sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Flávia Oliveira - Não há vacina para o Brasil

- O Globo

Não é uma nação um país onde autoridades e servidores, em benefício próprio, furam a fila da imunização

Nenhuma nação ostenta sem motivo, e por tanto tempo, o título de mais desigual do mundo. Tampouco o supera rapidamente — nem mesmo com a pior crise sanitária em um século. A semana desoladora nos fez lembrar por que um país do grupo das dez maiores economias do planeta é o 84º em desenvolvimento humano, conceito que mescla renda, escolaridade e longevidade da população; e segundo em mortes por Covid-19 — mais de 220 mil óbitos e contando. Ficaram para trás os dias festivos pela (demorada) aprovação pela Anvisa do uso emergencial das vacinas CoronaVac e AstraZeneca e pelo (atabalhoado) início da imunização. Vibramos com a enfermeira negra Mônica Calazans, primeira pessoa vacinada no Brasil, para nos entristecermos na sequência. Contra a desigualdade, não há antídoto.

Minha mãe, Dona Anna, uma mulher que passou não mais de cinco anos nos bancos escolares na primeira metade do século XX, me educou com ditos populares. Em frases curtas, imensos saberes. Uma delas não me tem saído da cabeça no Brasil de 2021, esse prolongamento do 2020, o ano que não terminará: “Farinha pouca, meu pirão primeiro”. Cinco palavras que resumem o descalabro de uma sociedade que deixou de lado a empatia para se atracar, sem vergonha, à incompetência e, sem decoro, ao privilégio.

Quando a pandemia da Covid-19 alcançou o território nacional, idealistas — eu entre eles — previram que a tragédia nos guiaria a um contrato social mais solidário, fraterno, generoso. Vêm aí, sonhamos, a valorização da saúde pública, a cooperação entre sociedade civil e Estado, o fortalecimento das políticas de assistência social, um modelo de desenvolvimento respeitoso com as pessoas e o meio ambiente. Aconteceu, como sempre, no precário. Favelas, aldeias, quilombos e organizações a eles vinculados se irmanaram em redes de proteção materializadas em água e alimentos, sabão e álcool gel, máscaras e até algum dinheiro. Livraram famílias, comunidades inteiras da fome, da doença, da morte, enquanto governos, por atos e omissões, tomavam goleada do vírus. O Rio de Janeiro teve o governador afastado por suposto envolvimento em fraudes na saúde.

No micro, um país gigante; no macro, um verme — vai ver, por isso, o presidente da República e seu ministro da Saúde passaram meses recomendando ivermectina como tratamento precoce contra a Covid-19, mesmo sem comprovação científica. Não é uma nação um país onde autoridades e servidores, em benefício próprio, furam a fila das vacinas que podem salvar a vida de profissionais de saúde da linha de frente do combate à pandemia e de idosos do grupo de risco prioritário.

Não é uma nação o lugar em que o setor privado busca a simpatia da opinião pública anunciando a compra de 33 milhões de doses de vacina, tendo como contrapartida a subtração de metade do lote para aplicar nos próprios colaboradores. Aos empregados com carteira assinada do topo do mercado corporativo, a imunidade; aos brasileiros excluídos, cloroquina, doença e morte. Não é uma nação quando o chefe de Estado e seu vice festejam a proposta indecorosa, por excludente.

No Amazonas, onde a população morre asfixiada por falta de oxigênio, e uma nova cepa do coronavírus se espalha, ameaçando o país e o mundo, especialistas propõem imunização coletiva. Urgente. Mas a vacinação foi suspensa, mais de uma vez, pela Justiça, para tentar frear o trem da alegria das aplicações indevidas. No Hospital Federal de Bonsucesso, parcialmente desativado após um incêndio que interrompeu em fins de outubro passado o atendimento de emergência, 720 doses da CoronaVac foram recolhidas pela prefeitura do Rio, após uma queda de energia deixá-las sem a refrigeração adequada por alguns minutos. Não havia gerador no laboratório que abrigava o ativo mais valioso do Sistema Único de Saúde no momento — há escassez de vacinas no país e no mundo.

Não é uma nação o lugar em que governo e instituições, depois de um ano letivo perdido, ignoram o apelo de milhões de jovens para adiar a realização do exame que é porta de entrada para o ensino superior. Numa consulta do Ministério da Educação, a maioria dos estudantes votou pela realização do Enem 2020 em maio deste ano. Mas a prova foi aplicada em dois domingos de janeiro, em plena segunda onda da doença que voltou a matar mais de mil pessoas por dia no país. Metade dos inscritos faltou à mais excludente edição da prova. Aos bem-nascidos, vagas na universidade; aos empobrecidos, decepção, frustração, evasão. Contra a desigualdade patológica não há vacina.

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