sábado, 13 de fevereiro de 2021

Carlos Alberto Sardenberg - Vacina, auxílio, reforma e privatização

- O Globo

Outra coisa que aproxima esquerda e direita no Brasil: a bronca com o mercado. E a ignorância a respeito dessa obscura entidade, motivo de contradições dos dois lados.

O vice-presidente Hamilton Mourão, ao justificar a concessão de um novo auxílio emergencial, comentou: “Não podemos ficar escravos do mercado”.

Ora, não é difícil encontrar, entre economistas e investidores — membros do tal mercado —, quem defenda fortemente o auxílio. Inclusive por razões econômicas. O auxílio coloca renda na mão das famílias, o que vai movimentar comércio e serviços, como se verificou no ano passado.

A ressalva do mercado está na demanda por uma política pública organizada e permanente — e não um quebra-galho populista.

É grande a diferença. Uma política bem pensada define com clareza os beneficiários do programa, mede sua eficácia e, sobretudo, define as fontes de financiamento, respeitando o controle das contas públicas.

O quebra-galho, esse exigido pelo Centrão e pelo presidente Bolsonaro, é um arranjo de momento para fins eleitoreiros. Simplesmente aumenta o gasto, sem cortar nada em troca. E não dá horizonte aos mais pobres, por ser provisório.

Mais interessante ainda é que o Centrão pede o auxílio dizendo que já atendeu ao mercado com a lei da autonomia do Banco Central. Sim, economistas e investidores gostam da independência do BC.

Quer dizer que nisso o governo é escravo do mercado?

Sim, é a resposta, mas não do Mourão, e sim de Fernando Haddad. Para ele e toda a esquerda, a autonomia significa entregar o BC ao mercado e, pior, aos banqueiros.

Trata-se de equívoco e contradição, pelo outro lado. Ao passado: quando FHC nomeou Armínio Fraga, então gestor dos fundos de George Soros, para a presidência do BC, o PT disse que era a raposa tomando conta do galinheiro. Aí, Lula se elege presidente e quem coloca no BC? Henrique Meirelles, ex-presidente mundial do Bank of Boston. Ou seja, um chefe das raposas.

Meirelles, que havia recebido promessa de independência de Lula, cumprida, ficou no BC durante os oito anos do governo petista e fez um bom trabalho.

A pobreza do debate político-econômico é causa dos nossos atrasos. No mundo, todos os BCs independentes são mais eficientes, ou seja, entregam estabilidade e condições de crescimento.

Políticas públicas de apoio aos mais pobres estão incorporadas às mais variadas doutrinas econômicas há muito tempo. Bolsa Família, por exemplo, é uma ideia surgida nos quadros do Banco Mundial. Ali se chegou à conclusão de que distribuir comida e bens aos mais pobres era simplesmente ineficiente.

Órgãos governamentais gastavam a maior parte do dinheiro em burocracia e na distribuição, sem contar a corrupção. Ora, por que não entregar o dinheiro direto na mão das famílias? Com uma condição: que colocassem os filhos na escola e mantivessem em dia a carteirinha do posto de saúde. Teoria: com o dinheiro, as famílias não precisavam colocar as crianças para trabalhar; estudando, as crianças tinham a chance de escapar da pobreza.

Foi introduzido no Brasil pelo prefeito tucano Magalhães Teixeira, de Campinas, em 1994. Depois, em Brasília, pelo então governador Cristovam Buarque. E virou Bolsa Escola no governo FHC.

É simplesmente um bom programa social, que não pode ser chamado de esquerda ou de direita. Assim como não há BC de direita ou de esquerda. Há os que controlam e os que não controlam a inflação.

Tudo considerado, o Brasil precisa de vacina e programas sociais, por óbvio; de reformas, porque o setor público não cabe no nosso PIB; e de privatizações, porque os governos não têm dinheiro para investir.

Sim, o mercado gosta disso. Nós também.

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