sexta-feira, 5 de março de 2021

José de Souza Martins* - Os benefícios de quem está acima da lei

- Valor Econômico / Eu Fim de Semana

No Brasil, os indivíduos que chegam ao poder podem ser beneficiados pelo direito não escrito de que estão acima da lei

A necessidade política da definição da igualdade social, tratada extensamente na Constituição brasileira, não é estranha em face das desigualdades historicamente profundas que nos caracterizam.

O artigo que dela trata, mais do que assegurar a igualdade, na verdade proíbe a desigualdade. É um desses indícios de hipocrisia política que atravessa as leis brasileiras. A igualdade é um direito sem ser obrigatória, fragilizada sem a previsão de instituições que a assegurem nem a responsabilização dos que a violam.

A Constituição brasileira é clara e abrangente em relação à igualdade: “Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza...”. Trata-se, porém, de mera igualdade jurídica, que, entre nós, assegure na competição desigual as desigualdades sociais.

Esse artigo pressupõe que se destina a assegurar a igualdade numa sociedade já igualitária, que a nossa não é. Desde os primeiros tempos de sua formação, teve ela escravidões, juridicamente diferençadas, a do índio e a do negro, e ainda tem - a de todos que caírem na rede da escravização por dívida. Portanto, uma desigualdade constitutiva e profunda.

Numa sociedade assim, a instituição do direito à igualdade criminaliza a desigualdade sem modificar a sociedade, coisa que, de fato, depende de fatores de transformação social, sobretudo de movimentos sociais que ponham em evidência as iniquidades que tornam a igualdade uma quimera. Leis, em princípio, configuram a sociedade juridicamente, mas não socialmente. Entre uma coisa e outra há um abismo.

A própria massa da população não tem a menor consciência de quais são e onde estão as anomalias que desmentem cotidianamente a igualdade fictícia. Basta dar uma voltinha pelas nossas cidades para ver a diversidade das formas da desigualdade brasileira.

Não só nos extremos, o dos moradores de rua ou o do trabalho análogo ao trabalho escravo. Mas em presumidas atitudes de superioridade social em relação aos demais. Um bom lugar para observar a violação desse item da Constituição é o próprio Congresso Nacional e a própria Presidência da República. Instituições dominadas por pressupostos de desigualdade estamental, na penca de privilégios e de exageros de comportamento inadequado aos limites das funções de poder.

A desigualdade estamental do poder está em pequenas coisas. Nestes dias, a propósito da posse de dois novos ministros, um verdadeiro Carnaval de bajulação dos empossados e do presidente reuniu no Planalto uma multidão composta de muitos violadores do princípio da igualdade, a começar do próprio presidente da República.

Medidas do Estado, com base na lei, mandam que nesta conjuntura de pandemia e de risco comprovado à vida de todos, a começar do presidente, sem máscara, e de todos violando a regra da distância sanitária. Festejavam, no fundo, o abocanhamento do poder pelos mais iguais.

No Congresso, nos mesmos dias, começava a reformulação da lei para aumentar a imunidade parlamentar - inspirada nos casos de dois parlamentares que, por suas ações, já deveriam ter sido afastados da função de representação política que ocupam.

Há países civilizados em que a mera e fundamentada suspeita de conduta imprópria justifica a privação do direito de representação política. São os países em que a lei está acima dos indivíduos. Aqui, não. Os indivíduos que chegam ao poder podem ser beneficiados pelo direito não escrito de que estão acima da lei. São os mais iguais.

A imunidade parlamentar é uma instituição necessária para assegurar o direito de divergência e de representação política da diversidade de concepções que formam a sociedade moderna. Mas a imunidade não é ilimitada. Ela depende de valores sociais, vários deles contidos nas linhas e nas entrelinhas da Constituição e nas leis.

Nesse sentido, o mandato não é um privilégio nem pode ser. No entanto, assim tem sido. Não só quanto ao instituto da imunidade, mas também quanto aos extensos e descabidos privilégios materiais: habitação, carro, funcionários, avião e passagens, que fazem dos políticos brasileiros os mais iguais de uma estrutura política paralela antirrepublicana e antidemocrática - e anti-igualitária.

A estamentalização da representação política e do poder é um retrocesso histórico que fere o pressuposto da igualdade proclamada na Constituição. A igualdade a que ela se refere é a igualdade reflexo e recíproca, não a igualdade solitária de quem pode mais e chora menos. De quem é imune à lei pela função que ocupa e pela suposta liberdade não só de opinar contra as instituições, mas de conspirar contra elas, para colocar entre parênteses os direitos fundamentais do cidadão que somos no papel, não sendo.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Eméritodo CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Moleque de Fábrica”(Ateliê).

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