sábado, 27 de março de 2021

João Gabriel de Lima - Nossas vocações e nosso Joe Biden

-  O Estado de S. Paulo

Para o mundo, nosso nome é Amazônia. Sem ela, estaremos condenados à irrelevância

Países têm vocações. A dos Estados Unidos é clara. No plano internacional, liderar o mundo democrático a partir das instituições que eles próprios ajudaram a criar – e que atendem pelo nome de Nações Unidas. No plano interno, beneficiar-se do maior ativo de seu DNA: ser um país de imigrantes. No período entre as guerras, exilados europeus ajudaram a consolidar nos Estados Unidos as melhores universidades do planeta. Ao longo das décadas seguintes, o país atraiu cérebros do mundo todo – talentos indianos na área digital, por exemplo – dando aos americanos enorme vantagem na economia do conhecimento.

Por isso era tão estranho ver alguém como Donald Trump – anti-imigração e anti-Nações Unidas – à frente de um país complexo, sofisticado e com ambição de liderança. A eleição de Joe Biden dá a sensação de que os Estados Unidos fizeram as pazes com suas vocações.

Em pouco mais de dois meses de governo, Biden varreu o entulho populista do “America First” e reposicionou o país na liderança internacional. Demarcou linhas claras com China e Rússia – as duas potências rivais, conforme Carlos Gaspar mostra em seu ótimo livro O Retorno da Anarquia (Gaspar, professor da Universidade Nova de Lisboa, é o personagem do minipodcast da semana). Biden também se aproximou da União Europeia, com o intuito de reconstruir o eixo das democracias ocidentais. 

E o Brasil? Qual a nossa vocação?

No plano interno, ela está inscrita na Constituição de 1988: criar e viabilizar um estado de bem-estar social. É um desafio complexo numa sociedade desigual. No plano externo, temos vocação para protagonistas na área ambiental. Abrigamos o maior pedaço da Floresta Amazônica, temos uma invejável matriz de energia limpa e somos produtores agrícolas importantes. É natural que participemos das discussões sobre o problema mais relevante para o futuro do planeta: a mudança climática. Como lembra Gaspar, o Brasil já foi voz forte nesse e em outros temas internacionais. 

Nossas vocações, no entanto, estão em crise neste governo. Enfrentamos a tragédia de 300 mil mortos da pandemia – que poderia ser pior se nosso estado de bem-estar social não tivesse criado o Sistema Único de Saúde. Na área ambiental, o País enfileira recordes de desmatamento e queimadas, enquanto o governo tira poder e orçamento das instituições fiscalizadoras. Tal desastre destruiu nossa credibilidade na área.

Em 2022 teremos eleições. As primeiras pré-candidaturas, mais ou menos explícitas – DoriaCiroLulaEduardo Leite? – despontam no debate público. Esperam-se deles propostas concretas para que o País retome suas vocações.

O próprio Biden apontou um caminho. Ele deixou claro que a conversa entre Brasil e Estados Unidos passa, necessariamente, pela Amazônia. Temos a oportunidade de recuperar relevância na área ambiental. Para liderar pelo exemplo, o Brasil tem de ser radical: inflexível na preservação, modelo na agricultura sustentável e referência na pesquisa sobre energia limpa. Para isso, como sugere Gaspar, os vários setores envolvidos com o assunto – do agronegócio às organizações não governamentais – precisam se entender num grande pacto.

Que surja, em meio aos escombros da pandemia, um debate maduro entre nossos aspirantes a Biden. Um dos focos deve ser a questão ambiental. Para o mundo, nosso nome é Amazônia. Sem ela, perderemos nossa voz – e estaremos condenados à irrelevância.

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