sábado, 6 de fevereiro de 2021

Pablo Ortellado - Transigência que mata

- O Globo

Depois da invasão do Congresso americano, as plataformas de mídia social endureceram a implementação de suas políticas de moderação de conteúdo —e não apenas nos Estados Unidos.

No Brasil, o presidente Bolsonaro e o Ministério da Saúde tiveram tuítes sobre tratamento precoce filtrados (conteúdo borrado, acompanhado de alerta de publicação enganosa), e o YouTube removeu um vídeo sobre ivermectina de Eduardo Bolsonaro.

Apesar disso, ainda há milhares de publicações nas plataformas promovendo o uso de cloroquina, criticando o uso de máscaras e difundindo desinformação sobre as vacinas. Um levantamento feito por pesquisadores da Universidade Federal do Espírito Santo apontou que 98% dos vídeos recomendados no YouTube sobre tratamento precoce eram desinformativos.

Em tese, nenhum conteúdo desse tipo deveria estar on-line. O Twitter diz que removerá conteúdos que apresentem “um risco direto para a saúde ou o bem-estar das pessoas”; o YouTube diz que “não é permitido o envio de conteúdo que dissemine informações médicas incorretas que contrariem as orientações da OMS”, e o Facebook diz que vai proteger “contra conteúdo prejudicial relacionado à Covid-19”.

O problema é que as regras de aplicação dessas diretrizes genéricas não são transparentes —elas existem e orientam a ação dos algoritmos e dos moderadores humanos, mas não são públicas. É permitida a publicação de conteúdo promovendo a ivermectina e a cloroquina? É permitido fazer publicações desestimulando o uso de máscaras?

Também não há transparência na escala de sanções de Facebook e Twitter para quem viola as políticas. Que gravidade de violação é punida com um rótulo, com a diminuição da distribuição, com a remoção da publicação ou a suspensão da conta?

Como a aplicação da política não é transparente, ela pode se dar de forma arbitrária, e não uniforme. Tudo leva a crer que essa opacidade está sendo utilizada como margem de manobra, que permite às empresas operar discricionariamente num ambiente em que as políticas de saúde foram politizadas.

Embora haja consenso científico contrário ao uso da cloroquina e da ivermectina no tratamento contra a Covid-19, levantamento da Associação Médica Brasileira mostrou que 35% dos médicos brasileiros consideram eficaz a cloroquina, e 41% consideram eficaz a ivermectina. Esses índices, não por acaso, são parecidos com os índices de aprovação do presidente, que defende o uso dessas drogas.

Assim, as empresas precisam impor políticas de moderação a um meio que as rejeita. Não se trata apenas dos usuários comuns, mas também das autoridades políticas e de parte dos médicos.

Não é possível saber em que medida a falta de rigor na aplicação das políticas de moderação de conteúdo ligado à Covid se deve à incapacidade das empresas de moderar uma grande quantidade de conteúdo, ao medo de perderem usuários polarizados ou ao medo de receberem retaliações do governo.

Seja como for, a difusão desse tipo de conteúdo está contribuindo para ampliar a contaminação —sem exagero, está tirando vidas.

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