o primeiro-ministro do Reino Unido, mais ligado e mais dependente de Trump do que é Bolsonaro, parabenizou Biden.

Não falta vida inteligente ao lado do presidente brasileiro ou ao alcance de um telefonema dele em busca de conselho. Falta vida inteligente em Bolsonaro, bem como disposição de ouvir o que o contrarie. Nisso ele e Trump são iguaizinhos: querem que todos que os cercam digam amém às suas ideias e as exaltem.

Há os que imaginam que existe método na loucura de Bolsonaro. Ocorre que nem sempre há. Sobra estupidez. O que Trump fez por ele ou pelo Brasil para merecer tamanha admiração e vassalagem por parte dele? Nada. O que Bolsonaro fez para que Trump pelo menos se interessasse por ele? Tudo que pode.

Bruno Boghossian - Manual de golpe de Estado

- Folha de S. Paulo

Sobrevivência de populistas depende de militares, radicais, juízes e do establishment político

Quando um governante não tem votos para ficar no cargo, ele pode sair de forma graciosa ou se agarrar à cadeira. Os autocratas que escolhem o segundo caminho costumam recorrer a um arsenal conhecido: 1) apoio dos militares; 2) mobilização de grupos partidários nas ruas; 3) colaboração do Judiciário; 4) adesão do establishment político.


Nem todas as armas precisam ser acionadas de uma vez, mas a combinação de algumas pode garantir a sobrevivência do derrotado. Nos EUA, Donald Trump arquitetou um plano para contestar a eleição e continuar na Casa Branca, mas deve ter dificuldade para preencher os requisitos desse manual do golpe de Estado.

Na esfera da força, o americano tem o apoio de extremistas que ele fez questão de afagar ao longo do mandato. Esses radicais são úteis para criar um ambiente de instabilidade que pode estimular a reversão do resultado das urnas. De outro lado, seria mais difícil contar com líderes militares, que já demonstraram incômodo com os métodos de Trump.

Janio de Freitas - Trump até o fim

- Folha de S. Paulo

A tensão exibe nível muito alto para uma sociedade já levada a condições potencialmente conflituosas

Tirar Donald Trump da presidência com um impeachment veloz é o único meio de talvez evitar o que seria seu maior feito: aproximar ainda mais os Estados Unidos de uma convulsão. A tensão exibe nível muito alto para uma sociedade já levada, por longa elaboração, a condições potencialmente conflituosas e agora submetidas a estímulos descontrolantes.

Até a prevista posse de Joe Biden em 20 de janeiro, serão mais de dois meses concedidos a um presidente ensandecido, que acusa de roubo e corrupção o sistema eleitoral e avisa o país de que resistirá “até o fim”. Não expõe nem indícios do que acusa e não diz qual é “o fim” em sua disposição. É certo, porém, que conhece os perigos implícitos na atitude que incita o segmento da população armado, violento e numeroso —os seus seguidores extremados.

Com Trump ainda na presidência, serão dias em que dele, do seu desatino ambicioso, poderá projetar-se qualquer ato de uma mente transtornada e, apesar disso, poderosa.

Vinicius Torres Freire - Ódio nos EUA ainda assombra o Brasil

- Folha de S. Paulo

Republicanos degradados estão sacudidos, mas ainda fortes, e podem ser uma inspiração para a política local; pesadelo não acabou.

Desumanidade, sordidez, cafajestagem, mentira, ignorância, incompetência, vagabundagem, racismo e morticínio não foram empecilhos para que Donald Trump levasse o voto de quase 48% dos eleitores. Uma eventual vitória do Nero Laranja daria ainda mais impulso à liga da injustiça. Mas qual terá sido o tamanho da derrota da internacional autoritária?

A pergunta tem interesse imediato para o Brasil. Trump é guia ideológico, político e espiritual dessa gente no governo. Além do mais, uma derrota na disputa pela Casa Branca diminui o valor de mercado eleitoral do extremismo autoritário.

Apesar do revés, o espírito da podridão continua bem vivo e pode ser ainda mais atiçado pela guerrilha que o Partido Republicano está por ora disposto a mover contra um governo de Joe Biden, uma espécie de Resistência virada do avesso.

Dada a desimportância brasileira e por ter mais o que fazer, um governo democrata não deve tomar medida alguma destinada a afetar diretamente o Brasil. Sim, é possível que um esforço renovado dos Estados Unidos na contenção do desastre climático tenha impacto maior por aqui.

Elio Gaspari - O mundo inseguro das boquinhas de TI

- O Globo | Folha de S. Paulo

Às 15h de terça-feira, o sistema de computadores do Superior Tribunal de Justiça (STJ) foi invadido, e os trabalhos da Corte só voltarão ao normal nesta semana

Às 15h de terça-feira, o sistema de computadores do Superior Tribunal de Justiça (STJ) foi invadido, e os trabalhos da Corte só voltarão ao normal nesta semana.

O episódio mostra que os computadores da Viúva continuam sendo administrados de forma leviana. No mundo das altas competências, no século passado o governo brasileiro já pagou o mico de ter um sistema de criptografia das embaixadas protegido por equipamentos de uma fábrica suíça que tinha um sócio oculto, a Central Intelligence Agency americana. No governo Dilma Rousseff, descobriu-se que algumas de suas comunicações também estavam grampeadas.

Não se sabe o propósito dos invasores do STJ, pois achar que o tribunal tem meios ou recursos para pagar um resgate não faz sentido. Sabe-se, contudo, que a rede oficial de informática está contaminada por dois vícios elementares, que nada tem a ver com altas competências. É pura incompetência. Em muitas áreas, quando muda o chefão, ele troca a equipe de tecnologia. Mesmo em áreas onde isso nem sempre acontece, os hierarcas usam seus endereço da rede oficial para tratar de assuntos pessoais. Nos Estados Unidos a secretária de Estado Hillary Clinton pagou caro por isso. Assuntos oficiais e comunicações pessoais são coisas diversas. Se essa banalidade não é respeitada, só se pode esperar que o sistema esteja bichado em outras trilhas.

Eliane Cantanhêde - O Trump tupiniquim

- O Estado de S.Paulo

Com derrota externa e interna, Bolsonaro está abatido, isolado e sem referências

É estarrecedor que o presidente dos Estados Unidos acuse adversários e o próprio sistema eleitoral de fraude e corrupção, atiçando seus apoiadores para uma guerra campal e achincalhando a maior democracia do planeta. Mas Donald Trump é Donald Trump, sai da Casa Branca como entrou e leva o raro troféu de presidente que perde a reeleição, pensando sempre nele, só nele.

Biden prega união nacional, Trump mente, agride e é cortado do ar pelas três maiores redes de TV dos EUA, aprofundando a polarização do País e a divisão no Partido Republicano, que começou quando ele impôs sua candidatura no grito. Cara a cara com a derrota, ele expõe desespero e atrai críticas dos próprios republicanos e parte da direita americana que não é belicosa, mentirosa, autoritária e ignorante. Mas ele tem mais de 70 milhões de votos...

No Brasil, o voto é obrigatório com o sistema de um cidadão, um voto, seja ele banqueiro ou pedreiro. Nos EUA, é opcional e o candidato com mais voto popular pode perder a eleição no colégio eleitoral, como os democratas Al Gore e Hillary Clinton. Se o candidato republicano tem 51% em Iowa, todos os votos do Estado vão para o republicano. Se você votou no democrata, seu voto vai para o lixo.

Vera Magalhães - Nova diplomacia

- O Estado de S.Paulo

Guinada dos EUA é chance de livrar Itamaraty do ranço ideológico

Os Estados Unidos contam seus votos em ritmo de tartaruga, enquanto o mundo decora seus Estados e condados e aprende sobre seu complicado sistema eleitoral. Trata-se, para os países, de uma oportunidade de projetar a nova ordem mundial, e se preparar. O Brasil deveria estar nessa fase, não estivessem os responsáveis pela nossa política externa de luto pela confirmação da derrota do amigo Donald Trump.

A troca da guarda na Casa Branca deveria ser um alerta eloquente para o Itamaraty. Não vai mais adiantar se contentar com migalhas de atenção do “primo rico” ao “primo pobre”, com a família presidencial satisfeita em ser recebida para um tapinha nas costas.

Os democratas são conhecidos por adotar políticas protecionistas quando estão no poder. Com o republicano Trump não foi diferente nessa seara, bem sabemos. Então, nos obstáculos ao aço e alumínio brasileiros e ao jogo duro com etanol e commodities agrícolas pouco deve mudar.

Celso Ming - O que Trump prometeu e não entregou

- O Estado de S.Paulo

Desfecho da eleição nos Estados Unidos parece indicar que não há saída para as crises de nossos dias senão com cooperação, diálogo, negociação e busca de saídas multilaterais

Uma das lições a serem aprendidas a partir do resultado das eleições presidenciais nos Estados Unidos é a de que são inviáveis propostas políticas para solução da atual crise baseadas no populismo nacionalista.

O presidente Donald Trump foi eleito em 2016 porque prometeu devolver o emprego e a renda para o cidadão da classe média e a prosperidade para os negócios das empresas dos Estados Unidos. Esse programa protecionista, desenhado em pranchetas carregadas de xenofobia, foi empacotado sob o rótulo do make America great again. 

A rejeição a Trump que se viu nos mapas eleitorais do chamado Cinturão da Ferrugem (do qual fazem parte os Estados de Michigan, Pensilvânia e Wisconsin) demonstra o desapontamento do eleitor médio com a administração Trump, que não entregou o que prometeu. 

O presidente preferiu culpar a China e os imigrantes cucarachos pelo sumiço dos empregos e pela redução de salários. E apontou a União Europeia como grande responsável pela destruição dos negócios ligados à energia convencional (indústrias do petróleo, do gás de xisto e automobilística). Mas os lances da guerra comercial, os ataques aos fluxos migratórios e o pouco-caso com as aflições das minorias nem recompuseram a renda do cidadão médio e a renda familiar desidratada pelo juro negativo, nem devolveram os postos de trabalho.

Pedro S. Malan* - Faltam dois anos

- O Estado de S.Paulo

Cumpre trabalhar para que a moderação com visão de futuro prevaleça no Brasil pós-2022

Em política, como na guerra e, por vezes, na economia, dias podem valer semanas; semanas, meses; e meses, anos. Dois anos são prazo suficiente para pôr em marcha as medidas de que precisa o País para enfim conhecer crescimento razoável e sustentado e com isso atender às necessidades da população?

Muitos sustentam que é preciso aguardar a marcha dos acontecimentos: as eleições municipais iminentes ditarão os contornos das futuras coligações, partidárias ou não. Em dezembro e janeiro a atenção será consumida por eleições para as presidências da Câmara e do Senado, e então, de lideranças, mesas diretoras e presidência das principais comissões das duas Casas do Congresso. Aí já estaremos em março de 2021, abril talvez, caso o Executivo decida promover reforma ministerial para refletir o cenário resultante das urnas e com isso construir base de apoio mais sólida no Congresso. O restante de 2021 e o início de 2022 é quanto haveria para a gradual constituição de alianças e chapas com vista às eleições de outubro. E então, seis meses de intensa campanha.

É muito ou pouco tempo? Do ponto de vista político, pareceria prazo razoável fosse outra a situação econômica e social – menos incerta, tensa e volátil. Mas não é esse o caso. A complacência, essa característica tão nossa, é luxo a que não nos podemos dar. Em meu artigo mais recente (Corredor estreito, tempo curto) apontei a exiguidade do espaço de manobra na área econômica. Para muitos, a política ditará o ritmo em que se pode avançar. Como se, conhecidos os resultados das eleições de novembro no Brasil e nos EUA, 2020 estivesse, como ano político, encerrado. Seria diferente caso o Executivo fosse capaz de definir, em diálogo consistente com as lideranças e presidências da Câmara e do Senado, conteúdo e timing da agenda legislativa, pela qual se bateria então com determinação e articulação. No entanto, o chefe do Poder Executivo parece ter outras prioridades em mente, agora talvez acentuadas pelo resultado das eleições norte-americanas e pelo destino de seu modelo ideal de presidente da República.

Rolf Kuntz - Governo aposta na sorte, sem roteiro e sem piloto

- O Estado de S.Paulo

Executivo continua sem plano para sustentar a retomada no próximo ano

A maior dívida do governo, neste momento, é um plano de sustentação econômica para 2021. Cuidar da outra dívida, aquela já superior a R$ 6,5 trilhões e a 90% do PIB, ficará mais simples se a atividade crescer, as empresas ganharem fôlego e houver melhores condições de emprego. Não pode haver maior prioridade que essa, o crescimento, para um país com cerca de 30 milhões de trabalhadores subaproveitados – em busca de emprego, desalentados, em compasso de espera ou insuficientemente ocupados. Sem retomada segura, nem o barateamento da mão de obra, uma fixação do ministro da Economia, resultará em contratações. Nenhum empresário normal contrata funcionários sem necessidade.

O desafio é especialmente complicado: prolongar a recuperação iniciada em maio, depois do grande tombo, e ao mesmo tempo reiniciar o conserto das contas públicas, interrompido para enfrentamento da pandemia. Nada parecido com um plano foi até hoje apresentado. A equipe econômica parece apostar na sorte, enquanto o presidente cuida de sua reeleição e das encrencas de seus filhos.

Bernardo Mello Franco - Três lições para o Brasil

- O Globo

A certa altura, pareceu que Donald Trump ficaria no poder para sempre. O bilionário transformou a presidência dos Estados Unidos num palco de autopromoção permanente. Com sua oratória agressiva, ele eletrizou as redes sociais, dominou o noticiário e impôs a mentira como arma política. Inspirou uma onda reacionária que varreu democracias em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil.

Deslumbrado, o republicano chegou a anunciar que não se limitaria a buscar o segundo mandato. Já planejava o terceiro, o que exigiria rasgar a Constituição americana. Ontem o projeto autocrático foi interrompido pela vitória de Joe Biden. Trump ainda deve espernear por algum tempo, mas terá que deixar a Casa Branca.

A derrota do ídolo de Jair Bolsonaro pode ensinar algumas lições para o Brasil. A primeira: o populismo de direita não é imbatível. O discurso do ódio atrai votos, mas não resolve problemas concretos dos eleitores. Com o tempo, a realidade se impõe ao obscurantismo. Líderes que insistiram em negar a ciência, como Trump, foram atropelados pela pandemia.

Dorrit Harazim - O despejo

- O Globo

É quase humilhante constatar que, por quatro anos, mundo civilizado conviveu com um delinquente na Presidência dos EUA

Foram 1.460 dias. É quase humilhante constatar que, por quatro anos, o mundo civilizado sobreviveu e conviveu com um delinquente cívico na Presidência dos Estados Unidos. E essa eternidade não acabou: ao se confirmar sua derrota, Donald Trump dispõe de outras 11 semanas para minar com ferocidade vingativa o funcionamento da máquina governamental até a posse de Joe Biden em janeiro. Esse serviço de porão já foi iniciado. Na última semana de outubro, de forma atipicamente silenciosa, Trump lascou sua assinatura num documento de nome quase esotérico: “Ordem Executiva sobre a Criação do Nível F no Serviço Protegido”. Tradução: pelo novo decreto, uma vasta gama de postos federais passam a ser designados como “cargos de confiança e de formulação de políticas”. Poderão perder o direito à estabilidade que sempre tiveram como servidores de carreira. Esses milhares de funcionários que trabalham e analisam fatos — cientistas e juristas, médicos, economistas — seriam repassados a essa nova categoria F. Inversamente, os nomeados políticos de Trump passam a integrar a classe dos funcionários, com estabilidade e tempo para travar a máquina do futuro governo Biden.

Mas isso são meras migalhas. Atual e alarmante é a combustão do ocupante da Casa Branca, entrincheirado com sua bílis por ter acreditado nas próprias fake news. Na última “New Yorker”, a jornalista Jane Mayer escreve sobre a possibilidade de Trump, quando perder a imunidade, vir a ser preso. Mayer inicia a reportagem com uma cena histórica — a de um presidente dos EUA em pânico dando ordens descontroladas e exigindo dos assessores uma lista de escapatórias. Sem ser particularmente religioso, o chefe da nação cai de joelhos e passa a rezar alto; soluça, bate com os punhos no tapete e grita “O que que houve?”. O chefe de gabinete acha prudente chamar a equipe médica e ordena o confisco de todos os tranquilizantes, para afastar a possibilidade de suicídio. Tudo isso aconteceu de fato na Casa Branca de Richard Nixon, no verão de 1974, e está narrado con gusto pela dupla Bob Woodward-Carl Bernstein em “Os últimos dias”.

Carlos Melo* - O desafio de Joe Biden

- O Estado de S. Paulo

Ao longo dos últimos dias, a maior parte do mundo civilizado se pôs entre perplexa e desolada diante da hipótese concreta de mais uma vitória de Donald Trump. Para quem prefere ver o mundo com valores humanísticos, seu desempenho foi assustador. Goste-se ou não, é um forte. Agiu de modo oposto ao recomendável e ao razoável e ainda assim foi longe. Governou com vistas a desunir, não a agregar; se indispôs com a arte, com a ciência com a Grande Política; plantou a discórdia, colheu o desprezo de boa parte do planeta. E, ainda assim, por pouco não foi reeleito.

Já fiz essa pergunta em outro artigo, nesse Estadão, mas ela ainda vale: qual a razão de sua força? Ela não brota de qualidades pessoais, certamente. Trata-se de um homem grosseiro, de carisma duvidoso; rude nos gestos, estreito intelectualmente. Um canastrão, no palco da História Mundial, um Quixote da direita, franco atirador movido pela vaidade pessoal, pelo hedonismo dos novos ricos, inebriado pelo poder. Fosse brasileiro, seria comparada aos barões decadentes que estacionam seus carrões em vagas proibidas, exigem mesas especiais nos restaurantes e ameaçam chamar “o seu delegado” particular.

Por décadas, a humanidade especulará em torno dessa força – como faço agora. O fato é que, após Barack Obama, a maior democracia da história deu vida política a Trump e quase o reelegeu. Quem, no início da década de 1990 assistiu ao cult movie “Um dia de fúria”, sabe que o mal-estar ronda o mundo – como disse Tony Judt – há muito tempo.  A revolução tecnológica deu saltos, mas nem todos a puderam alcançar: restaram milhões de deserdados – os “invisíveis” que somente agora o ministro Paulo Guedes percebeu existir.

Eles não têm formação, não têm profissão, não têm emprego; sem futuro, agarram-se a algum tipo de uber, num processo de precarização aparentemente sem fim.

Luiz Sérgio Henriques* - Derrotar Trump, desconstruir o trumpismo

- Revista Será? (PE) - 06/11/2020

Não há possibilidade de escrever nem mesmo uma linha sobre política que não carregue consigo a alta tensão elétrica que nos rodeia e angustia. A atmosfera pesada em que temos vivido não se dissipará com o provável resultado favorável a Joe Biden nas eleições norte-americanas, e não só por causa do arsenal de chicanas que são o elemento vital de personagens como Donald Trump. Mais do que isso, a direita subversiva no poder – não podemos esquecer nunca que há outras modalidades de direita, que aderem aos valores constitucionais e, por isso, são participantes com todos os títulos do jogo democrático – sempre deixa como herança um terreno deliberadamente minado; e, como se sabe, minas explodem muito tempo depois de terem sido enterradas, estropiando e matando aleatoriamente. Continuaremos, por isso, a conviver com o perigo por tempo indeterminado.

O caso norte-americano é, na prática, um exemplo de manual, pronto para ser aplicado, ou reiterado ainda mais fanaticamente, em várias partes do mundo. Por mais que Trump e o Partido Republicano, remodelado ao seu feitio, tenham obtido resultados não previstos pela generalidade das pesquisas, o fato é que essencialmente lidamos com um líder e um agrupamento de vocação “minoritária”. Maiorias eleitorais, se e quando acontecerem, serão conquistadas a golpes publicitários, manipulação nas redes sociais, difusão organizada de fake news, tudo voltado para a exploração de medos e paranoias coletivas. Não se faz nenhum segredo quanto a isso.

Marco Aurélio Nogueira* - Uma vitória para resgatar a democracia

- O Estado de S. Paulo – 06/11/2020

Se confirmada, vitória de Biden mudará o estado de espírito do mundo

O processo é longo, os resultados demoram a sair, o sistema é intrincado e arcaico. A incerteza o acompanha até as últimas urnas. Ao final, o vitorioso carrega consigo o galardão da legitimidade, dada pelo povo, mas referendada de fato pelos 538 delegados do Colégio Eleitoral.  É uma batalha democrática, mesmo que impregnada de seletividade e restrições.

Hoje em dia, as eleições norte-americanas tornaram-se um show televisionado, seguido por todos. Têm forte efeito simbólico, repercutem na política internacional, alteram o humor mundial. Especialmente numa época como a nossa, em que a democracia está sob o assédio de líderes e movimentos autoritários (nacionalistas, populistas) em diversos países. Donald Trump é um deles, o que mais longe levou a corrosão democrática da democracia, quer dizer, a problematização da democracia mediante a manipulação das regras de um sistema que se mantém formalmente democrático.

As eleições de 2020 não foram entre democratas e republicanos, por mais que os dois partidos tenham sido protagonistas. Tratou-se de uma disputa em torno da democracia, do seu significado, da sua defesa e valorização ou de sua desmoralização.

O caso Trump ainda será objeto de estudos sequenciais. Nunca um presidente norte-americano agrediu tanto o sistema democrático de seu país, nunca rompeu tantas regras de conduta, nunca mentiu tão cínica e compulsivamente. Valeu-se de falcatruas constantes, explorando o ressentimento, o medo e a raiva que se acumularam nos EUA com a “desindustrialização”, a vida digital, a perda de força relativa da economia americana diante do avanço implacável do dragão chinês e da mudança dos termos do comércio internacional. Encontrou à disposição uma população preparada para a charlatanice, cortada pelo desespero e pela desilusão, levada pela perda de referências a desconfiar do sistema democrático e a se atirar nos braços de personagens “heterodoxos”, abertamente demagógicos. As redes sociais fizeram com que o rastilho se espalhasse e adquirisse status de verdade.

O que a mídia pensa – Opiniões / Editoriais

Espaço para Brasil de Bolsonaro fica estreito com Biden – Opinião | O Globo

Vitória do democrata reaproxima os EUA de antigos parceiros e cria dificuldades para o populismo

Não se sabe ainda como será a transição de poder nos Estados Unidos, mas a vitória de Joe Biden na eleição americana traz desafios particulares ao Brasil de Jair Bolsonaro. Na ditadura, o governo Geisel enfrentou percalços com o também democrata Jimmy Carter, pelo desrespeito aos direitos humanos. Agora, na democracia, o Brasil pagará o preço de Bolsonaro ter apostado abertamente em Donald Trump —e ter sido derrotado com ele.

Os momentos históricos distintos são unidos por um ponto comum: a necessidade de uma estratégia diplomática bem formulada e executada. Bolsonaro precisará da reconhecida experiência do velho Itamaraty, posta de escanteio pelo chanceler Ernesto Araújo. Mas não só. O próprio figurino ideológico do bolsonarismo enfrentará pressões.

No primeiro dos dois debates entre Biden e Trump, o democrata tocou num nervo exposto do bolsonarismo: o descaso com o meio ambiente. O futuro presidente americano acenou com um fundo de US$ 20 bilhões para ajudar na preservação da Amazônia e antecipou que baixará sanções econômicas caso tudo continue na mesma. Bolsonaro evocou os tempos de caserna, enrolou-se na bandeira e soltou um brado em defesa da “soberania nacional”. São palavras inócuas diante do desafio que Biden lhe trará.

Nenhuma das alterações no tabuleiro geopolítico depois da eleição joga a favor do Planalto. A Casa Branca de Biden se reaproximará dos aliados europeus tradicionais — como Alemanha e França — e, como anunciado, voltará ao Acordo do Clima de Paris, que Bolsonaro falou em abandonar em mais uma mímica de Trump. A defesa da preservação da Amazônia não é uma peça solta na política externa democrata. Servirá também para reerguer a Aliança Atlântica.

Liberdades democráticas, respeito aos direitos constitucionais, ao meio ambiente, defesa dos direitos humanos — temas relativizados, quando não desrespeitados pelo bolsonarismo — voltarão a servir de baliza para a diplomacia dos Estados Unidos. Também acabará o tempo de afagos americanos a autocratas como o húngaro Viktor Orbán (convidado de honra à posse de Bolsonaro) ou o russo Vladimir Putin. O governo brasileiro precisará se adaptar à nova realidade.

Nada será tão desafiador quanto a relação com a China, que ganhará novos contornos na gestão Biden. Para o Brasil, mesmo que possa haver mais espaço para uma decisão técnica sobre a telefonia celular de quinta geração (5G), persiste o desafio de, em nome do interesse nacional, equilibrar os acenos às duas superpotências, seus dois maiores parceiros comerciais. O choque entre elas continuará.

Se, com Trump, não recebemos benefícios especiais, agora será ainda mais difícil. O Brasil sob Bolsonaro já havia perdido importância na cena global. Para resgatá-la, será mais necessário ainda o trabalho profissional na política externa, que de nada valerá se o Planalto não souber se adaptar ao novo equilíbrio mundial.

Poesia | Mario Quintana - O poeta é belo

O poeta é belo como o Taj-Mahal

feito de renda e mármore e serenidade

 

O poeta é belo como o imprevisto perfil de uma árvore

ao primeiro relâmpago da tempestade

 

O poeta é belo porque os seus farrapos

são do tecido da eternidade