quarta-feira, 3 de março de 2021

Conrado Hübner Mendes* - Manifesto alarmista

- Folha de S. Paulo

Para desbolsonarizar o futuro, nada é mais arriscado que o compasso de espera

Há presidentes que governam por decreto. Outros, por iniciativa legislativa, emendas constitucionais, tudo isso combinado e mais um pouco. Jair Bolsonaro governa por crimes comuns e de responsabilidade, na ação e na omissão. Sua insubordinação performática à lei, ao decoro e à civilidade sempre foi tratada como caricata. Na Presidência, rotinizou a agressão à liberdade, à vida e à soberania. Durante a pandemia, a técnica se fez mortífera em massa.

Diante da ameaça que se materializa, para começar, em 260 mil mortes (em parte evitáveis), o alarmismo resta como única postura realista e racional frente aos fatos. Em nome da honestidade, o alarmismo torna-se demanda ética e chamado pragmático de sobrevivência.

O alarmismo pode vir para o bem e para o mal. Pode ofuscar o problema, explodir pontes, produzir pânico, ruído e ação ineficaz. Soar o alarme quando o perigo não existe cobra seu preço. Na história, soar o alarme cinicamente contra os inimigos imaginários levou a golpes, intervenções militares, fúrias redentoras e lavajatistas ou a recusas da vacina chinesa.

A vocação antialarmista, quando fatos desaconselham, também tem custo. Alertava-se, por exemplo, contra os alarmistas dos anos 30. Quando Churchill fez discurso assustado diante da anexação da Áustria, em 1938, um conservador de cachimbo tranquilizou os espíritos: “Ele gosta de sacudir a espada, mas você tem que tratá-lo com um grão de sal”.

O pacto antialarmista vigente, sem nenhum grão de sal, neutralizou a possibilidade de entender o Brasil de hoje e imaginar o Brasil que se avizinha. A esse pacto já se reagiu com mais de 70 pedidos de impeachment, representações criminais, ações judiciais, denúncias internacionais, furos jornalísticos, gritos incrédulos pelos hospitais do país.

Para contar essa história com o devido senso de urgência, esboço aqui um manifesto alarmista. Não é contribuição à literatura distópica, mas crônica realista em pelo menos seis postulados.

1) “O negacionismo mata, a complacência anestesia.” Na enciclopédia do negacionismo brasileiro, não há risco à democracia, nem ameaça sanitária, aquecimento climático, racismo, homofobia, corrupção e violência policial. O ilusionismo sequestra as emoções primárias e espalha violência.

2) “Bolsonaro se fez inimputável, infalível e irresponsável. Só não é inacreditável.” Bolsonaro não está errando e avisou o que faria. Já estava no seu prontuário, na ficha corrida, nos registros parlamentares e na biografia.

3) “A Constituição está sendo revogada.” A campanha de liquidação de ativos constitucionais esvazia seus compromissos civilizatórios sem mudar seu texto.

4) “Instituições de Estado se rendem, em parte, às tentações colaboracionistas e às investidas de cooptação e captura.” Não é só Judiciário e Parlamento. A politização de instituições de Estado atravessa o Ministério Público, a advocacia de Estado, as profissões militares e um grande edifício de instituições de controle dentro do Executivo e políticas públicas.

5) “O mantra ilusionista ‘povo armado não será escravizado’ pavimenta a república das milícias, não a segurança, muito menos a liberdade.” Armamento e degradação ambiental são as linhas vermelhas de Bolsonaro, pelas quais irá às últimas consequências.

6) “Democracia não é máquina de contar quem tem mais votos.” Vamos aprendendo na marra o que a filosofia política e a história já tentaram ensinar: não bastam eleições para se ter democracia nem uma turba qualquer para se ter povo. Tampouco precisa de golpe para se implantar ditadura.

O que vem pela frente será pior. Politicamente, pior que os últimos 30 anos e pior que os últimos dois anos. Do ponto de vista sanitário, 2021 será pior que 2020. Climaticamente, a devastação ambiental contribui para um futuro mais grave que qualquer outro momento da era industrial. As consequências sociais e econômicas cabe a nós imaginar.

Não há vacina para imunização instantânea contra um ethos bolsonarista que sofre mutações e se multiplica. Mas há remédio e terapia para tentarmos desbolsonarizar o futuro. Nada é mais arriscado que o compasso de espera, como se o jogo fosse o mesmo de antes, nos termos de antes.

*Conrado Hübner Mendes, professor de Direito Constitucional da USP, é doutor em Direito e Ciência Política e Embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.

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