domingo, 21 de fevereiro de 2021

Luiz Sérgio Henriques* - Antagonismos em equilíbrio

- O Estado de S. Paulo

Um ambiente plural e diversificado é o único antídoto contra aspirantes a ditador

No momento em que somos tentados a fazer o balanço de perdas e danos, lamentando, depois de 30 e poucos anos, as ilusões precocemente perdidas, convém lembrar os bons pressupostos e o início auspicioso deste período mais recente da nossa História política. A impressão generalizada em seguida ao regime militar era de que o País estava finalmente pronto para integrar, de corpo e alma, o grupo de nações que conseguem conjugar, com um grau mínimo de coerência, capitalismo e democracia, economia de mercado e integração social. Um grupo relativamente reduzido, é certo, mas habituado a sinalizar rumos e a atrair a esperança de quem vive sob regimes fechados mundo afora.

Na verdade, essa não era uma ideia surgida aleatoriamente na acidentada trajetória de modernização por que passamos. Na saída de uma dessas ditaduras que conformaram duradouramente as relações entre Estado e sociedade, a ditadura do Estado Novo, um grande conservador como Gilberto Freyre chamava a atenção para a plasticidade da formação social brasileira. Segundo ele, tal plasticidade, própria de um exuberante povo em formação, seria até capaz de irradiar para outras latitudes o amor à diferença, o propósito de conciliar elementos heterogêneos, étnicos ou culturais que fossem.

Freyre, no texto a que aludimos (A Nação e o Exército, de 1948), fechava os olhos para os aspectos novamente repressivos do governo da época, imerso na guerra fria e mecanicamente alinhado a um dos seus polos. Nada desprezível o impacto que teriam em futuros eventos a ilegalização do Partido Comunista e as intervenções arbitrárias no movimento sindical. Não era esse o caminho do Ocidente político que aspirávamos a ser, como o demonstravam, na mesma altura, os casos exemplares de França e Itália. Mesmo assim, o sociólogo nos descrevia como um país cujo destino tinha raízes na capacidade de manter o equilíbrio de antagonismos ou, o que assegurava ser a mesma coisa, a tolerância entre contrários.

Ocidente político não é nenhuma expressão cifrada, ainda que exija rigor conceitual e adesão consciente. Trata-se de uma situação, descrita classicamente por Gramsci, em que entre sociedade política e sociedade civil há um saudável equilíbrio. A primeira não esmaga a segunda nem tolhe arbitrariamente seus movimentos. Partidos, ONGs, imprensa, vida sindical, associativismo popular, tudo isso compõe um ambiente plural e diversificado, que, na verdade, é o único antídoto contra a permanente insídia dos autoritários e aspirantes a ditador. Para falar a verdade, é o anticorpo infalível contra a repetição das experiências totalitárias do século 20, entre as quais, ao lado dos fascismos, cabem muito bem o comunismo stalinista e suas derivações.

Freyre, apesar do tempo transcorrido entre o seu e o nosso tempo, estava bem consciente desse requisito “ocidental”. Um Estado “organizado” – particularmente o Exército, a instituição da força por excelência – e uma sociedade “desorganizada” caracterizam estruturas politicamente subdesenvolvidas, fadadas a sofrer periódicas recaídas autoritárias e recorrentes candidatos a Bonaparte. E foi essa lição decisiva que liberais, progressistas e até ampla parte da esquerda incorporaram como patrimônio na saída da segunda experiência de governo “forte” da modernização, entre 1964 e 1985. Um patrimônio que, como é de conhecimento público, tomou corpo na Carta de 1988, que passou a ser desde então a linha discriminatória entre democratas e não democratas.

Nem sempre os governos de esquerda estiveram à altura da ideia democrática rigorosamente concebida. Não me refiro só ao desvirtuamento do Parlamento ou a práticas de loteamento de estatais poderosas, mas também, e talvez principalmente, a orientações anacrônicas de valor, como concessões ao horizonte da “revolução” que se tentava reatualizar em outros contextos. Mas é forçoso admitir que hoje as democracias de tipo ocidental, entre as quais obstinadamente nos queremos incluir, estão sob evidente ameaça da extrema direita arregimentada sob a bandeira do nacional-populismo. Como em tempos sombrios do século passado, essa direita não democrática mimetiza o gesto revolucionário, produzindo paródias grotescas de assalto aos palácios de poder, como a vista no 6 de janeiro norte-americano. Efeito paródico que também se sente quando, por aqui, setores desgarrados do establishment desenham planos e balbuciam palavras de ordem antiestablishment, como se jacobinos fossem.

A democracia de 1946 durou menos de duas décadas e, no fim, não teve quem a defendesse, dada a variedade de atores que apostavam no confronto. Nada consolador o fato de que o regime nascido desse confronto viria a ser desenvolvimentista, remodelando a sociedade no sentido de “mais capitalismo”. A conta apareceu na forma de incultura cívica, menoridade intelectual e atraso político, que agora voltam a se manifestar como negação da tolerância e do equilíbrio de antagonismos. Um preço alto demais que, estejamos à direita ou à esquerda, devemos rejeitar com convicção.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil

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