sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Flávia Oliveira - Quem dera o Brasil da carta

- O Globo

Nas três páginas endereçadas a Biden, Bolsonaro se autoproclamou defensor da democracia

Acontecimento marcante do alvorecer da terceira década do século XXI, a posse de Joe Biden, 46º presidente americano, e de Kamala Harris, primeira mulher, pessoa negra e descendente de asiáticos na Vice-Presidência dos EUA, foi brisa na face dos que creem na democracia e na diversidade. Os Estados Unidos — polarizados, mas no voto — negaram a Donald Trump o segundo mandato, numa rejeição robusta ao projeto de poder fundamentado em ódio, mentira, racismo, enfraquecimento das instituições. Emerge na nação mais rica do planeta a promessa de um governo comprometido com direitos, equidade, verdade, preservação ambiental, confiança na ciência, união — esta última, a palavra mais citada pelo eleito na posse, em 20 de janeiro, também dia do padroeiro da cidade do Rio de Janeiro.

A cerimônia em Washington, num Capitólio restituído de simbolismo após ser profanado, duas semanas antes, pelo ataque de supremacistas brancos pró-Trump, foi amostra do que pode vir a ser o país reunificado pela dupla diversa em gênero, raça e idade içada ao topo da política. Biden e Kamala ofereceram uma celebração com bênçãos de padre e reverendo; Lady Gaga, ativista pelos direitos dos LGBTQIs, interpretando o Hino Nacional; Jennifer Lopez, popstar de origem latina, cantando; Amanda Gorman, uma poeta negra de 22 anos, declamando versos compostos para a ocasião. Californiana como a vice-presidente, criada pela mãe professora, a jovem graduada em sociologia por Harvard anunciou a intenção de se candidatar à Casa Branca em 2036. Em entrevista ao “Los Angeles Times”, numa evidência de que #representatividadeimporta, não escondeu a inspiração:

— Não há como negar que uma vitória dela (Kamala Harris) é uma vitória de todas nós, que gostaríamos de nos ver representadas como mulheres de cor no cargo. Isso torna mais imaginável. Uma vez que as meninas podem ver, as meninas podem ser.

Na mesma noite, uma série de apresentações musicais transmitidas pela TV substituiu o baile que inaugura governos, adaptação exigida pela pandemia da Covid-19, que, nos EUA de Donald Trump, produziu 400 mil mortes, recorde no planeta. Os artistas escolheram repertório de regozijo. Jon Bon Jovi cantou, de Miami, na Flórida (estado para onde o ex-presidente se mudou) “Here comes the sun”, sucesso dos Beatles, num nítido adeus aos quatro anos de inverno político. John Legend atacou de “Feeling good”, canção eternizada na voz de Nina Simone, cantora e ativista que a indiana Shyamala Harris apresentou à filha como referência de potência feminina negra.

A celebração americana fez lembrar como seria bom viver num país em que a maioria escolhe democracia e diversidade. É mais ou menos esse o Brasil que está descrito na carta que Jair Bolsonaro endereçou ao presidente americano, numa tentativa (pouco convincente) de reparação dos erros cometidos a partir do resultado das eleições, em novembro. O mandatário brasileiro acenou a Biden com votos de “alta estima e consideração”, como se não o tivesse ameaçado com pólvora, logo após a aclamação da vitória do democrata, pela ameaça de sanções econômicas pelo então candidato, no caso de o país recusar um fundo de US$ 20 bilhões para preservação da Floresta Amazônica. Bolsonaro só aceitou a derrota de Trump um mês e meio depois da eleição; para completar, relativizou a gravidade do ataque de extremistas ao Congresso americano.

Nas três páginas endereçadas do Palácio do Planalto, o brasileiro se autoproclamou, como Biden, defensor da democracia. Fez isso dois dias depois de declarar a apoiadores que as Forças Armadas decidem se o Brasil será ou não regido pela vontade do povo, e duas semanas após pôr em dúvida, novamente, o sistema de votação eletrônica, acenando com uma insurreição à Capitólio em 2022. Anunciou compromisso com a preservação do meio ambiente, quando dados oficiais mostram que a Amazônia perdeu no ano passado 11 mil quilômetros quadrados de floresta, o dobro do registrado em 2015, ano da assinatura do Acordo de Paris, que Trump revogou e Biden já restaurou. Revelou-se comprometido com liberdades individuais, estando à frente de um governo que subscreveu, com EUA, Hungria, Uganda e Egito, a Declaração de Genebra, de retrocesso aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.

Quem dera viver no Brasil de faz de conta da carta de Bolsonaro a Biden. Aqui, a realidade se aproxima perigosamente dos EUA de Trump. E sem reação das instituições, que, dizem por aí, estão funcionando. Valei-nos, São Sebastião.

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