sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Pedro Doria – Menos Mises, mais Mill

- O Estado de S. Paulo / O Globo

O 2020 foi tão intenso, gera tanta expectativa para 2021, que esquecemos que começa uma década

Aquele 2020 foi tão intenso, gera tanta expectativa para este 2021 e mal esquecemos que hoje não é só um ano que começa. É, também, uma década. Os anos 20 do século passado foram os da esperança, da celebração de vida pós-Primeira Guerra e gripe espanhola, enquanto a democracia liberal desmoronava no entorno perante fascistas e bolcheviques. Estes nossos anos 20 não precisam ser assim. Mas, para que seja um tempo de esperança, precisamos compreender que o Brasil está muito atrasado para chegar ao século XXI. E isto pode representar uma crise muito séria.

Na década de 10, apostamos numa imagem de país que data dos anos 1950. Apostamos em petróleo, em estaleiros, numa indústria hidrelétrica que ignora a mata e, claro, na agroindústria. Nada contra. Mas deveríamos ter colocado mais fichas na indústria de software, no conhecimento genético, energia limpa, e incrementado em muitos níveis a educação para termos brasileirinhos bem formados em matemática. No final deste século, trocamos aquela visão por outra – a dos ditadores dos anos 1960. China, Índia e Rússia mergulharam no século XXI. Pois é.

O problema é o seguinte: nesta década que entra algumas tecnologias vão se encontrar. São 5G, a inteligência artificial que chamamos “aprendizado de máquina” e robótica. O resultado será a completa automação do mundo físico. O resultado será também uma imensa onda de desemprego.

Se o Brasil for apanhado neste momento sem uma indústria de século XXI e com o desemprego que virá da automação, estaremos no pior dos mundos. E ainda temos dois anos do mais inepto dos governos pela frente. Ou seja: nas eleições de 2022, não podemos errar.

A um ponto da história, ocorreu este feliz encontro entre estas duas ideias – a democracia e o liberalismo. A democracia trazia consigo o sufrágio, o voto popular. O liberalismo, a ideia de que não pode haver opressão contra cada pessoa. Todos somos iguais em nossos direitos e deveres. E, assim, construímos um Estado de leis, atribuímos a todos direitos humanos, garantimos que o sistema pode ser democrático, mas a maioria nunca tem o poder de oprimir a minoria. Que ninguém tem o poder absoluto – os poderes são divididos, distribuídos. A democracia temperada pelo liberalismo é um achado. Que precisamos preservar.

Liberais-democratas sempre demonstraram a capacidade de se reinventar perante a realidade que encontravam. É a velha sabedoria do Eclesiastes: há um tempo para plantar e outro para colher. Ou, como diria John Maynard Keynes, há o tempo de o Estado entrar, e o tempo de ele sair. Keynes, um liberal.

Em meados do século XIX, perante o estrago social e a mancha de miséria trazidos pela revolução industrial em Londres, Karl Marx imaginou que, perante a incapacidade de se reformar dos liberais, só a guerra entre classes promoveria uma sociedade na qual todos podem de fato ser iguais em seus direitos.

Enquanto isso, um seu vizinho na mesma cidade, John Stuart Mill, percebia que o Estado precisava entrar para garantir que todos tivessem a mesma base. Percebeu que liberdade só existiria se dignidade fosse garantida a todos. Estas democracias com as quais nos acostumamos no pós-guerra são todas fruto do pensamento de Mill.

Nas últimas décadas, liberais brasileiros se abraçaram demais com a escola austríaca de Luwig von Mises. Pois bem, precisaremos de um grande investimento do Estado em educação a partir de 1.º de janeiro de 2023. De regras muito ágeis, sem burocracia, para a nova indústria. E de políticas que mantenham o povo fora da miséria mesmo com o tranco do desemprego. Precisaremos de um Estado com muito foco. E, para termos este foco, a conversa tem de começar já.

Quem sabe até Caetano Veloso não possa chegar a 2030 se encontrando com seu lado liberalóide.

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