sábado, 2 de janeiro de 2021

João Gabriel de Lima - Resolução: combater crimes contra mulheres

- O Estado de S. Paulo

Abusos podem levar a episódios que constituem o prelúdio dos assassinatos

Em plena véspera de Natal, as manchetes das plataformas de notícias estampavam um crime revoltante: o assassinato da juíza carioca Viviane do Amaral Arronenzi. Ela foi esfaqueada pelo ex-marido na frente das três filhas, quando levava as crianças para passar o Natal com o pai. Viviane vinha sofrendo ameaças desde que terminou o casamento com o engenheiro Paulo Arronenzi. Chegou a andar com escolta, mas acabou por dispensar os guardas. O feminicídio é um crime tristemente comum no Brasil – só no Rio foram registrados 67 casos em 2020. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 88% dos feminicídios no País são praticados por ex-cônjuges.

Notícias de violência contra a mulher marcaram o final de 2020. Uma deputada de São Paulo e uma atriz e roteirista de televisão foram vítimas de assédio sexual – por parte, respectivamente, de um colega de plenário e de um diretor de programas humorísticos. O que todos esses crimes têm em comum, além de as vítimas serem mulheres, é que em geral andam encadeados. Abusos podem levar a episódios de violência, que muitas vezes constituem o prelúdio dos assassinatos. Por isso, é necessária tolerância zero em todos os passos da escalada.

A luta contra esse tipo de crime começa na seara da cultura. De acordo com a cientista política Manoela Miklos, personagem do minipodcast da semana, apenas punir exemplarmente os criminosos não resolve. “A Lei Maria da Penha é boa, mas os incentivos para que uma vítima não recorra à Justiça são enormes”, diz ela. “Os processos são custosos e demorados, e a mulher tem que repetir sua história várias vezes para que acreditem nela, reforçando o estigma de vítima. As mulheres que procuram a Justiça buscando algum tipo de reparação têm que dedicar muito tempo aos processos, e acabam desistindo.” Como lembrou Eliane Cantanhêde em sua coluna no Estadão, há também agentes da Justiça que ofendem as vítimas: “A mulher maltratada, abusada e ameaçada pede socorro ao Estado e é maltratada, abusada e ameaçada pelo agente do Estado. Estarrecedor”.

As providências passam por modificar a estrutura de incentivos, com melhores condições e acolhimento para a mulher que denuncia – coibindo os crimes nos primeiros passos da escalada. Para combater casos de assédio e violência, Manoela Miklos propõe o uso da Justiça Restaurativa, técnica de resolução de conflitos que coloca em contato ofensores e vítimas.

Uma reportagem da revista americana The Atlantic narra o caso de uma mulher que passou a dar palestras para homens abusadores após sofrer violência doméstica. Reunir vítimas e ofensores para conversar a respeito – não necessariamente protagonistas de um mesmo caso – é outro procedimento clássico da Justiça Restaurativa. Estudos acadêmicos mostram que tais medidas, nos Estados Unidos, chegam a diminuir em 40% a reincidência em violência doméstica. No Brasil, experiências-piloto são aplicadas em alguns municípios, como Novo Hamburgo (RS), e já existe inclusive literatura acadêmica a respeito. A reportagem e os papers estão anexados à versão digital da coluna.

Não há consenso sobre o uso da Justiça Restaurativa em todos os casos. Ela leva, no entanto, ao caminho que precisamos trilhar: o da mudança cultural. Uma boa resolução de ano-novo seria não ter nada parecido com o assassinato de Viviane Arronenzi no próximo Natal.

 

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