quinta-feira, 18 de março de 2021

Cláudio Gonçalves Couto* - Sobre apostas, filhos e ministros

- Valor Econômico

17/03/2021

Troca na Saúde é último blefe de Bolsonaro, que faz política não como investidor racional, mas como jogador inveterado

Jair Bolsonaro parece tomar novas atitudes em relação à pandemia, em reação a eventos incômodos decorrentes de suas próprias escolhas anteriores. A mais importante é a própria condução da política sanitária, se é que pode ser chamada assim. Não é muito fácil compreender a lógica das decisões de Bolsonaro para lidar com tal problema. Racionalmente faria sentido investir desde o início em medidas de contenção do contágio e, depois disso, na vacinação, assegurando o mais rapidamente possível a chamada “imunidade de rebanho”, permitindo a retomada da vida normal e, com ela, da economia.

Bolsonaro, porém, não é um investidor, mas um apostador. Por isso optou desde o princípio por sabotar as medidas de isolamento social, repudiar as vacinas e apostar na promoção de medicamentos sem eficácia comprovada, como a cloroquina. Como explicar isso racionalmente?

O presidente fez uma aposta: melhor manter as atividades normalmente, não apesar do contágio, mas exatamente para o produzir; assim, obter-se-ia a imunidade de rebanho e, com ela, a superação da pandemia sem maiores sacrifícios econômicos. As centenas de milhares de mortes advindas desse darwinismo vulgar seriam apenas efeito colateral inevitável; afinal, para Bolsonaro, um dia todos vão morrer e é preciso enfrentar a coisa de peito aberto, sem frescuras.

Mesmo diante das evidências de que isso não funciona, o presidente não só se manteve firme na aposta, mas a cobriu seguidamente. Seu comportamento é similar ao de um jogador adicto do jogo num cassino: mesmo perdendo, segue apostando cada vez mais, acreditando que em algum momento ganhará e, assim, não só recuperará o que perdeu, mas ainda sairá com saldo positivo. Assim, aposta todo dinheiro que tem, a casa, o carro e até as roupas do corpo. Sai depauperado e devendo para agiotas, mas não consegue fazer diferente. Num tal comportamento a racionalidade só opera no horizonte mais imediato, o do próprio jogo, com as táticas que lhe são inerentes. No conjunto das atitudes, inclusive na opção por seguir apostando, a despeito do desastre, o que prevalece é o irracionalismo do vício.

O bolsonarismo se alicerça sobre um irracionalismo de base. É daí que se origina seu negacionismo, seu extremismo e se produz sua perversidade. Por isso a insensibilidade diante das montanhas de mortos. Assim como a dilapidação do patrimônio do jogador, as mortes de seus governados são - para ele - mero efeito colateral do que realmente importa: a emoção do jogo, traduzido aqui na busca pela reeleição e pela concentração de poder. Esquemas tradicionais de compreensão das escolhas de políticas públicas explicam mal tais opções, pois supõem uma racionalidade mais ampla - que, mais do que tática, seria estratégica. O irracionalismo político, como o do jogador autodestrutivo, só obtém realização na catástrofe.

Porém, nos momentos em que é acuado, Bolsonaro recua. Investigações que recaem sobre sua família, perda de popularidade produzida pela percepção de má gestão sanitária e ameaça eleitoral personificada por Lula lhe atemorizam e produzem, no curtíssimo prazo, refugadas. Como o jogador que blefa para iludir adversários, o presidente simula moderação, fala menos, admite a importância das vacinas, usa máscaras, exibe um globo terrestre em sua live e troca de ministro da Saúde. O blefe dura até o momento em que volta se sentir confortável, e retoma a carga irracional que lhe caracteriza. A racionalidade do recuo é apenas tática e se esgota nos lances do jogo e seus ganhos imediatos, mas não na opção por desistir de seguir apostando e (se) arruinando.

A troca do ministro da Saúde foi seu último lance desse modo de atuar. Depois de meses de fidelidade canina ao presidente, acatando passivamente todas as suas determinações mais estapafúrdias e desmoralizando a imagem de competência técnica dos militares, o general Eduardo Pazuello, já muito desgastado, inutilizado como anteparo, foi descartado, pois se tornou inútil aos propósitos presidenciais. Assim como o time que troca de técnico numa fase ruim, o presidente buscou outro nome.

Contudo, para ser ministro de Bolsonaro é preciso ser invertebrado. Qualquer profissional da área da saúde menos propenso a acatar ordens estapafúrdias e se curvar servilmente ao absurdo, não serve. E, como a saúde virou outra arena para a guerra cultural bolsonaresca, também ali as crenças motivadas pela ideologia devem se sobrepor ao conhecimento científico e à prudência. Não por acaso, as milícias digitais e reais do bolsonarismo se mobilizaram para destruir qualquer mínima possibilidade de indicação de uma médica de posições favoráveis ao óbvio - como era o caso de Ludhmila Hajjar.

Na operação que levou ao descarte da médica, Bolsonaro mobilizou aquilo que o afeto sugere e que é sempre sua opção preferencial: os três filhos. Na sabatina da pretensa ministra, estava o 03, Eduardo, para lhe passar o crivo ideológico - como no questionamento acerca de sua posição sobre armas. Na mobilização das milícias digitais estava o 02, Carlos, chefe do Gabinete do Ódio. E no apadrinhamento ao nome que, ao fim, prevaleceu (o médico Marcelo Queiroga) estava o filho 01, Flávio.

Não vingaram os possíveis nomes patrocinados pelos neoaliados do Centrão, como Hajjar e o deputado Dr. Luizinho. O que prevaleceu foi a escolha de um “bolsonarista raiz” disposto a obedecer ao presidente, mesmo que publicamente dando declarações ambíguas sobre o que levar mais em consideração: a lealdade aos caprichos do chefe, ou a missão do ministério que dirigirá. Mas isso é o que se espera, ao menos por algum tempo, considerada a nova fase de Bolsonaro - que é o real ministro da Saúde. Para blefar, simulando adesão aos preceitos científicos da saúde pública, a ambiguidade do novo ministro vem bem a calhar. Substantivamente, são improváveis mudanças significativas.

A nova aposta em breve cobrará em mortes (e mortos não produzem, não consomem e são capital humano desperdiçado) e no desgaste da relação com o Centrão.

*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP

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