domingo, 24 de janeiro de 2021

Elio Gaspari - Amanda Gorman arrastou as fichas ao encantar o mundo na posse de Biden

- O Globo / Folha de S. Paulo

E Aras da aval a extravagâncias institucionais

A geração de Greta Thunberg (18 anos) e Malala Yousafzai (23 anos) trouxe Amanda Gorman (22 anos), a poeta que encantou o mundo na festa da posse de Joe Biden. A “menina magra, descendente de escravos, criada por uma mãe solteira (que) pode sonhar em se tornar presidente, apenas para se descobrir recitando para ele.”

Criada em Los Angeles, Amanda chegou à cena como figura conhecida num mundo de poetas jovens e ativistas. Escolhida por Jill Biden, a mulher do presidente, ela estava com o poema entalado até a tarde do dia 6, quando Donald Trump soltou sua milícia contra o Capitólio. Foi o que bastou:

“Uma nação não está quebrada, mas apenas inacabada.”

“Embora olhemos para o futuro, a história está de olho em nós.”

Outros poetas já marcaram as posses de presidentes. Aos 86 anos, Robert Frost, não conseguiu ler o poema que fez para John Kennedy e recitou outro, de memória. Maya Angelou iluminou a posse de Barack Obama, e Amanda homenageou-a com um anel onde havia um pássaro preso numa gaiola.

O poema de Amanda Gorman (“A Colina que Escalamos”) foi dissecado na sua beleza por Dwight Garner, crítico do “The New York Times”. É uma exaltação dos Estados Unidos, com pouco a ver com a colina no alto da qual brilhava a cidade de Ronald Reagan. A inspiração da jovem veio do motim miliciano, da história dos Estados Unidos e também da genialidade de Lin-Manuel Miranda, o criador do musical “Hamilton”. Miranda é um descendente de porto-riquenhos e recebeu a centelha lendo a biografia do pai do capitalismo americano. Alexander Hamilton era um imigrante caribenho, educado por judeus expulsos do Recife. O Thomas Jefferson de Miranda é negro.

Amanda Gorman tornou-se uma celebridade vestindo Prada, mas veio de uma nascente que não produz fama. Malala tomou um tiro, Amanda entrou no mundo dos livros porque tinha uma limitação neurológica que lhe afetava a audição e a fala. (É hipersensível ao som e não conseguia pronunciar os “rr” dobrados.) Formou-se em Harvard e foi premiada pela rede de estímulos que a nação americana oferece à cultura. Era famosa antes de se tornar celebridade. Fundou e dirige uma organização destinada a promover a leitura entre os jovens. É militante de quase todas as causas: igualdade racial, de gênero, ambientalismo, uma vida melhor para todos, enfim.

Seu poema celebrou a alma americana:

“Enquanto sofríamos, crescíamos.

Mesmo sofrendo, esperávamos

Mesmo cansados, tentávamos.”

Amanda quer ser eleita presidente dos Estados em 2036. Boa sorte.

O apocalipse de Aras

Quando o procurador-geral da República, Augusto Aras, diz que o estado de calamidade é “antessala do Estado de Defesa”, pode-se supor que ele ouviu o galo cantar e sabe onde. Bolsonaro já falou em saques e desordens. O general Eduardo Pazuello, com seus conhecimentos científicos, expôs há poucos dias o que ele julga ser a ameaça de uma “quarta onda” da pandemia.

Nas suas palavras:

“Vocês sabem o que é a quarta onda? Talvez não saibam. É o choque no emocional das pessoas. É a depressão, a automutilação, o suicídio, todos causados pela queda da capacidade de manter a sua própria família e de se manter. Essa é a quarta onda de uma pandemia. Se a economia quebrar, nós vamos estar acelerando a quarta onda.”

Há uma epidemia, já morreram mais de 200 mil pessoas, os doutores fazem parte de um governo que receita cloroquina, condena o distanciamento social e amaldiçoou a vacina “do João Doria”. Sem terem feito o que deviam, ameaçam com o Apocalipse. Aras vai além, pois diz que as lambanças do Executivo são problemas do Legislativo.

Aras foi rebatido por seis subprocuradores. Cristalizou as saudades de Raquel Dodge, sua antecessora, e disputa a fama deixada por Rodrigo Janot, ameaçando o legado de Geraldo Brindeiro, o procurador-geral do tucanato, que ganhou o apelido de engavetador-geral.

Brindeiro engavetava problemas, mas nunca desengavetou extravagâncias institucionais.

O Itamaraty improvisa

Os diplomatas estrangeiros costumavam reconhecer o profissionalismo da chancelaria brasileira repetindo que “o Itamaraty não improvisa”. Foi-se o tempo em que se fazia o dever de casa. O ministro Ernesto Araújo e Bolsonaro produziram uma desastrosa carta de felicitações a Joe Biden. Retardatária, longa e professoral, servirá para nada.

Se o doutor Araújo e o pelotão palaciano fizessem o dever de casa, teriam consultado a carta de felicitações do presidente Ernesto Geisel ao americano Jimmy Carter, em 1977. Durante a campanha eleitoral, Carter havia cuspido mais fogo contra o governo brasileiro do que Biden. Um de seus colaboradores, Brady Tyson, havia sido expulso do Brasil.

A carta de Bolsonaro tem 771 palavras, a de Geisel tinha metade disso, era gentil, porém vaga.

Geisel corrigiu a minuta mandada pelo Itamaraty. Nela, felicitaria Carter por assumir “o alto de honroso cargo”. O general cortou o “honroso”. Adiante, mandou colocar um “peço-lhe” onde haviam posto um “rogo”.

O Itamaraty e o Planalto não improvisavam.

Bolsonaro repetiu a lenda segundo a qual os Estados Unidos foram o primeiro país a reconhecer a independência do Brasil. Falso. Foi a Argentina.

Um artigo do diplomata Rodrigo Wiese Randig, publicado nos Cadernos da Fundação Alexandre de Gusmão, já demonstrou que o governo da Argentina reconheceu o Brasil no dia 25 de junho de 1823, e seu representante entregou as credenciais em agosto. Os Estados Unidos só reconheceram a independência um ano depois, e o ministro brasileiro entregou suas credenciais ao presidente James Monroe no dia 26 de maio de 1824.

Sábio

Do advogado Marcelo Cerqueira ao ouvir o discurso de posse de Joe Biden:

 “Eles importaram o Tancredo Neves”.

Mestre da costura, Tancredo construiu a única conciliação da história nacional que partiu da oposição. Em 1984, ele sepultou a ditadura militar num clima de festa.

Cerqueira foi um dos seus escudeiros.

Placas da memória

Cemitérios também guardam a história dos povos. O de Arlington, em Washington, era a fazenda da família do general Robert Lee, que comandou as tropas da secessão sulista. Inicialmente, dava sepultura aos soldados do Norte.

Alguém poderia colocar umas placas em alguns cemitérios do Amazonas. Elas diriam o seguinte:

“Sendo governador do Estado o senhor Wilson Miranda Lima e ministro da Saúde o general Eduardo Pazuello, aqui foram sepultados cidadãos que morreram asfixiados por falta de oxigênio durante a pandemia de 2020/2021”.

Impeachment

Quem conhece a Câmara faz um raciocínio aritmético:

Quem acha que Arthur Lira vem da mesma cepa que Eduardo Cunha pode estar fazendo a escolha certa, se dá de barato que o Planalto cumprirá tudo o que combina com ele.

Se, por hipótese, essa pessoa acha que pode não cumprir o combinado, deve lembrar o que aconteceu a Dilma Rousseff.

Nenhum comentário:

Postar um comentário