segunda-feira, 8 de março de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

Negacionismo de Bolsonaro se baseia em cálculo político – Opinião / Valor Econômico

Crise sanitária vai agravar-se nos próximos dias e semanas

A sociedade brasileira assiste, atônita, ao comportamento do presidente Jair Bolsonaro em meio à mais grave crise sanitária que atinge o mundo desde a gripe espanhola. Sem honrar a liturgia do cargo que ocupa ou demonstrar o mínimo de empatia com seus compatriotas, o primeiro mandatário do país mantém discurso negacionista no momento em que o número de casos e mortes por covid-19 cresce de forma assustadora e o sistema de saúde, em inúmeros Estados, não tem mais como atender a novos pacientes desta ou de qualquer outra doença.

Para Bolsonaro, o único cálculo possível dessa tragédia é político. Contrário ao “lockdown”, por seus efeitos negativos na economia, o presidente defende tratamentos sem amparo na ciência, como o uso da cloroquina, propõe aos cidadãos que se exponham nas ruas e faz pregação contra o uso de vacinas. Ao mesmo tempo, por meio do Ministério da Saúde, promete fornecer imunizantes a todo o país, assim que forem importados. Ao agir dessa forma, coloca-se como o salvador da pátria e deixa o ônus das medidas de isolamento social para governadores e prefeitos.

O presidente recorre à decisão do STF que deu autonomia aos entes subnacionais para enfrentar a pandemia com o objetivo de eximir-se da responsabilidade de lidar com a crise, que já tirou a vida de 265.500 brasileiros. Paralelamente, opera para impedir que os Estados importem vacinas.

Não há trégua no pesadelo que a nação vive. Na semana passada, ao participar de evento em São Simão (GO), Bolsonaro se mostrou mais preocupado em fomentar a divisão da nação do que trabalhar por uma reconciliação. Do alto do palanque, elevou o tom das críticas que costuma fazer a governadores e prefeitos. Queixou-se de ter sua autoridade “castrada” pelo STF e, mais uma vez desdenhando da gravidade da pandemia, disse que é hora de deixar de “mimimi” e “frescura”.

“Vão ficar chorando até quando? Temos que enfrentar os nossos problemas”, indagou. Pergunte-se às mais de 265 mil famílias em luto até quando vão lamentar a perda de seus entes queridos, e aos quase 11 milhões de infectados pelo coronavírus até agora. Provavelmente, elas perguntarão por que o governo do segundo país mais afetado por esta pandemia, na contramão da maioria de seus pares pelo mundo, não se planejou para importar e produzir vacinas, em escala compatível com o tamanho de nossa população (211 milhões, a 7ª do planeta).

Bolsonaro insiste na falsa dicotomia entre economia e saúde. “Só com a nossa economia funcionando e não ficando todo mundo em casa, como querem alguns governadores, é que podemos sonhar com dias melhores. Sem dinheiro, sem emprego, estamos condenados à miséria, fracasso, morte, a distúrbios e saques”, afirmou. Embora não tenham respaldo da equipe econômica, que vê a vacinação como crucial para a retomada da economia, depois da queda de 4,1% em 2020, as declarações do presidente não devem ser relativizadas. Como revelou o Valor, na sexta-feira, a crise sanitária vai agravar-se nos próximos dias e semanas.

No próprio Ministério da Saúde, projeta-se que o número de mortes por covid-19 ultrapasse a barreira dos três mil por dia. Prevê-se que, nesta e na semana seguinte, ocorra aumento exponencial de óbitos, entre outras razões porque faltam vacinas para a imunização em massa - em pouco menos de dois meses do início da vacinação, menos de 10% da população foi vacinada.

A projeção mais pessimista resulta do que se considera a tempestade perfeita: a rápida disseminação do vírus na segunda onda, a dificuldade de a população manter-se em isolamento social, a circulação de novas variantes mais contagiosas e com grande carga viral, o colapso do sistema hospitalar em diversos Estados, além da falta de vacinas.

Grave também é a revelação de que o governo federal está decidido a exercer toda sua capacidade de pressionar os laboratórios a fim de travar a venda de vacinas para Estados e municípios, mesmo que a legislação permita a descentralização do combate à doença. Com razão, governadores e prefeitos pressionam o poder central por maior agilidade na aquisição e distribuição dos imunizantes.

A maioria dos governadores defende que o plano nacional de vacinação seja mantido, mas, em carta à Presidência da República, eles alertaram que o futuro não julgará com benevolência os que não tiverem pressa nesta crise. O que deve ficar claro para todos é que esse julgamento não vai limitar-se ao resultado das próximas eleições.

Aparelho militar – Opinião / Folha de S. Paulo

Multiplicação de fardados em estatais não é boa para as Forças nem para o Brasil

A crescente presença de militares em cargos políticos da administração federal tem se estendido às mais poderosas empresas estatais com controle da União.

Reportagem da Folha mostrou que, com a nomeação do general Joaquim Silva e Luna para a presidência da Petrobras, chegará a 92 o número de dirigentes oriundos das Forças Armadas no comando dessas companhias —dez vezes o contingente verificado no final do governo Michel Temer (MDB).

Os dados foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação, pela consulta de sites oficiais e nas assessorias das empresas.

Em levantamento realizado em julho de 2020, o Tribunal de Contas da União (TCU) já constatava o exercício de funções governamentais, na esfera federal, por 6.157 militares —mais do que o dobro dos 2.957 registrados em 2016.

Diante desse quadro não há como escapar à evidência de que o presidente Jair Bolsonaro, capitão reformado do Exército, promove aparelhamento militar do Estado.

Do ponto de vista administrativo e técnico, é forçoso considerar que, embora produzam quadros respeitáveis, as Forças Armadas têm como missão precípua e constitucional zelar pela defesa nacional.

A formação militar e as regras que estruturam as corporações, baseadas em rígida hierarquia e respeito ao tempo de serviço, não foram concebidas para capacitar gestores eficientes de políticas, empresas e órgãos públicos com vocação para atuar em regimes de governança transparente e prestação de contas à sociedade.

O caso exemplar dessa incongruência materializa-se na figura do ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello. Considerado entre colegas de farda um especialista em logística, revelou-se um desastre à frente de uma área complexa e estratégica, sob pressão da mais grave crise sanitária dos últimos cem anos.

Suas exaustivas provas de inépcia se fazem acompanhar de subordinação convicta ao negacionismo irresponsável do presidente da República, com as sinistras consequências que se conhecem.
Pazuello exemplifica outro perigo decorrente da vasta ocupação militar de funções governamentais.

Oficial da ativa, o general expõe o Exército —ainda mais do que já fazem seus pares da reserva— ao escrutínio da opinião pública e dos demais Poderes em terreno que não é de sua alçada.

Queira ou não, a instituição militar se associa, desnecessariamente, a uma aventura política com traços autoritários. Não é bom para as Forças, não é bom para o Brasil.

Abuso reiterado – Opinião / Folha de S. Paulo

Abrandar punição a deputado que apalpou colega premia agressão a mulheres

O caso do deputado estadual Fernando Cury (Cidadania), filmado ao apalpar a colega Isa Penna (PSOL) no plenário da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo no final de 2020, é exemplar ao retratar a displicência e a permissividade com que são premiados os agressores de mulheres no Brasil.

O Conselho de Ética decidiu, por 5 votos a 4, abrandar a pena do parlamentar, acusado de quebra de decoro por importunação sexual. Em vez da punição de seis meses prevista pelo relator, Cury recebeu 119 dias de licença não remunerada e poderá, dado que o afastamento é inferior a 120 dias, manter o gabinete em funcionamento.

O concerto reafirma a agressão a Isa Penna e a estende, simbolicamente, às demais deputadas e à metade feminina da sociedade.

Não se pode admitir que a prática de assédio, perpetrada durante uma sessão parlamentar, diante do presidente da Casa, testemunhada por outros deputados e registrada em vídeo, seja tratada com a leveza de uma traquinagem.

A cassação, desejável pela abordagem abjeta em plenário, deu lugar não à suspensão de seis meses costurada como resposta mínima à conduta abusiva, mas a uma operação de resgate feita de véspera.

Ao votarem a favor do abrandamento da pena, os integrantes do Conselho de Ética da Alesp Wellington Moura (Republicanos), Alex de Madureira (PSD), Adalberto Freitas (PSL), Delegado Olim (PP) e Estevam Galvão (DEM) na prática reputam aceitável que uma mulher seja tratada como objeto.

Com a decisão, ainda, o grupo protege a manutenção de um gabinete inteiro para um deputado suspenso, em claro desperdício do dinheiro da população paulista.

Para não deixar dúvida sobre a covardia que guiou sua decisão, o grupo ainda fugiu após a votação, com o objetivo de que não houvesse quórum para manifestação contrária ao resultado.

Um deles, Delegado Olim, acha que Cury deverá pagar nas urnas.

Olim provavelmente sabe, no entanto, que delegar a punição do comportamento de Cury apenas aos eleitores é inútil, uma vez que o recado dado pela Conselho de Ética é o de que não deve haver maiores consequências àquele que comete assédio contra uma colega —apenas uma “brincadeira idiota”, segundo esse mesmo deputado.

A atitude de Cury e a complacência de seus pares reafirmam a covardia de homens que estão acostumados a reivindicar o tratamento de garotos inconsequentes quando lhes convém. Que o plenário da Assembleia estadual possa reverter uma decisão que tanto o diminui.

Uma transformação muito positiva – Opinião / O Estado de S. Paulo

Ao diminuir os incentivos a partidos nanicos, a cláusula de barreira é um passo importante para reduzir a atual fragmentação partidária

O cenário político está tão conturbado que se pode perder de vista uma transformação muito positiva que vem ocorrendo aos poucos. Se de fato for completada, essa mudança pode proporcionar benefícios importantes para a qualidade da representação do regime democrático e para o ambiente de negociação das políticas públicas. Refere-se aqui à diminuição do número de partidos políticos, fruto da cláusula de barreira que começou a ser aplicada em 2019.

Para ter uma ideia da transformação que a cláusula pode gerar, apenas 18 dos 33 partidos registrados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) atingiram o patamar mínimo de 2% dos votos válidos com base nas votações em candidatos a vereador em 2020, segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap).

A taxa de 2% de votos válidos é o limite mínimo fixado pela Emenda Constitucional (EC) 97/2017 para que, na legislatura seguinte às eleições de 2020, partidos políticos tenham acesso aos recursos do Fundo Partidário e à propaganda gratuita de rádio e televisão. Caso não aumentem sua representatividade em 2022, legendas como PV, Pros, PCdoB, Novo, Rede e PSTU não terão direito a recursos públicos e a tempo de rádio e televisão.

Ao diminuir os incentivos a partidos nanicos, a cláusula de barreira é um passo importante para reduzir a atual fragmentação partidária. Um sistema político com 33 partidos é uma aberração disfuncional.

A quantidade atual de legendas não gera melhor representação. Há muitas siglas para o eleitor votar, mas não há um aumento de opções políticas viáveis. Para que sejam minimamente efetivas, propostas políticas demandam um mínimo de representatividade.

Além disso, a diminuição do número de partidos pode contribuir para um ambiente de negociação política menos fisiológico. A fragmentação partidária é um convite à transformação da política em balcão de negócios. No regime vigente, mesmo os poucos eleitores que votam em partidos nanicos saem enfraquecidos, uma vez que seus representantes não dispõem de mínima relevância representativa no Legislativo. Há apenas uma ilusão de representação.

Em razão de seus bons frutos, a cláusula de barreira é adotada em muitos países. Por exemplo, Alemanha, Suécia e Noruega têm porcentuais mínimos acima de 4%. No Brasil, há um bom tempo tenta-se implantar algum limite para as legendas. Aprovada em 1995, uma primeira versão da cláusula de barreira foi declarada inconstitucional pelo Supremo em 2006.

Em 2017, o Congresso aprovou a atual cláusula de barreira, a ser implementada gradativamente. Por exemplo, a partir de 2026, os partidos precisarão alcançar 2,5% dos votos válidos ou eleger 13 deputados federais. Além de ser menos restritiva do que a de 1995, a nova cláusula foi aprovada por meio de uma Emenda Constitucional, o que evita eventuais discussões sobre inconstitucionalidades.

É de justiça reconhecer que a diminuição do número de partidos políticos não é mero resultado de disposições legais. O próprio eleitor concentra o seu voto em alguns partidos. Nas últimas eleições, por exemplo, cinco partidos se destacaram pelo número de prefeitos eleitos: MDB (783), Progressistas (687), PSD (654), PSDB (521) e DEM (466). Depois, com números bem menores, ficaram o PT (182) e o PSL (90).

Essa concentração de votos mostra que, mesmo com muitas legendas, o eleitorado encontra sua representação em alguns poucos partidos. Ou seja, é o próprio eleitor que distribui desigualmente os votos entre as legendas.

Além de evidenciar que a cláusula de barreira não diminui a representatividade política, a concentração de votos em alguns partidos mostra que, no conjunto das 33 legendas, existem realidades muito díspares. Há partidos, por exemplo, com enorme capilaridade, capazes de eleger cinco centenas de prefeitos.

Ao fixar limites mínimos de representatividade, a cláusula de barreira ajuda a diferenciar os partidos das meras siglas. Sua aprovação foi uma vitória importante, que não merece ser desfeita. Seus frutos podem gerar um novo cenário político.

Falta destravar o País – Opinião / O Estado de S. Paulo

Sem investimento produtivo, o Brasil há muito corre atrás dos outros emergentes

Passado o desastre de 2020, o Brasil continua condenado a um crescimento econômico medíocre, ou menos que medíocre, simplesmente porque o seu potencial produtivo é pífio. Disso, pelo menos, o coronavírus é inocente. Só há crescimento seguro e duradouro com investimento produtivo – e nisso o País vem falhando, de forma assustadora, há muito tempo. O total investido em máquinas, equipamentos e obras só ultrapassou 20% do Produto Interno Bruto (PIB) em 4 dos 21 anos decorridos desde janeiro de 2000. A maior taxa foi 20,9%, em 2013. A menor, 14,6%, ocorreu em 2017. A média anual na Ásia emergente tem ficado em torno de 35%.

Em 11 anos, nesse longo período, governo e setor privado destinaram a esse tipo de aplicação somas inferiores a 18% do PIB. O pior desempenho, nesse quesito, tem sido normalmente do setor público, nos três níveis de governo. O Brasil tem fracassado, há muito tempo, na formação bruta de capital fixo, expressão usada no jargão dos economistas para designar o investimento gerador de ativos físicos.

Isso condena o País a ser menos eficiente que os competidores, mais empenhados em fortalecer a produtividade e o poder de competição. A agropecuária brasileira é uma das mais eficientes do mundo, mas parte dessa vantagem desaparece quando os produtos são levados para fora da porteira.

Os produtores dependem excessivamente do transporte rodoviário e, além disso, o sistema de rodovias é insuficiente, a qualidade das estradas é em grande parte insatisfatória e falta manutenção. Perdas podem ocorrer no transporte às cidades ou aos portos e os custos são aumentados.

Mas as falhas de infraestrutura são mais amplas. Nos últimos anos, sistemas de transmissão incompletos impediram o aproveitamento de energia gerada a partir de grandes investimentos, mas esse é só um exemplo do planejamento deficiente. Além disso, também a má execução inutiliza bilhões aplicados em construções.

No fim de 2019 o Tribunal de Contas da União (TCU) apontou 14.403 obras inacabadas – de fato, paralisadas, na maior parte. Os trabalhos foram interrompidos por vários motivos – falhas de planejamento, problemas de execução, escândalos e, em alguns casos, decisões judiciais. O TCU chegou a publicar um Mapa de Obras Paradas.

Segundo cálculo divulgado em outubro por uma comissão da Câmara dos Deputados, seriam necessários R$ 40 bilhões para a conclusão de obras federais, estaduais e municipais. Entre os investimentos parados estavam a construção da usina nuclear Angra 3, a transposição do Rio São Francisco e a Ferrovia Norte-Sul.

Um cálculo mais completo apontaria perdas muito grandes causadas pela execução deficiente desses programas. Além do desperdício do dinheiro já aplicado em obras sem conclusão, seria preciso levar em conta o desgaste de construções abandonadas por muito tempo.

Com os atrasos, com o superfaturamento e com o desgaste das construções paralisadas, criou-se um vácuo entre os valores contabilizados como formação bruta de capital fixo e os benefícios esperados desses investimentos. Se realizado corretamente, o investimento registrado já seria insuficiente para proporcionar ganhos de produtividade comparáveis àqueles obtidos em outros países. A tudo isso seria preciso somar a escassa formação de capital humano pelo sistema educacional.

Por isso, e por outras falhas de política, o crescimento brasileiro foi comparativamente modesto nos últimos 21 anos. Só em um terço desse período o aumento anual do PIB superou 3,5%, num desempenho vergonhoso para um grande país emergente. Em quatro anos a variação foi negativa: -0,1% em 2009, -3,5% em 2015, -3,3% em 2016 e -4,11% em 2020. Desde a recessão de 2015-2016, a maior variação foi 1,8%, registrada em 2018. Em 2019, primeiro ano do mandato do presidente Jair Bolsonaro, a taxa recuou para 1,4%. No primeiro trimestre de 2020 já ficou negativa. Enquanto o presidente briga com os fatos e agride a imprensa por noticiar o agravamento da pandemia, a economia continua sem rumo e sem política de recuperação.

A volta do nepotismo – Opinião / O Estado de S. Paulo

É preciso calibrar o conceito de improbidade, não neutralizá-lo

Em mais uma mostra de que estão dispostos a privilegiar seus interesses pessoais e os de seus familiares sobre o interesse público, alguns deputados, a pretexto de realizar uma revisão da Lei de Improbidade Administrativa, manobram, com o aval do presidente Jair Bolsonaro, para relegitimar a prática do nepotismo.

No âmbito da comissão especial da Câmara que discute a reforma da Lei de Improbidade (8.429/92), o líder do governo, Ricardo Barros (Progressistas-PR), defendeu uma proposta do relator, Carlos Zarattini (PT-SP), para excluir o artigo 11, que caracteriza como improbidade “qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições”. 

Com base neste dispositivo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem chancelado condenações em casos de contratação de parentes. Em 2008, a Súmula 13 do Supremo Tribunal Federal vedou “a nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, (...) para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada”.

A Lei de Improbidade, nascida na esteira dos escândalos de corrupção do governo Collor, foi um marco histórico. Mas, 30 anos depois, vê-se que, no afã de coibir a corrupção, o legislador não distinguiu com o devido apuro dolo, culpa e mera incompetência. A interpretação demasiado ampla do conceito de “improbidade” motivou uma avalanche de denúncias infundadas do Ministério Público, fomentando uma atmosfera de criminalização da atividade política e desestimulando a atuação de muitos administradores honestos.

Com o propósito de punir judicialmente os gestores desonestos e deixar a punição dos incompetentes às urnas, a Câmara criou, em 2018, uma comissão de juristas, coordenada pelo ministro do STJ Mauro Campbell, que resultou no projeto ora em discussão. Mas um substitutivo de autoria de Zarattini acaba com as punições do artigo 11, restando apenas a possibilidade de condenação se o ato resultar em prejuízo financeiro ou enriquecimento ilícito. Assim, diversas condutas, como o nepotismo, deixariam de acarretar sanções de improbidade. 

O próprio autor do projeto, Roberto Lucena (Podemos-SP), é contra a mudança. “Eu me sinto contrariado com o fato de que a gente possa, retirando o artigo 11, promover um retrocesso naquilo que já está consolidado”. Segundo Campbell, “a simples supressão do preceito (previsto no artigo) acaba por admitir como ‘lícita’ e, portanto, proba, a conduta de quem viola manifestamente a imparcialidade em concurso público ou de quem pratica ato manifestamente proibido”.

No parecer dos juristas responsáveis pelo projeto inicial, se essa e outras propostas do substitutivo forem mantidas, “inviabiliza-se, na prática, qualquer ação de improbidade administrativa em face de sujeitos que detenham alguma ascendência sobre os órgãos de controle”.

O presidente Jair Bolsonaro tem defendido mudanças drásticas na lei. É emblemático: um levantamento do jornal O Globo apontou que o clã Bolsonaro já empregou 102 pessoas com laços familiares. Nos seus 28 anos de atividade parlamentar, Bolsonaro nomeou 13 parentes em gabinetes da família. Embora o presidente não seja investigado, algumas dessas contratações, nas assessorias de Flávio Bolsonaro (quando deputado estadual) e do vereador Carlos Bolsonaro, são alvos do Ministério Público do Rio, entre outras coisas pela prática de peculato. Como esquecer a famigerada candura de Bolsonaro à época em que flertava com a indicação de seu filho Eduardo Bolsonaro à embaixada de Washington? “Pretendo beneficiar filho meu, sim. Pretendo, se puder, dar filé mignon.”

É para que políticos como Bolsonaro não possam dar filé aos filhos à custa do dinheiro e dos interesses da população, que a Lei de Improbidade pune o nepotismo. Ajustes na lei são necessários. Mas, se a opinião pública e os parlamentares probos não estiverem alertas, os patrimonialistas atávicos podem pôr a perder o esforço da gente honesta deste país.

 

STF devolve sensatez à Linha Amarela – Opinião / O Globo

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, restabeleceu a sensatez na confusão de decisões judiciais que envolvem a Linha Amarela, via expressa de 25 quilômetros que liga a Barra da Tijuca à Ilha do Fundão. Na semana passada, Fux suspendeu a encampação da via pela prefeitura do Rio e marcou para 16 de março uma audiência de conciliação entre a concessionária Lamsa e o governo municipal.

Em sua liminar, que ainda será analisada em plenário, Fux afirmou que a lei complementar municipal que autorizou a encampação da via é inconstitucional, por violar o direito fundamental à indenização. Disse ainda que a decisão da prefeitura poderia implicar demissão de centenas de funcionários e cancelamento de investimentos. A ação foi movida pela Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias (ABCR).

A encampação da Linha Amarela foi iniciada no governo Marcelo Crivella, motivada mais por razões eleitoreiras do que por questões técnicas, embora, na época, o governo tenha alegado prejuízo aos usuários. A intenção política ficou evidente quando Crivella mandou funcionários da prefeitura com retroescavadeiras à via expressa para quebrar cabines e cancelas da praça de pedágio, ato sem precedentes de depredação de patrimônio público pelo próprio Executivo. A cobrança de pedágio na via está suspensa desde as vésperas das eleições municipais de 2020, decisão explorada na campanha.

Com a mudança de governo, concessionária e prefeitura voltaram a sentar à mesa de negociação, mas não conseguiram chegar a um meio-termo. O prefeito Eduardo Paes diz que não houve acordo sobre o valor do pedágio. A prefeitura queria R$ 3, mas a Lamsa pedia o dobro — até a encampação, a tarifa em vigor era de R$ 7,50. Sem consenso, a prefeitura anunciou uma nova licitação e, no dia 21 de fevereiro, assumiu os serviços da Linha Amarela. Porém, com a decisão de Fux, na sexta-feira a concessionária retomou a gestão da via.

É certo que os dois lados têm seus argumentos. Mas a encampação da Linha Amarela já começou torta e assim permaneceu. A prefeitura rompeu o contrato de concessão de forma unilateral. Se o poder concedente acha que o pedágio de R$ 7,50 é caro demais, que se faça auditoria independente para chegar a uma tarifa que seja justa tanto para o usuário quanto para a concessionária, respeitando o contrato, é claro.

Não há dúvida de que cancelas liberadas na praça de pedágio rendem votos, mas rendem também vultosos prejuízos. É a cobrança de tarifa que cobre os custos de manutenção da via e dos serviços de ambulância e socorro mecânico — estimados em R$ 100 milhões por ano.

Há uma única certeza na disputa que divide município e concessionária: o rompimento unilateral do contrato é um péssimo sinal para empresas que pretendem investir no Rio e no Brasil. O que a prefeitura tem a lhes oferecer além da flagrante insegurança jurídica?

Que os usuários não se empolguem. A conta da liberação das cancelas não tarda a chegar, seja na qualidade do asfalto, na operação de tráfego ou nos serviços que garantem atendimento rápido aos motoristas. Afinal, não existe pedágio grátis.

Condenação de Sarkozy traz lição ao Brasil no combate à corrupção – Opinião / O Globo

Fato inédito na História: um ex-presidente da República é condenado à prisão por corrupção, num processo que se arrasta por anos. Imediatamente se diz vítima de uma “injustiça profunda”. Partidários saem em sua defesa, bradam que não há “prova nenhuma”, foi tudo um processo político para impedi-lo de candidatar-se de novo à Presidência. “Não dá para esquecer o que ele fez pelo nosso país”, diz um deles. Advogados renomados se mobilizam para defendê-lo. Bradam contra o uso político da Justiça. Prometem levar o caso a tribunais internacionais de direitos humanos. “Seria um sofrimento meu próprio país ser condenado, mas é o preço da democracia”, afirma o condenado.

Não, não se trata do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Apesar das semelhanças intrigantes, o político em questão pertence ao extremo oposto do espectro político. É o francês Nicolas Sarkozy, um dos maiores expoentes da direita europeia nas últimas décadas. Na última segunda-feira, ele foi condenado a três anos de prisão (um em regime fechado) por “corrupção” e “tráfico de influência” no escândalo conhecido como Caso das Escutas.

Numa conversa interceptada numa linha de celular comprada em nome de um certo “Paul Bismuth”, Sarkozy tenta obter de um juiz de quem era próximo informações confidenciais sobre o uso de sua agenda presidencial numa outra investigação de que era alvo, já arquivada. Para que o juiz retirasse de outros processos sua lista de encontros e compromissos oficiais, Sarkozy lhe promete uma vaga de prestígio num tribunal em Mônaco. Se usados pela Justiça, os compromissos em questão poderiam se tornar comprometedores noutras investigações envolvendo Sarkozy.

Como se trata de condenação em primeira instância, é difícil saber o que dirão as Cortes superiores a que a defesa inevitavelmente recorrerá. Noutro caso rumoroso, em que Sarkozy era acusado de financiamento ilegal de campanha, o Caso Liliane Bettancourt, ele saiu ileso. Ainda pairam suspeitas de que tenha recebido dinheiro ilegal do ditador líbio Muammar Kadhafi na campanha de 2007 e de que tenha usado notas frias para encobrir superfaturamento em 2012, fora outros casos que até agora não avançaram.

O exemplo de Sarkozy demonstra que não é apenas no Brasil que o combate à corrupção enfrenta dificuldades e se torna presa fácil para o oportunismo das alianças espúrias entre políticos e braços do Estado que deveriam agir em nome da lei. Também serve para lembrar que a melhor garantia de que a corrupção será combatida são leis menos lenientes, com a independência necessária ao funcionamento das instituições.

Sempre haverá pressão política para melar investigações. É essencial resistir. Como resumiu o prefeito de Grenoble, Eric Piolle: “É preciso que as penas sejam executadas. A não execução das penas é a impunidade”. Vale para a França, vale para o Brasil.

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