quarta-feira, 31 de março de 2021

Roberto DaMatta - O precisar do precisando

- O Globo / O Estado de S. Paulo

O Brasil precisa de precisar precisando. Precisando cada vez mais porque, sem o precisando preciso e precioso, não se pode continuar precisando tanto do precisar que conforma o centro do precisar precisando.

As “elite” molecas, aristocráticas, paranoico-legalistas e negacionistas que tanto precisam deveriam substituir o paradoxal e comteano “Ordem e Progresso” por um “É preciso precisar”.

E é precisando do precisar que vamos continuar a fazer história, pois o que é a história, senão um precisar do precisando de que tanto precisamos?

Esse viés vem de um sistema relacional em que uma das questões fatais é “o que você quer?”. Essa pergunta inocente é sugestiva de favores, obséquios e empenhos. Ela é adequada à sociedade hierarquizada, que nos obriga a saber quem somos.

Uma ponte entre uma afinada gradação fidalga e uma chocante igualdade cidadã veio com o republicanismo repressor de séculos de escravidão africana e nobreza branca e mestiça. Uma mestiçagem que não cabia na homogeneidade do arianismo europeu que os sub-sociólogos nacionais levaram mais a sério do que seus mestres estrangeiros.

O Brasil foi condenado pela mistura. Hoje, com o Black Lives Matter, surgem dúvidas. Você prefere segregação e violência ou mistura?

Do que você precisa? Espera-se essa pergunta-oferenda quando um amigo “vira” ministro ou um pai é eleito presidente. Ela revela como os deveres públicos se curvam diante do poder das obrigações pouco estudadas do filhotismo. Os pensadores brasileiros jamais entenderam o peso desses costumes visto por um “reacionário” Gilberto Freyre.

Quando os laços de afeto não são levados a sério, eles voltam como vergonhas quando — por erros processuais — se anulam crimes de inegável responsabilidade política, num supremo carnaval jurídico. O legalismo furiosamente praticado é a lepra do nosso sistema de poder porque, como o coronavírus, ele é de direita e de esquerda...

É preciso acabar com a fraternidade no Brasil? Tal argumento é tão absurdo quanto não levar a sério as exigências democráticas dos cargos públicos, cuja eficácia jaz na separação entre o pessoal e o impessoal. Max Weber distinguiu no protestantismo uma ética individualista em que o crente fala diretamente com Deus. Esse Deus sem Santa Igreja, sacerdócio, confissão e purgatório como recurso e prescrição. Não foi o caso do Brasil, onde há um protestantismo fetichista.

Corrupção é o conflito entre as obrigações universais dos papéis públicos e as expectativas dos laços de família. Não é por acaso que a Justiça seja a primeira esfera a ser agredida quando ela impede a proteção dos filhos ou dos companheiros.

No Brasil, os presidentes não inauguram. Eles tomam posse para, messianicamente, acabar com a roubalheira ou com a incompetência, como se todo mal só estivesse no governo, e a sociedade fosse inocente. Tal concepção divide governantes e cidadãos, criando estadomania e estadolatria — esses criadores de estadopatia. O resultado é que elegemos, com perdão do trocadilho, presidentes-messias que iriam tudo mudar, mas que (com uma ou duas vênias) repetem em escala escabrosa o que condenavam. A falta de debate sobre a natureza do papel público desmoraliza o projeto democrático.

O poder à brasileira é mais inspirado por ordenações do que por constituições. Nessa receita, o Estado seria o ordenador da sociedade vista como mestiça, libidinosa e repleta de capitalistas opressores. Enquanto isso, somos sistematicamente roubados por administradores públicos de todos os quilates em todos os níveis.

O delito foi politizado e, neste momento, sei apenas o que escrevi na minha obra e aqui reitero: no Brasil, o crime não depende da lei, mas de quem o cometeu! Um axioma perfeito para a sociedade do “quem foi rei, sempre é majestade”. Um princípio que aristocratiza os responsáveis por roubalheiras públicas realizadas em nome do povo.

Somos avessos ao igualitarismo. Se o viés pessoal é o modelo do precisar precisando, o igualitarismo impessoal republicano não é progresso, é retrocesso. Como a lei pode valer para todos se, branco e doutor sou, tenho foro privilegiado, fui presidente, e papai é o dono do país?

P.S.: Leio que o Museu Nacional pode virar um ponto de turismo. Nada mais me espanta no Brasil. Se apagamos a história e anulamos condenações, por que não completar a obra abolindo a República e proclamando revolucionariamente a Monarquia? Tem imperador à espera.

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