quarta-feira, 17 de março de 2021

Joaquim Ferreira dos Santos - O centenário de Antônio Maria. Não é o padre. É o pecador

- O Globo

O Antônio Maria que se vai louvar aqui não é o padre, sucesso dos livros, discos e missas da auto-ajuda moderninha. Hoje é o centenário de Antônio Maria, o pecador.

O pernambucano Antônio Maria foi nos anos 50 o grande cronista dos costumes amorosos pela noite de Copacabana, o rei do samba canção triste em que sempre havia alguém indo embora, alguém pedindo para voltar ou alguém garantindo que, se morresse amanhã de manhã, sua falta ninguém sentiria. Sofria-se, maldizia-se a sorte nesta existência.

Pois Maria, infelizmente, parecia estar certo nessa letra de auto-desengano. Os editores não sentiram sua falta. Este seu centenário vai encontrar as livrarias sem qualquer livro de sua larva incandescente, nenhuma linha nova daquele que um dia escreveu “a verdadeira espiritualidade começa na fadiga da carne confortada”. Todas as coletâneas de suas crônicas estão genialmente esgotadas.

A editora Todavia promete uma antologia para novembro, um prazo aflitivo pela falta da garantia sanitária de que novembro e leitores ainda estarão por aqui. “Ninguém me ama, ninguém me quer”, dizia Maria no seu samba canção mais dolorido – os editores parecem de acordo.

Nenhum livro a comemorar o centenário de um craque do mais brasileiro dos gêneros, a crônica de jornal, aquele papo que parece furado, uma borboleta amarela que passa aqui, um homem que nada ao fundo de Ipanema, e de repente ergue-se um clássico das letras nacionais. Parece fácil, poucos conseguem. É uma pena que ninguém possa comemorar o centenário de Maria lendo seus textos. Uma vez, aqui no GLOBO, onde publicou a coluna “Mesa de Pista” entre 1954 e 1959, Maria escreveu: “O que atrapalha minha vida foi ter visto e feito muita coisa desde pequenino”. Pode ter sido isso.

Até pouco tempo, qualquer escalação da seleção nacional de melhores cronistas escalaria Rubem Braga, Carlinhos de Oliveira, Fernando Sabino, Verissimo, Paulo Mendes Campos, João do Rio, Stanislaw Ponte Preta, Nelson Rodrigues e, vá lá, Drummond. Maria é o nome mais recente nesse panteão. Todos os demais, consagrados pelos anos, são fartamente editados e disponíveis, agraciados com baús abertos e a descoberta milagrosa de novos textos a cada efeméride. A exceção é o ora centenário.  

O Antônio Maria compositor continua por aí, regravado por Caetano (“Suas mãos”, entre outras), Bethânia (“Onde anda você”, entre muitas), e com fartura de música disponível no Spotify. Todos o amam, ninguém o contesta. Ele fez “Valsa de uma cidade”, com Ismael Neto, sempre vencedora de concursos de a mais bonita música escrita sobre o Rio (a minha é “Cidade mulher”, de Noel Rosa, com Orlando Silva no gogó). “Manhã de Carnaval”, em parceria com Luiz Bonfá, só perde em gravações no exterior para “Aquarela do Brasil” e “Garota de Ipanema”.

O cronista Maria escrevia com a arte dos mestres do gênero, um texto sem pose, de olho na simplicidade coloquial, uma arquitetura de falsa “nonchalance”.

“Consistia em revelar o absurdo, a ironia de situações e pessoas que apanhava, formalmente, ao natural”, analisou Paulo Francis. “Um pequeno twist na organização das palavras, aqui e ali, produzia o efeito, sem que a aparência de simplicidade se alterasse. Como qualquer profissional sabe, isso é muito difícil de fazer.”

Antônio Maria ainda é um autor com um baú monumental a ser revirado e exposto à visitação pública em bom papel de leitura. Foram publicadas até hoje apenas umas 200 de suas crônicas, quando se calcula que escreveu algo em torno de três mil nos jornais e revistas do Rio entre 1948 e 15 de outubro 1964, quando, aos 43 anos, morreu. Foi de um jeito que tinha a sua cara: enfartado (ninguém expôs tão acintosamente a dor de perder um grande amor), de madrugada (era um personagem da noite, e sua coluna no GLOBO tratava do movimento das boates), numa calçada de Copacabana (morava na Rua Fernando Mendes e publicou na Última Hora a coluna “Romance Policial de Copacabana”, dando verniz literário ao submundo dos crimes que apurava na delegacia do bairro).

Diante das reclamações aqui expostas, a injustiça de não tê-lo nas livrarias em pleno centenário, Antônio Maria talvez desse de ombros: “De que serve esse apego ao futuro, se a capital de Honduras é Tegucigalpa”. Tinha o grande humor dos que não se levavam a sério. Em 15 de março 1957, anotou num diário: “Rosina Pagã (cantora) apresentou-me a Ann Miller (atriz americana) com esta frase: ‘Este é o Voltaire brasileiro’. Pobre Rosina.”

No balanço geral das pedras no copo de uísque, às voltas com os prazeres e as ressacas da existência, Maria parece ter vivido do jeito que escolheu:

“Tudo é menor. O socialismo, a astrofísica, a especulação imobiliária, a ioga, todo ascetismo da ioga... tudo é menor. O homem só tem duas missões importantes: amar e escrever à máquina. Escrever com dois dedos e amar com a vida inteira.”

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