sexta-feira, 12 de março de 2021

Maria Antonieta Del Tedesco Lins* - Ação de países ricos revela como nossa caixinha de ferramentas é enferrujada

- Folha de S. Paulo

Resta saber que margem de manobra têm emergentes e menos desenvolvidos para se reorganizar na pandemia


A apreciação, pelo Congresso dos EUA, de um plano de recuperação de US$ 1,9 trilhão diante da pandemia é mais uma oportunidade para refletir sobre o quão desigual é a caixinha de ferramentas de que dispõe cada um dos países do mundo para enfrentar uma crise de amplitude fenomenal que afeta a todos.

Para a maior economia do mundo —nação que emite a moeda aceita em todo tipo de transação e cujo título de dívida pública é a referência de investimento sem riscos—, a implementação de um pacote de estímulos econômicos só pode encontrar resistências na frente política, dada a sua enorme (ilimitada, diriam alguns?) capacidade de aumentar gastos.

É difícil pensar em outro país que possua tamanha margem de ação. Sim, a China seria um possível exemplo, mas em circunstâncias muito distintas.

Há ainda a União Europeia, que, em menor escala e enfrentando uma enorme complexidade institucional, também aprovou um plano de recuperação imponente, totalizando € 1,8 trilhão para seus 27 membros. Ele se distingue do pacote aprovado pelos parlamentares estadunidenses por ter um horizonte de tempo mais longo, priorizando investimentos em atividades digitais e mais verdes.

O plano de recuperação proposto por Biden é composto por iniciativas de curto prazo.

Entre os grandes blocos de medidas, estão: transferência de recursos diretamente a indivíduos em situação de vulnerabilidade (isso inclui, além de um “cheque de estímulo”, benefícios a desempregados e crédito fiscal a famílias com crianças); aumento do salário mínimo; dinheiro para elevar a testagem contra a Covid e fomentar o processo de vacinação, além de um tipo de complementação do Obamacare, com ampliação dos subsídios para acesso a planos de saúde para famílias de renda baixa e média.

Somando, dá US$ 1,9 trilhão, cujo ingresso na economia deve acontecer rapidamente. O apoio aos cidadãos para aderir a planos de saúde tem um horizonte de dois anos, enquanto as transferências de renda devem ir até setembro. Os impactos diretos dessa política são, evidentemente, sobre a economia doméstica via consumo e gastos de empresas que deixarão de quebrar.

Só que, como bem sabemos há bastante tempo, sempre que a economia dos EUA se mexe na piscina global, espalha água para todo lado. Desta vez também podemos esperar transbordamentos, os famosos “spillovers”, tão familiares aos economistas.

Americanos gastando a renda adicional significa maior demanda por exportações do resto do mundo, isso é simples e positivo, a priori.

Também já se discute que, pelo lado monetário, a forte expansão econômica projetada, dado o papel do dólar como moeda de reserva internacional, deve levar os demais países a rever suas políticas monetárias e cambiais. Isso porque essa política deve elevar a inflação por lá e depreciar o dólar nos mercados. O crescimento rápido pode também trazer mais liquidez aos mercados financeiros e, consequentemente, mudanças de posição de investidores, mais volatilidade.

Tal cenário permite prever rodadas de afrouxamento de política monetária em países industrializados, por vezes acompanhadas de aumento de incerteza. Os americanos crescendo forte, a Europa evitando o aprofundamento da crise e projetando investimentos de longo prazo, a governança econômica da China facultando a seus dirigentes diferentes políticas...

Resta saber que margem de manobra têm os emergentes e, ainda mais grave, os menos desenvolvidos para se reorganizar durante a pandemia —que claramente terá maior duração em países como o Brasil, sem resposta política organizada e com vacinação lenta— e depois dela.

Para nós, os tempos não são só de incerteza, são terrivelmente sombrios. Não bastassem os muitos problemas que enfrentamos, haveremos de driblar as mudanças na economia global, sendo que em nossa caixinha faltam ferramentas ou elas estão enferrujadas.

*Maria Antonieta Del Tedesco Lins, economista e professora associada do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo

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