sábado, 5 de dezembro de 2020

Merval Pereira - STF acima da lei

- O Globo

É difícil compreender a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) nesse caso da permissão de reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado na mesma legislatura. Seria fácil se partíssemos da aparência de posição política dos votos dados até agora. Apenas o ministro Marco Aurélio ateve-se à única questão que importa: “Indaga-se: o § 4º do artigo 57 da Lei Maior enseja interpretações diversas? Não. É categórico”.

O próprio Gilmar Mendes, relator que deu origem aos votos favoráveis à reeleição de Rodrigo Maia e David Alcolumbre, disse em seu voto que essa é uma questão política, e como tal deveria ser tratada pelo Congresso. Imaginei que os ministros pudessem avaliar como uma decisão interna do Congresso, o que já era uma interpretação distorcida, pois a Constituição proíbe expressamente, e o STF tem a obrigação de resguardá-la.

Mas os ministros partiram para interpretações que revelam posições pessoais, como, por exemplo, o relator dizer que a regra de proibição de reeleição só vale a partir do ano que vem. Como explicar que a Constituição vale num ano e não vale no outro? Deixar passar essa mudança apenas com uma autorização do Congresso, sem alterar a Constituição, é mesmo incompreensível.

A indefinição desta eleição está atrasando as votações no Congresso há meses. O presidente do Senado, David Alcolumbre também faz um papel muito feio, parou tudo no Senado para negociar sua reeleição, e a eleição de seu irmão à prefeitura de Macapá. Feio é perder, poderá responder, típica atitude de quem, como ele, procurou a reeleição sem nem mesmo tentar mudar a Constituição.

Míriam Leitão - Biden e vacina elevam mercado

- O Globo

Você não gosta de mim, mas seu mercado gosta. Os versos de Chico Buarque poderiam ser adaptados pelo presidente eleito Joe Biden, se ele estivesse preocupado com esse longo silêncio do presidente brasileiro Jair Bolsonaro. Desde que ficou claro que Biden era o vencedor das eleições americanas, houve um reviravolta nos ativos que favoreceu o Brasil, o real e até os investidores no país.

O dólar, por exemplo, caiu 11,11% aqui dentro, indo de R$ 5,76 em 29 de outubro para R$ 5,12 , ontem. A queda do dólar começou antes das eleições porque todas as projeções davam o que acabou acontecendo, uma vitória por larga margem no voto popular e no colégio eleitoral para Joe Biden.

Novembro foi o melhor mês da bolsa brasileira em muito tempo, recuperando uma parte das perdas que haviam sido provocadas pela pandemia, pela falta de entrega do programa econômico, e pelas incertezas do próprio governo. Isso trouxe de volta o investidor estrangeiro que havia ido embora. Em novembro entraram R$ 33 bilhões. No ano eles haviam sacado quase R$ 90 bi.

O mercado funciona de maneira diferente do que reagem as pessoas quando fazem as suas conexões neurais. O que liga uma coisa a outra pertence à lógica própria. A vitória de Biden é entendida pelos analistas como sinal de que haverá um pacote de ajuda mais robusto para a economia americana, o que levará à desvalorização do dólar. Isso aumenta os fluxos para os países em desenvolvimento e eleva o apetite para o risco. O resultado é essa volta do capital arisco, apesar de todos os sinais ruins dados pelo governo brasileiro.

Em resumo, não voltam porque passaram a confiar em Bolsonaro e no seu desgoverno, mas porque os fluxos globais estão nessa direção. Tanto que não foi só conosco. O dólar australiano, o dólar canadense, o won coreano e até o euro estão nos maiores valores frente ao dólar em dois anos.

Ascânio Seleme - Crime sem perdão contra os brasileiros

- O Globo

Muitas das dezenas de milhares de mortes que vão ocorrer nos primeiros meses do ano que vem devem ser atribuídas às estúpidas diretrizes políticas de Bolsonaro

Morrerão 44.545 brasileiros de Covid nos meses de janeiro e fevereiro do ano que vem, mantida a média atual de 775 óbitos registrados em 24 horas. Muitas destas pessoas poderiam ser salvas se o governo de Jair Bolsonaro não fosse negacionista e, por consequência, deliberadamente ineficiente. O Ministério da Saúde anunciou que vai iniciar a vacinação no Brasil apenas em março, acrescentando que somente um terço dos brasileiros serão imunizados em 2021. Além disso, descartou três das quatro vacinas que foram testadas no Brasil.

Difícil dizer quantas exatamente, mas muitas das dezenas de milhares de mortes que vão ocorrer nos primeiros meses do ano que vem devem ser atribuídas às estúpidas diretrizes políticas de Bolsonaro, obedecidas cegamente pelo imprevidente ministro Eduardo Pazuello. Se a vacinação começar na verdade somente no final de março ou no início de abril, como informam fontes do Ministério da Saúde, o número de mortos até que se comece o processo de imunização vai passar dos 65 mil. O lamentável é que o mais provável seja mesmo o pior cenário, dada a estupenda inoperância governamental.

A Inglaterra começa a vacinação muito provavelmente antes do Natal. Outros países europeus iniciam o processo massivo de imunização na primeira semana de janeiro. Na Argentina, do “inimigo” Alberto Fernández, a vacinação começa na primeira quinzena de janeiro. Também México, Chile, Peru e Costa Rica, para ficar apenas aqui na nossa região, começam a vacinar suas populações entre o fim de dezembro e o início de janeiro de 2021. Todos estes países compraram a vacina do laboratório Pfizer, que o governo brasileiro se recusa a considerar alegando que a estocagem a temperaturas muito baixas é complicada. No Equador deve ser mais complicado que aqui, mas lá também as vacinas da Pfizer começarão a ser administradas em janeiro.

Além do negacionismo declarado de Jair Bolsonaro, seus subalternos dobram-se à sua orientação ou são demitidos, como foram Luiz Mandetta e Nelson Teich. Por isso, o ministro Pazuello, um general que temporariamente tirou a farda mas jamais conseguirá vestir um avental, fala e faz apenas o que seu chefe mandar. “Obedece quem tem juízo”, disse o desajuizado general que, indo pela cabeça do presidente, trabalha contra os interesses do seu ministério, contra a saúde pública, o que é crime. Na Anvisa, o presidente é outro militar, o almirante Antônio Barra Torres, que também bate continência para qualquer barbaridade que o capitão lhe disser.

Ricardo Noblat - O Supremo tem direito de errar, mas não de fingir-se de cego

-Blog do Noblat | Veja

A marcha da insensatez

Se por “excesso de provas”, o Tribunal Superior Eleitoral deixou de condenar a chapa Dilma-Temer acusada de abuso do poder econômico na eleição de 2014, por que o Supremo Tribunal Federal não pode simplesmente mandar às favas a Constituição, permitindo a reeleição de Rodrigo Maia (DEM-RJ)) e de Davi Alcolumbre (DEM-AP) para o comando da Câmara e do Senado?

Em maio de 2004, o presidente Lula quis expulsar do país Larry Rohter, correspondente do New York Times, que dissera em reportagem que ele bebia além de conta. Durante uma tensa reunião no Palácio do Planalto, um assessor de Lula, com um exemplar da Constituição aberto na mão, apontou o artigo que impedia a expulsão do jornalista. Lula respondeu de bate pronto:

– Foda-se a Constituição.

À época, este blog foi o único meio de comunicação que publicou a história. Editores-chefes de vários jornais me telefonaram perguntando se a informação merecia crédito. Respondi que sim e lhes contei mais detalhes. Ela jamais foi desmentida. Um amigo de Lula me disse que ele mandara o assessor se foder, não a Constituição. Como não colou, desculpou-se: “Deixa pra lá”.

O placar no Supremo estava até ontem à noite em 4 votos a favor da recondução de Maia e Alcolumbre, um só a favor da recondução de Alcolumbre e dois contra. Votaram a favor Gilmar Mendes, o relator da ação, Dias Toffoli, Alexandre de Moraes e Ricardo Levandowisk. Só à favor da recondução de Alcolumbre, Kássio Nunes. Contra, Marco Aurélio Mello e Cármen Lúcia.

Até o próximo dia 14, deverão votar Edson Fachin, Rosa Weber, Luís Roberto Barroso e Luiz Fux, o presidente do tribunal. Marco Aurélio, em seu voto, foi curto, grosso e acertou no alvo:

Oscar Vilhena Vieira* - Os andaimes da democracia

- Folha de S. Paulo

Organizações civis crescem e se fortalecem sob um governo que quer sufocá-las

Enquanto nosso criptogoverno vai afundando as botas num pântano de obscurantismo, incompetência e hostilidade a padrões mínimos de moralidade, com impacto devastador sobre a vida dos brasileiros e a saúde da própria democracia, a sociedade civil vem recompondo laços esgarçados pela forte polarização política e o estresse institucional em que imergimos a partir de 2013.

Em 1835, Alexis de Tocqueville expressou seu entusiasmo com o papel das “associações civis”, formadas voluntariamente por cidadãos, no florescimento e na sobrevivência da democracia na América. Além de favorecer a solução de problemas concretos da comunidade pela ação coletiva de seus membros, o associativismo contribuiria, por meio “da influência reciproca que uns exerceriam sobre os outros”, para a formação de cidadãos melhores, com ideias “renovadas, corações ampliados e mentes desenvolvidas”.

Desde cedo, portanto, o conceito de sociedade civil adquiriu um sentido positivo, ligado à promoção da liberdade, do pluralismo e da justiça social, não devendo ser confundindo com associações (in)civis, formadas com o propósito de suprimir direitos ou fragilizar a democracia, como a Ku Klux Klan, os Camisas Negras, ou as milícias digitais contemporâneas.

Foi essa sociedade civil, como vetor democrático, que desempenhou um papel central na debacle dos regimes autoritários na América Latina, no Leste Europeu e na África do Sul, no final dos anos 1980. Não deve causar qualquer surpresa, portanto, os ataques que os novos populistas autoritários têm lançado sobre as organizações autônomas que lhes ousem criticar, contestar ou controlar.

Demétrio Magnoli* - Duas lendas sobre 2022

- Folha de S. Paulo

As incógnitas de 2022 não começaram a ser decifradas na São Paulo deste ano

Nasceram, no berço do segundo turno das eleições municipais, duas lendas paralelas. A primeira assegura que o triunfo de Bruno Covas (PSDB) consolida a posição de João Doria como principal desafiante de Jair Bolsonaro na disputa pelo Planalto. A segunda, que o resultado de Guilherme Boulos (PSOL) o converte no eixo de reorganização das esquerdas para as eleições presidenciais. Nenhuma delas resiste ao crivo da análise realista.

A lenda número um parte das falsas premissas de que Covas obteve uma vitória avassaladora e, ainda, de que Doria cumpriu papel relevante na batalha da prefeitura paulistana. De fato, o prefeito alcançou apenas 32% dos votos no turno inicial, um desempenho relativamente modesto, e teve que carregar o fardo do patrocínio de um governador com alta rejeição na capital paulista. Já no turno final, o triunfo por margem folgada deveu-se à geometria da disputa: desde 2015, quando escancarou-se o estelionato eleitoral de Dilma Rousseff, a esquerda perdeu as condições de vencer eleições na cidade ou no estado de São Paulo.

Doria desponta como rival nacional do presidente graças, exclusivamente, à atual carência de alternativas fora do campo da esquerda. Essa carência, por sua vez, deriva tanto da implosão ideológica do PSDB, concluída com a própria ascensão de Doria, quanto do retumbante fracasso de Sergio Moro na sua tentativa de conquistar para o Partido da Lava Jato a maior parte do eleitorado bolsonarista.

Hélio Schwartsman - Casamento feliz

- Folha de S. Paulo

É boa a notícia de que técnicos da Anatel não restringiram participação da Huawei

Foi o casamento entre desenvolvimento tecnológico e economia de mercado que, a partir de fins do século 18, lançou o planeta numa era de prosperidade material sem precedentes.

Em tese, pode-se ter um sem o outro, mas é quando caminham juntos que os efeitos sinérgicos se materializam. Vale lembrar que a URSS detinha tecnologia de ponta em algumas áreas, mas, ainda assim, soçobrou por causa da economia.

À luz dessas considerações, nem haveria o que pestanejar em relação ao 5G. Se a tecnologia da chinesa Huawei é reconhecidamente melhor e mais barata do que a dos concorrentes e se um eventual veto à sua participação ainda exigiria refazer grande parte da infraestrutura de 3G e 4G, parece ilógico não incluir os chineses entre os fornecedores de equipamentos de 5G para o Brasil.

Miguel Reale Júnior* - Cegueira deliberada

- O Estado de S. Paulo

Fazer de conta que não há racismo não é daltonismo, é imensa hipocrisia

João Alberto Silveira Freitas, negro de 40 anos, soldador, foi massacrado por dois seguranças, um deles policial militar fazendo bico numa loja do Carrefour em Porto Alegre. Caído ao chão, João foi espancado e esmagado até morrer asfixiado, sob a supervisão de fiscal do supermercado. É tristemente reiterada a violência praticada contra pessoas negras pelas autoridades, no caso, os “seguranças” particulares fardados.

A exclusão do exercício de direitos da população negra, vítima de discriminação ao longo da História, traz à tona a constatação do racismo estrutural vigente no Brasil. Com o racismo instala-se a inferiorização do outro, que se considera diverso, não se lhe atribuindo a possibilidade de estar “entre nós”, gozar dos mesmos direitos. É uma manifestação cultural, fruto do sistema social, político e econômico, presente no comportamento cotidiano produtor da diminuição de determinadas pessoas por causa de sua cor, orientação sexual, etnia, religião.

João Gabriel de Lima - Piketty, Paulo Guedes e os nomes dos bois

- O Estado de S. Paulo

Expurgada das siglas, discussão tributária pode ser fascinante, além de essencial

Talvez não seja o caso de convidar Thomas Piketty, herói da esquerda mundial desde que publicou o livro O Capital no Século XXI, e Paulo Guedes, ministro da Economia do governo Bolsonaro, para a mesma mesa de bar. Se a mesa for de debates é outra coisa. Em 2014, os dois participaram de um evento na Universidade de São Paulo. Piketty viera ao Brasil lançar o livro que o tornou famoso. Paulo Guedes nem sonhava (pensando bem, sonhava sim) em ser ministro da Economia.

Em um momento do debate, Piketty, naquele inglês charmoso (e às vezes incompreensível) de que só os franceses são capazes, defendeu apaixonadamente a cobrança de um imposto sobre heranças. Em sua vez de falar, Paulo Guedes endossou a tese. O esquerdista e o liberal concordaram mais que discordaram, surpreendendo a plateia. 

Lembrei-me do episódio neste momento em que o Brasil discute orçamento e uma reforma tributária. A conversa exclui a maior parte dos cidadãos por causa da linguagem excessivamente técnica, um emaranhado de números e siglas. O debate poderia ser mais inclusivo se os contendores, sem abrir mão da complexidade dos temas, dessem nomes aos bois (o economista Bernard Appy, colunista do Estadão e ex-integrante do governo Lula, é uma exceção por sua clareza. Ele é o personagem do minipodcast da semana).

Os cidadãos de um país entregam parte de seu dinheiro aos governos – o nome disso é imposto. Os políticos decidem onde o dinheiro será utilizado – isso se chama orçamento. Tais políticos são escolhidos pelos cidadãos, de forma a agir de acordo com o pensamento da sociedade – a isso se chama democracia.

Como o dinheiro dos cidadãos não cobre todas as despesas, é necessário fazer escolhas – isso se chama conflito distributivo. Os cidadãos preferem que seu dinheiro seja investido em hospitais ou na JBS de Joesley Batista? Gostariam que os recursos financiassem escolas ou aposentadorias de juízes e desembargadores?   

Adriana Fernandes - Vitória de Pirro

- O Estado de S. Paulo

Ao deixar muitos restos a pagar, ministérios gastadores podem virar caloteiros

Por completo descaso e até com apoio do governo Bolsonaro, os parlamentares vão deixar a votação do Orçamento de 2021 para o ano que vem. Não é a primeira vez nem será a última que isso acontece.

Tem até quem diga que essa foi a melhor decisão para governo e parlamentares ganharem tempo, apararem arestas provocadas pelas eleições do comando da Câmara e Senado e chegarem, ao final, a um consenso sobre medidas que viabilizem a retomada, o ajuste das contas e o enfrentamento daquele que deverá ser o maior problema da economia em 2021: o aumento do desemprego.

A procrastinação está sendo comemorada.

Acontece que, no vácuo da ausência da votação, o Orçamento de 2021 já começa a ganhar forma antes mesmo de qualquer decisão dos parlamentares e certamente antes da virada do ano em 31 de dezembro, que marca também o fim do auxílio emergencial.

O quadro não é nada animador, porque a demarcação de território dentro do Orçamento por vias alternativas traz mais incerteza e tem consequências ainda difíceis de avaliar, enquanto a economia real sente os efeitos da pandemia.

Duas decisões importantes foram tomadas pelo Tribunal de Contas da União em julgamento nessa semana. Na prática, elas antecipam o Orçamento de 2021 ao permitir que um volume maior de gastos de 2020 “transborde” para o ano que vem.

O tamanho potencial desse vazamento de despesas é ainda uma incógnita, com governo, TCU e analistas do mercado ainda debruçados cada um à sua maneira para fazer as contas.

Marcus Pestana* - As necessárias, mas difíceis fusões partidárias

As eleições municipais cumpriram seu papel de oxigenação do sistema político. Na democracia é assim, cada eleição é mais uma etapa de aprendizagem e amadurecimento. A sociedade brasileira deu mostras que está cansada da radicalização excessiva e com o estresse permanente daí derivado.

Problema ainda longe de ser resolvido é a pulverização partidária e suas repercussões negativas no ambiente de governabilidade. Avançamos é verdade. Em 2016, apenas metade dos municípios brasileiros (2.787) ficaram com até seis partidos nas câmaras de vereadores. Em 2020, este número cresceu para 4.506, ou seja, em 81,62% das cidades teremos uma representação política mais racional e menos pulverizada. Isto facilitará o trabalho dos prefeitos e a formação de maiorias e minoritárias estáveis e nítidas. Parece que isto tem correlação direta com o fim de coligações proporcionais.

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

O retorno dos partidos – Opinião | O Estado de S. Paulo

Por meio do voto, o eleitor fortaleceu legendas tradicionais e restabeleceu a centralidade dos partidos no regime democrático

Ao contrário do que ocorreu nas eleições de 2018, em que os partidos foram hostilizados e muitos candidatos – em especial, Jair Bolsonaro – se beneficiaram do generalizado sentimento antipolítica, o pleito de 2020 trouxe um cenário bem menos tumultuado. Por meio do voto, o eleitor não apenas fortaleceu legendas tradicionais – PSDB, MDB, DEM, PSD e Progressistas foram os grandes campeões das eleições deste ano –, mas, ao rechaçar engodos populistas à margem da política, restabeleceu a centralidade dos partidos no funcionamento do regime democrático.

Houve uma nítida mudança do eleitorado entre 2018 e 2020. Nas eleições presidenciais, venceu o discurso antissistema e antipolítica, com marcado desapreço pelos partidos políticos, como se fossem entidades ultrapassadas e disfuncionais, mais aptas a gerar escândalos de corrupção do que a contribuir para as políticas públicas e a qualidade da representação. Não por acaso, o ganhador das eleições presidenciais de 2018 tinha como um de seus slogans a frase “meu partido é o Brasil”.

Poesia | João Cabral de Melo Neto - O sertanejo falando

A fala a nível do sertanejo engana:

as palavras dele vêm, como rebuçadas

(palavras confeito, pílula), na glace

de uma entonação lisa, de adocicada.

Enquanto que sob ela, dura e endurece

o caroço de pedra, a amêndoa pétrea,

dessa árvore pedrenta (o sertanejo)

incapaz de não se expressar em pedra.

                       

Daí porque o sertanejo fala pouco:

as palavras de pedra ulceram a boca

e no idioma pedra se fala doloroso;

o natural desse idioma fala à força.

Daí também porque ele fala devagar:

tem de pegar as palavras com cuidado,

confeitá-la na língua, rebuçá-las;

pois toma tempo todo esse trabalho.