domingo, 14 de março de 2021

Paulo Fábio Dantas Neto* - Lula na área: desjejum, almoço e jantar (Atualizado)

O Lula que irrompeu no topo do noticiário dessa última semana é o “sapo barbudo” ou o político “paz e amor? A julgar por seu pronunciamento de retorno ao primeiro plano da cena política, está sendo as duas coisas. No ato político em São Bernardo, na quarta-feira, 10 de março, o eterno metalúrgico saiu de longo jejum guiando-se pelo seu ABC político, que quem tem mais de trinta anos de idade conhece bem. Ele foi o nacionalista e anti-imperialista grisalho, que manifestou reconhecimento a Maduro e ao Foro de São Paulo, o lulo-petista autocentrado, sem qualquer sombra de autocritica, que repetiu várias vezes o "nunca antes nesse país", pelo qual contrasta o PT e ele próprio com tudo o que existiu antes dele e com tudo o que veio depois dele no Brasil; a fera ferida que, entre vírgulas, repetiu o mantra de que houve “golpe” em 2016, que bateu no PSDB, em Temer, na mídia em geral e na Globo em particular. E foi também, ao mesmo tempo, o político de pés no chão, conhecedor do terreno onde pisa e com o qual se identifica, o pai da pátria que afirmou o Brasil como lugar de paz e de solidariedade, que fala com todo mundo e com o mundo todo, que se declarou sem ressentimentos, mesmo enfatizando a injustiça que sente ter sofrido da Lava Jato, que se reafirmou um defensor da liberdade de imprensa, aberto a conversar com a sociedade e até com a direita sobre pandemia e auxílio emergencial, insistindo que essa é a pauta unitária do momento; e que não fugiu à regra de todo político sensato, que sabe não ser hora de falar em eleição ao grande público, pois compreende as aflições que lhe importam agora.

Lula deve continuar sendo assim por um bom tempo, talvez até a urna, sua íntima.  Ocupa tanto o lugar do homem de luta como o da pacificação. É o candidato da esquerda e é também aquele que pode saltar por cima do centro e atrair o centrão. Perda de tempo querer colar na sua testa a etiqueta de extremista.

O chamado centro não tem a menor chance de ser ouvido agora. Não conseguirá, por mais que tente, ser mais oposição a Bolsonaro do que Lula é, nem conseguirá convencer o imenso eleitorado da direita de que o centro é opção mais segura do que Bolsonaro para evitar a possível volta do PT. Fala e falará para as paredes quem prega, em tese, contra a polarização, um dado do mundo real que só passará a ser visto como algo a ser superado se e quando ficar claro que a reeleição de Bolsonaro é o desfecho provável dela. No atual momento, é inútil. A fênix Lula comunica aos quatro ventos precisamente o contrário, isto é, que essa polarização é o caminho visível a olho nu para livrar o país do extremismo que o desgoverna.  Só depois de meses se poderá medir e saber (por pesquisas e outros termômetros) se a luz no fim do túnel que o ex-presidente promete é comunicação veraz, portanto, promissora, ou esperança vã e perigosa, pelo risco que a reeleição de um extremista de direita representa para a democracia. Nessa segunda hipótese sim, poderá surgir espaço a um discurso real, não só evangelizador, contra a polarização Bolsonaro/ Lula. A fotografia atual da situação dá razão a quem considera essa disputa entre ambos como o que temos para o almoço. Quem recusar essa realidade, arrisca-se a ficar com fome.

Agora, o jantar vai ter esse cardápio também? Ou em um ano e meio o cenário pode mudar? Não me arrisco a passar da fotografia à profecia. É preciso ter em conta que o imenso impacto que a volta de Lula ao protagonismo provoca em tudo ao seu redor vira de ponta cabeça a conjuntura, porque ele, sem dúvida, é um dos eixos que a estrutura e a torna mais clara e compreensível. Mas esse impacto não faz do ex-presidente e seus movimentos chaves interpretativas do que passará a ser esse “tudo ao redor”. O futuro continua a ser propriedade do imprevisto.  A razão humana é teimosa e deseja fazer previsões, mas para que elas não sejam só projeções de desejos, precisam recorrer a hipóteses alternativas, que só podem ser pensadas se usarmos instrumentos de prospecção adequados. Eles existem, para esse caso?

Pesquisas podem sempre ser instrumentalizadas para inflar bolas e criar marolas. Nem se trata de o instituto ser ou não confiável. Mas o que não é, a meu ver, nem informativo, nem educativo, é pesquisa de intenção de voto ser valorizada como bússola, um ano e meio antes da eleição e no meio de uma pandemia, quando os eleitores estão - com toda a razão, aliás - muito distantes de pensar em eleição. É persuasivo o argumento da especialista Márcia Cavallari Nunes (ex-Ibope) que relativiza o sentido, neste instante, de pesquisas convencionais de intenção de voto, que expõem entrevistados a simulações de hipotéticos cardápios eleitorais, quando se está muito longe de definir qual valerá. Assim, o que o Ipec (novo instituto de pesquisa que ela dirige) nos oferece é a detecção de um "potencial de voto" de personalidades “presidenciáveis” sobre cujos nomes, apresentados em separado, sem alusão a qualquer cenário hipotético de disputa, os entrevistados são inquiridos, cabendo quatro alternativas de resposta: votaria com certeza, poderia votar, não tenho informação para saber se votaria e não votaria de modo nenhum. Os resultados não permitem supor o desfecho da eleição, caso ela ocorresse hoje, e sim saber quem tem potencial para concorrer com êxito a uma eleição prevista para daqui a um ano e meio.

A pesquisa foi feita há três semanas, logo, não registra nem o impacto da reativação do fator Lula, nem   a recente escalada assustadora de Bolsonaro na hostilidade a governadores e na negação da tragédia brasileira na pandemia.  Mas vale debruçar a atenção sobre um gráfico dessa pesquisa, publicada pelo “Estadão” no domingo passado (07/03), porque ele mostra, para além de oscilações de conjuntura, o que a matéria chama de “capital político” dessas personalidades, assim entendido: POTENCIAL DE VOTO (que soma, numa faixa azul, quantos votariam hoje com certeza e os que poderiam votar), DESCONHECIMENTO (mostrado numa faixa amarela) e REJEIÇÃO, mostrando, em faixa vermelha, quantos hoje não votariam nesse nome de jeito nenhum. 

Consideradas as faixas azuis, conhece-se quem tem potencial de voto e a manchete do jornal, corretamente, já apontava Lula à frente de Bolsonaro mesmo antes da decisão de Fachin e ambos em vantagem face aos demais. Mas sendo a eleição brasileira em dois turnos, é preciso ajustar a lupa e seguir em frente na análise. Somadas as faixas, azul e amarela, de cada uma das dez personalidades e abatido, dessa soma, o número da sua faixa vermelha, ficamos sabendo quem tinha, em fevereiro, um capital político capaz de chegar lá e, chegando, ter êxito.  Como esperado, Lula e Bolsonaro têm faixas amarelas muito exíguas, ambos com 6%. Na comparação, Lula parecia estar bem melhor nesse ponto também, porque a faixa vermelha de Bolsonaro é maior.

Para uma análise menos estática, é pena que o gráfico não discrimine (não sei o porquê) quem votaria com certeza e quem poderia votar. Para mensurar o capital político de momento faz sentido juntar essas duas situações numa só faixa. Mas para uma prospecção mais precisa e ousada, essa faixa azul mistura alhos e bugalhos, pois uma das situações expressa resiliência e a outra é o elemento volátil, suscetível a discursos, à conduta política diante de problemas relevantes e às estratégias de campanha.

Afinal, as coisas se movem. Depois da decisão de Fachin, do discurso amplo de Lula em São Bernardo e da realidade brutal de agravamento da pandemia com radical insensibilidade do presidente não se pode saber quantas pessoas da faixa vermelha de Lula passaram agora para a amarela ou para a porção mais volátil da azul. Ao mesmo tempo não se sabe quantos podem ter migrado da faixa vermelha de Bolsonaro para a amarela ou a azul depois que souberam que Lula e o PT podem mesmo voltar. Dessas coisas só se saberá nas próximas rodadas. É de esperar que nas próximas divulguem os números em quatro faixas, dividindo a azul em duas, pois é o movimento entre as faixas "poderia votar" e "de jeito nenhum", o que mais interessa acompanhar, no que diz respeito ao confronto Bolsonaro-Lula.

Mas convém olhar também, no mesmo gráfico, o capital político das outras oito personalidades e fazer a mesma conta. Até onde se pode ver hoje, a regra geral é a soma das faixas azul e amarela (potencial + desconhecimento) sequer alcançar a vermelha, ou seja, a rejeição atual desses presidenciáveis tornaria improváveis suas vitórias em segundo turno. A única exceção é Luiz Mandetta. No seu caso, as faixas azul e amarela somadas ultrapassam a vermelha em dez pontos. Isso é um indicador de amplíssimo campo para uma construção do seu nome, caso essa seja uma decisão de forças políticas e não apenas uma pretensão pessoal dele. Sua faixa amarela era tão larga que com ele pode ocorrer tudo, inclusive nada. Compreende-se que esteja quase invisível em pesquisas convencionais de intenção de voto. Mas numa pesquisa de “capital político” só ele e Lula (e ele ainda mais do que Lula) sinalizavam, em fevereiro, rejeição minoritária, isto é, boas chances de vencer, se candidato, um segundo turno. Por isso acho inadequado enquadrar Mandetta na mesma situação onde efetivamente estão Huck, Doria, Ciro ou Marina. Mesmo hoje ainda longe da raia principal, o ex-ministro da Saúde é o único nome da centro-direita, ou do centro, capaz de entrar na arena plebiscitária, onde hoje estão apenas Bolsonaro e Lula.

O caso de Bolsonaro merece comentário adicional. Rejeição, alta e crescente, retira-lhe competitividade no segundo turno. Ele dependeria de um jogo de soma zero com um adversário de rejeição equivalente, jogo em que ataques recíprocos pudessem levar alguém a vencer pela aversão ou pelo medo que possa incutir no eleitor, em relação ao adversário. Seja quem for esse adversário, não terá dificuldade em ampliar tal sentimento contra Bolsonaro, pois o extremismo e a irresponsabilidade do próprio já o faz. A questão é quantos eleitores Bolsonaro, a essa altura da sua escalada, convencerá de que o adversário, seja quem for, é perigo maior do que ele mesmo. Talvez ele pense que um petista (não necessariamente Lula) seja o melhor adversário para si, mas só o tom que Lula adotar confirmará ou desmentirá isso. Sendo ele um craque profissional, e não um Haddad, o capitão não tem motivos para estar esperançoso.

O assunto pesquisas pode render ainda mais reflexão se tomarmos como referência uma modalidade alternativa que, em comparação com a do Ipec, está ainda mais distante de pesquisas convencionais de intenção de voto.  E com a vantagem de ser novíssima, posterior à reestreia de Lula. Foi publicada ontem, no jornal El Pais, a segunda pesquisa do Atlas Político que usa um conceito distinto do de capital político, mas bastante convergente com ele. Avalia imagem de personalidades públicas, também apresentadas aos eleitores isoladamente, não como pré-candidaturas submetidas a comparação com hipotéticos concorrentes.  Simpatia, antipatia ou conhecimento insuficiente para simpatizar ou não, é uma tradução possível do significado de imagem positiva (faixa verde), negativa (faixa vermelha) ou indefinida (faixa cinza). Essas percepções estão ainda mais distantes de uma intenção de voto e por isso não podem também fazer prospecções sobre resultados eleitorais. Mas apontam quais podem ser as candidaturas competitivas, com base em saldo ou déficit entre imagem positiva e negativa.

Um gráfico da primeira pesquisa (janeiro de 2021), segue apenas para ilustrar e permitir, a quem quiser, estudar a evolução, que aqui não comentarei.

 

Agora segue gráfico análogo, referente à pesquisa recente, feita entre os dias 9 e 11 de março. Sobre ele sim, farei alguns comentários.

Bom lembrar, mais uma vez, que há dois turnos em eleição presidencial no Brasil. Isso torna interessante, mais do que ordenar os nomes de acordo com a representatividade das suas faixas verdes, considerar a zona cinzenta como medição de potenciais máximos para, somada à faixa verde, construir um saldo capaz de superar a faixa vermelha, vale dizer, saldo que indicaria simpatia de 50% mais um. Evidentemente pode haver um segundo turno entre duas personalidades com imagem deficitária, caso já comentado em que o escolhido seria, aos olhos do conjunto dos eleitores, o “menos pior”.  Mas aqui se trata de saber se alguma personalidade política possui condições hoje de ser uma opção além do inseto e do inseticida. Nesse sentido, a pesquisa do Atlas pode ter moderado valor para analistas “imparciais” (se é que se pode ter esse luxo em tempo de Bolsonaro), mas certamente é um indicador crucial para quem deve e quer “fazer política” e para isso precisa encontrar um caminho que desperte confiança.

Incorporando a zona cinzenta como teto máximo de formação de saldo positivo, apenas quatro nomes pesquisados ultrapassam os 50%, dispostos na seguinte ordem: 1. Flavio Dino (64); 2. João Amoedo (61); 3. Luiz Mandetta (60); 4. Hamilton Mourão (57).  Fazendo a estatística conversar com a realidade, pode-se dizer que, hoje, apenas Mandetta é candidato cogitado e que sua faixa cinzenta (confirmando o já revelado na pesquisa do Ipec) equivale às de Amoedo e Dino. Mas o que distingue Mandetta nesse trio é ter uma faixa verde que o credencia, desde já, a ser candidato competitivo no mundo real.

Mas na frieza dos números isso vale também para o general Mourão. Seu nome deveria ser levado a sério? A princípio não, porque sua candidatura é excludente com a de Bolsonaro na vida real. Inclusive porque é razoável pensar que os 32% de sua faixa verde podem ser compostos por um universo de pessoas muito parecido com os 36% da faixa verde do presidente. A hipótese de uma candidatura Mourão só pode ser cogitada em cenário de renúncia ou impeachment, hoje fora da ordem do dia. Mas o afastamento prematuro de um presidente como Bolsonaro nunca deixará de estar em pauta e por isso o dado da pesquisa do Atlas Político é relevante para desfazer ilusões de quem imagina que, em caso de afastamento do capitão, o general seria um tampão resignado, como foi Temer. Sua imagem atual aconselharia candidatar-se com boas chances de não ser cancelado por rejeição, a depender do modo pelo qual Bolsonaro sairia de cena. Se Mourão conseguir livrá-lo de um castigo justo, poderia herdar seus eleitores.  O que não se pode deixar de comentar é que, no campo governista, não há por que tomar como axioma que Bolsonaro é a melhor opção eleitoral. Ao contrário, a pesquisa sugere Mourão como opção menos arriscada. Mas como combinar com as milícias?

Se lembramos como estavam em pesquisas, Collor em março de 1988, FHC em março de 1993 e o próprio Bolsonaro em março de 2017 iremos devagar com o andor da profecia. Assim como Collor e Bolsonaro, um ano e meio antes de suas eleições, Mandetta está apenas semivisível em pesquisas de intenção de voto, mas tem inegável campo para crescer. Falta saber se além desse potencial, ele terá a seu favor - como teve FHC, em 1994 - uma convergência em sua direção para construir, não um centro político, ideologicamente falando, mas um centro de gravidade sintonizado com um eleitorado que tem se revelado fortemente inclinado à centro-direita, mais do que em 1994.

Essa convergência pode partir do centro ou da direita mesmo. O DEM tem uma opção, que talvez Rodrigo Maia não tenha levado na justa conta quando rompeu com seu partido de modo desastrado. Mandetta pode ser alternativa real de uma centro-direita que ainda não se decidiu quanto a Bolsonaro, mas que aos poucos vê que apostar nele não é rota segura para renovação de mandatos parlamentares, porque Bolsonaro é puro plebiscito e não transfere voto para aliado, como ficou claríssimo nas eleições de 2020. É equívoco supor que Bolsonaro é o polo ativo de sua articulação com a Câmara. É o contrário. Ele foi procurado pelo centrão que queria se livrar de Maia. Conseguido o objetivo, Lira e suas turmas podem agora estudar alternativas. Para segurá-los todos, ou em boa parte, Bolsonaro terá de mostrar serviço, baixando sua rejeição. Além disso tem que provar que pode transferir votos. Sem essas duas condições o aparente maciço chamado centrão vai, em compotas, lhe virar as costas. O que experiências pretéritas indicam como mais provável é que, após o almoço no Planalto, ao menos parte do centrão (que nunca foi ator coeso) vá jantar em outro lugar. Lula é uma óbvia opção, mas é nesse ponto que o DEM pode incluir Mandetta no cardápio, caso ele já tenha se ambientado bem na arena plebiscitária.

Dentro dessas balizas, o dito centro liberal-democrático precisa fazer política e não só análises. Politicamente precisa decidir se quer se unir a tempo de tentar criar, a partir de si, uma convergência em torno de um cavalo a ser selado, que ele ignora há um ano, quando reagiu com fleugma imprudente à exoneração de Mandetta do Ministério da Saúde, em plena pandemia. Suas análises devem observar, nos próximos meses (para tentar evitar), se Bolsonaro, além de conservar parte do centrão, capturará de novo os potenciais eleitores de Sergio Moro; e se Lula vai conseguir corresponder aos acenos de outra parte do centrão e da parte Calheira do MDB. Se nacos eleitorais da direita e da centro-direita forem assim comidos pelos dois polos, ainda durante o almoço, talvez Mandetta nem faça parte do cardápio do jantar e o DEM, ou fique com o governo, ou pendurado no pincel, junto com o PSDB, Cidadania e PV, para apenas marcarem posição, enquanto toda a esquerda, se tiver juízo, marchará com Lula. Se os partidos de esquerda hesitarem, seus eleitorados os deixarão falando sozinhos. Fachin, com uma canetada, adiou toda a pauta controversa que povoava a agenda interna da esquerda brasileira até o último dia 8 de março. Ciro Gomes tende a ser exceção confirmatória da regra que privilegia os fatos se, em vez de reciclar o discurso para retornar ao centro, insistir em querer jogar água no chopp do PT.  

* Cientista político e professor da UFBA

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