domingo, 28 de março de 2021

Cacá Diegues - O destino da Humanidade

- O Globo

Não podemos continuar destruindo a natureza e os seres vivos de nosso planeta porque nos julgamos mais fortes ou mais espertos

Nada será como antes. Não temos como adivinhar a diferença entre o que foi e o que será. Mas certamente, daqui a um tempo, quando a pandemia acabar ou estiver por aí disfarçando, nada será mais como foi antes. A Humanidade estará preocupada com novas questões sobre a vida, coisas que não nos ocorria antes do vírus. Não sei se seremos mais ou menos felizes, porque a felicidade terá um novo sentido para nós. Um novo que pode até acontecer de ser velho demais.

Lamentando a morte na pandemia de tantas pessoas que “não precisavam ter morrido”, Judith Butler, filósofa americana, acusa a marginalização social, o racismo e a desigualdade econômica como razões para isso. “Quem ou o que deixou tantas pessoas morrerem?”. Ela aponta o dedo para o que chama de “sádicos desavergonhados”, retrato justo que faz de Trump e Bolsonaro, alfas do “masculinismo”, ideologia e prática nascidas como reação ao feminismo.

Mas será que, num momento limite da história humana como esse, ainda haverá quem cultive essas circunstâncias tão específicas? Ou será justamente em tempos como este que nasce o trágico exclusivismo que provoca tanta guerra? E tanta intolerância seguida de mortes, muitas mortes, mesmo fora de guerras declaradas.

Essa pandemia provoca um dos piores momentos na história do ser humano, um momento causado pelo acúmulo de tanta injustiça de toda natureza. Ela surge cerca de cem anos depois de um susto semelhante, no final da Primeira Guerra Mundial, quando um vírus igualmente devastador só não acabou com a Humanidade porque faltou-lhe o que já existe hoje: a capacidade de se deslocar em todas as direções do planeta muito rapidamente, capacidade dada pelo desenvolvimento tecnológico da Humanidade.

Enquanto a peste de 1918 tinha que se contentar com a lenta e ainda precária navegação para se deslocar, o coronavírus viaja confortavelmente a jato e por outros meios mais velozes que nem servem aos humanos. O vírus chega a qualquer canto do planeta numa velocidade espantosa, que lhe dá até tempo de mudar de cepa para nos enganar e viver mais do que se espera dele e de sua missão destruidora.

Segundo informação de Audrey Azoulay, diretora-geral da Unesco, nossa relação com a natureza e os seres vivos do planeta já desestabilizou 75% dos ecossistemas. A taxa global de extinção de espécies já é centenas de vezes maior que a mesma taxa ao longo dos últimos 10 milhões de anos. Esse é o resultado de uma relação de dominação e exploração insana, da colonização que exercemos sobre a natureza e seus seres vivos.

Como costumamos reagir hoje à narração das crueldades coloniais, cometidas por algumas poucas nações que se consideravam donas do mundo? Como reagimos face às formas cruéis e devastadoras do colonialismo ainda existente? Ou o que pensamos de terroristas islâmicos que decapitam crianças em Moçambique? Como queríamos então que o planeta e sua natureza reagissem à nossa insanidade?

Assim como nunca aceitamos que uma nação domine e destrua a população e os bens naturais de outra apenas por ser mais poderosa, não podemos continuar dominando e destruindo a natureza e os seres vivos do nosso planeta porque nos julgamos mais fortes ou mais espertos. “Não somos os donos da Terra”, diz Azoulay, “mas dependemos dela”. Somos portanto modestos hóspedes, mas nos comportamos como Senhores do Mundo.

É preciso parar com a insanidade de nossa violência contra os bens naturais. Ou seremos obrigados a assistir ao fim da Humanidade, eliminada pela natureza que precisa se defender, pois está de saco cheio de ter sido tão tolerante com nossa milenar insensatez.

 

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