quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Cora Rónai - Kruela Kruel e o paradoxo da intolerância

- O Globo

A cultura do cancelamento é uma guilhotina desembestada: um dia, todos seremos cancelados. Ninguém perde por esperar

Esta coluna é, como todas são, como tudo o que não é amanhã é, um eco do passado. São oito da noite de terça-feira, e, se o meteoro não atingiu o planeta entre agora e logo mais, Karol Conká terá sido eliminada do “Big Brother 21” com uma rejeição recorde, ou quase isso, porque afinal bater os 98,76% anteriores, do Nego Di, é difícil até para uma arquivilã de caricatura.

(Sim, foi: 99,17%. Só mesmo eleições na Coreia do Norte atingem esse nível.)

Karol Conká cabe como uma luva na clássica definição que o ministro Luis Roberto Barroso pregou na testa do colega Gilmar Mendes, uma das joias mais perfeitas da História do Brasil: ela é uma pessoa horrível, uma mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia.

Nem o seu fã-clube aguentou, e desativou a conta que tinha criado para segui-la na casa:

“Nós, como fãs da carreira musical da Karol, decidimos criar esse perfil para informar e acompanhar ela no BBB. Mas, devido a todos os acontecimentos dentro da casa, percebemos que ela na verdade é uma pessoa horrível. Iremos desativar a página e desejamos que ela se f*.”

Pronto, fãs, desejo atendido.

O problema é que uma trama sem vilões perde muito. Ainda sobram vilões no “BBB 21”, mas nenhum com o talento para o papel da Karol Conká. Karol aparece na tela e o público imediatamente se alvoroça, porque sabe que lá vem treta.

Karol é cruel, falsa e fofoqueira — mas é inteligente, interessante e tem uma capacidade de liderança inquestionável. É carismática e vistosa como a madrasta da Branca de Neve ou a Cruela Cruel. Sabe plantar dúvidas nos corações, semear a discórdia e ferir os outros. O mais fascinante é que faz tudo isso sem perceber, convencida de que é boa gente e que não fez nada de mais. Fica genuinamente surpresa quando alguém se queixa das patadas, e se exime de responsabilidade moral com o argumento de dez entre dez pessoas grosseiras: “Eu sou assim mesmo!”.

(Tiago Leifert foi no ponto na eliminação ao questionar os brothers sobre quem são; e foi cauteloso e gentil ao criar um colchão metafórico para atenuar o tombo descomunal da Conká.)

O “BBB 21” vai perder muito da dinâmica e da graça com a ausência da sister — mas isso me perturba.

A questão é: a que custo nos divertimos? Os participantes fazem questão de frisar, continuamente, que o programa não passa de um jogo. Mas é um jogo jogado por humanos reais, com os sentimentos de que dispõem.

Os jogos do Coliseu romano também eram jogados por humanos, e também eram considerados divertidos illo tempore.

O que vai acontecer com Karol Conká?

Horrível ou não, ela é uma pessoa real. Vê-la experimentar do próprio veneno só é gratificante até o momento em que nos damos conta de que esse veneno é, exatamente, o que nos causa tanta repulsa.

Pessoas boas odeiam pessoas más por serem más, mas acham justificável serem más com os maus.

Quem somos, afinal?

A cultura do cancelamento é uma guilhotina desembestada: um dia, todos seremos cancelados. Ninguém perde por esperar.

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