sábado, 27 de fevereiro de 2021

Oscar Vilhena Vieira* - A Constituição e seus inimigos

- Folha de S. Paulo

Omissão do Supremo diante de ataque à democracia seria inaceitável

Em 25 de setembro de 1930, perante a Justiça Federal em Leipzig, Hitler deixou claro seu objetivo de tomar as instituições jurídicas e “dessa maneira transformar nosso partido num fator determinante... quando possuirmos poder constitucional, vamos moldar o Estado à forma que nos seja apropriada”. Dito e feito. Hitler ascendeu ao poder, promoveu a polarização e a desordem, e, em 1933, deu início a um substantivo processo de erosão constitucional que, entre outras coisas, retirava do Judiciário o controle sobre seus atos. O resto da história, infelizmente, todos sabemos.

Como reação ao nazismo e ao método empregado para erodir a ordem constitucional de Weimar, a nova Lei Fundamental alemã, de 1949, não apenas adotou uma ampla carta de direitos, um sofisticado sistema federal e de separação de Poderes, um robusto conjunto de cláusulas intangíveis (pétreas), como conferiu ao Tribunal Constitucional a função de “guarda da Constituição”. O que, aliás, também fizemos no Brasil em 1988.

Ao longo dos últimos 70 anos, o Tribunal Constitucional foi convocado diversas vezes para colocar limites a partidos desleais à democracia, conter abusos à liberdade de expressão, assim como assegurar o monitoramento de grupos violentos hostis à democracia. Nos anos 1950, invocando a doutrina da “democracia militante”, extinguiu tanto o novo partido nazista, como o partido comunista. Muitas dessas decisões foram cercadas de controvérsias, tanto jurídicas, como políticas. Mas o fato é que a democracia alemã resistiu.

Com progresso econômico e, sobretudo, a adesão das novas gerações às regras do jogo democrático, o Tribunal Constitucional foi amenizando a sua disposição de interferir na luta política, mantendo, no entanto, uma postura vigilante em relação a ação de grupos terroristas, assim como sobre o emprego de discursos de ódio por parte de setores radicalizados. Mas para isso foi indispensável o forte compromisso dos mais diversos setores à Constituição.

Guardadas devidas distinções, não parece errado analisar a prisão do deputado Daniel Silveira sob o ângulo da doutrina da “democracia militante”, que inspirou a Corte alemã. A manifestação do deputado, com suas agressões, ameaças e incitações à violência contra autoridades e instituições democráticas, não pode ser tomada como um fato isolado. Não se trata da ação de um radical livre. Ela se deu num contexto mais amplo, que envolve inúmeras manifestações presidenciais hostis a valores e princípios democráticos, uma crescente tensão entre lideranças do Exército e o STF, assim como uma guerrilha permanente nas redes sociais contra as instituições democráticas.

Nesse sentido, o Supremo não teve escolha que não cumprir sua missão de “guarda” não apenas do texto, mas do sistema constitucional como um todo. Um parlamentar não pode se beneficiar de uma prerrogativa democrática, como a imunidade parlamentar, para destruir a própria democracia. Essa prerrogativa apenas se justifica para que os legisladores possam exercer livremente suas funções dentro do marco democrático. Se a utilizam como arma, para destruir o regime constitucional, perdem o direito a essa proteção. Evidente que a decisão é passível de críticas e qualificações. Mas, no presente momento, a omissão do Supremo seria inaceitável.

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Ao completar 100 anos, a Folha se demonstra, mais do que nunca, essencial. Agradeço pelo privilégio de participar dessa jornada em favor do pluralismo, da objetividade e da democracia.

*Oscar Vilhena Vieira, professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

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